A força das águas apanhou de surpresa todos aqueles que se encontravam nos andares mais baixos dos prédios da cidade. De acordo com as autoridades, mais de 11.300 foram confirmadas mortas e mais de dez mil permanecem desaparecidas
O rasto de destruição deixado pela tempestade Daniel é prova das horas de desespero que se viveram em Derna, na Líbia. Omar al-Rifadi, um homem de 52 anos, que vive no que sobra da cidade, é testemunha viva da catástrofe que se abateu sobre a cidade. Sobreviveu porque estava a trabalhar nessa escura noite de domingo e, desde então, encontra-se numa busca incessante pela mulher e pela filha de 20 anos.
“Fui a pé para procurá-la. Fui a todos os hospitais e escolas. Mas a sorte não estava do meu lado”, conta Omar ao jornal The Guardian.
A força das águas apanhou de surpresa todos aqueles que se encontravam nos andares mais baixos dos prédios da cidade. De acordo com as autoridades, mais de 11.300 perderam a vida e mais de dez mil permanecem desaparecidas. A dimensão da catástrofe que se abateu sobre a cidade é visível nos seus sobreviventes. Só na família de Omar, mais de 50 pessoas estão desaparecidas.
“Pelo menos 50 membros da minha família, entre desaparecidos e mortos, estão sem ser contabilizados”, desabafa. Segundo a organização humanitária o Crescente Vermelho líbio, pelo menos dois mil corpos podem ter sido arrastados para o mar e muitos podem não ser recuperados tão cedo.
Um outro homem conta como ele e a sua mulher sobreviveram à tragédia, mas que o seu irmão não teve a mesma sorte. Salem Omar não recuperou o corpo do irmão, mas, como este morava no epicentro da destruição, tem a certeza de que não escapou ileso.
"A minha mulher e eu sobrevivemos, mas perdi o meu irmão. O meu irmão vive no centro da cidade, onde ocorreu a maior parte da destruição. Ainda não encontrámos o corpo dele. Receamos que os corpos possam estar infectados com doenças graves”, descreve o engenheiro de 38 anos.
O centro de Derna é densamente populado e, por isso, as autoridades estimam que o número de vítimas contabilizadas ainda deverá aumentar significativamente. O autarca local, Abdelmonem al-Ghaithi, acredita que o número pode mesmo chegar aos 25 mil mortos.
O cenário descrito por Salem Omar é de desolação total. Mesmo tendo escapado, quando ele e a mulher regressaram a casa, encontraram os cadáveres de pessoas que não o conseguiram fazer. As forças das águas transportaram estas pessoas como pedaços de mobília se tratassem. Em todo o lado, habitantes da cidade são confrontados com morte e destruição. Em Derna, não há perspectiva de normalidade. Milhares estão sem abrigo e outros tantos sem emprego.
"Dezenas de milhares de pessoas estão agora sem casa. Precisamos de ajuda internacional. A Líbia não tem a experiência necessária para lidar com este tipo de catástrofes", diz Salem Omar.
Este receio não é descabido. Quase uma semana depois da catástrofe, milhares de corpos continuam por recuperar e, com este cenário, aumenta a preocupação de que uma epidemia atinja a cidade. Isto numa altura em que muitos corpos estão a decompor-se ao ar livre e 30 mil pessoas foram desalojadas e não têm o que comer.
“A primeira necessidade é a gestão dos cadáveres [para evitar epidemias]. Há uma grande necessidade de sacos para cadáveres mas também de cuidar dos feridos”, disse Matthieu Chantrelle num comunicado dos Médicos Sem Fronteiras emitido a partir de Tobruk, 160 quilómetros a leste de Derna.
Mas qualquer tipo de coordenação na ajuda humanitária do país é extremamente complexa. O país encontra-se profundamente divdido desde a queda do regime de Muammar Gaddafi em 2011. Atualmente existem dois governos a atuar em paralelo. O governo internacionalmente reconhecido é baseado na capital de Tripoli e o governo rebelde, liderado por Khalifa Haftar, que tem como capital a cidade de Tobruk.
Mas para a população de Derna, a política torna-se quase insignificante. No meio das ruas destruídas de Derna, um homem, que não quis ser identificado contou a sua história. Durante horas, lutou contra a força das águas para tentar salvar o seu único filho, um jovem de 22 anos.
"O meu filho estava em casa de um amigo. Momentos depois de o ter alcançado, as águas invadiram-nos, empurrando-nos para o telhado. Lutámos durante horas. Por fim, as águas levaram o meu filho à frente dos meus olhos, batendo-lhe com a cabeça na porta. Ficou ali preso até de manhã. As últimas palavras que ouvi dele foram: 'Perdoa-me, pai', enquanto perdia o meu único filho”, recordou.
De acordo com dados do Fundo de Respostas de Emergência das Nações Unidas, há, no total, 884.000 pessoas que necessitam de assistência por causa das cheias, sendo que dessas, 250.000 precisam de ajuda urgente e imediata para sobreviver, indicou a ONU na sua conferência de imprensa diária.
A organização desbloqueou já dez milhões de dólares do seu fundo de emergência para fazer chegar às vítimas das inundações na Líbia bens de primeira necessidade e tentar impedir uma crise sanitária que poderá ser causada pelo elevado número de mortos que jazem a céu aberto, a falta de água potável ou outros fatores, explicou o secretário-geral adjunto das Nações Unidas para os Assuntos Humanitários, Martin Griffiths.
Prevenir o surgimento de alguma epidemia e “restaurar rapidamente algum tipo de normalidade deve ter precedência sobre qualquer outra preocupação nestes momentos difíceis para a Líbia”, declarou.
“Bairros inteiros foram varridos do mapa. Famílias inteiras, apanhadas de surpresa, foram arrastadas pelo dilúvio de água. Milhares de pessoas morreram, dezenas de milhares ficaram desalojadas e muitas mais continuam em paradeiro desconhecido”, recordou o responsável humanitário.