O SOM E A FÚRIA

A Iniciativa Liberal sabe prometer descidas de impostos. Mas não sabe calcular impostos

Sex, 09 fev 2024

“A melhor forma de alguém se aguentar [muito tempo] no governo é não fazer nada”. Quem disse isto? Montenegro, Pedro Nuno, Costa ou Passos? Veja a resposta no final.

Uma das coisas irritantes no PS é ter inviabilizado qualquer discussão adulta sobre impostos: se alguém diz que são altos, “quer destruir o Estado”; se questiona o crescimento dos funcionários públicos, “quer destruir o Estado”; se fala em baixar despesa, “quer destruir o Estado”; se diz bom dia, “quer destruir o Estado”. Infelizmente, a IL – que quer mesmo reduzir o Estado – está a dar uma ajuda ao “quer destruir” do PS: a sua descida de impostos ou tem pés mas não tem cabeça – para pensar; ou tem cabeça mas não tem pés – para andar.

 

"São quatro ou cinco"...

Lamento dizer isto, mas até agora a Iniciativa Liberal não me convenceu quanto a contas nenhumas: nem 1) quanto ao custo do seu choque fiscal; nem 2) da explosão económica que lhe associa; nem 3) como vai pagá-lo; e nem, agora, 4) se sequer sabe calcular uma declaração de IRS.

Porque ou Rui Rocha não sabe como se calcula o IRS, ou sabe e enganou-se pelo que vai corrigir-se, ou sabe e não se enganou e quis manipular a opinião pública. Porque disse que quem ganha 35 mil euros por ano em Portugal “tem 37%” de IRS, o que é errado ou, na melhor das hipóteses, erróneo. Já lá vamos.

A IL promete subir o salário médio líquido para 1 500 € em 2028. Chamei a isso, a 29 de janeiro, eleitoralismo arco-íris. Porque a não ser que o crescimento económico dispare loucamente, ou que a inflação cavalgue catastroficamente, a única forma de lá chegar é através não de um choque mas uma bomba fiscal – e nas contas públicas.

Só que a IL diz que o seu choque fiscal 1) “só” custa 4 a 5 mil milhões de euros, no total das medidas (incluindo IRC e IRS), e eu não percebo como. Nem eu nem ninguém, porque a IL nada explica, não chega sequer a detalhar o custo medida a medida. Mas não é com “4 ou 5 mil milhões” que se corta tanta taxa e se sobe tanto os salários. A não ser, claro, que se tenha a ingenuidade de crer que 2) o PIB desate a crescer com corte de impostos. Mais, como expliquei aqui, 3) a forma de financiamento dos “4 a 5 mil milhões” soa a invenção: cortar despesa fiscal com empresas em mil milhões é possível, mas isso é cortar apoios à capitalização, à valorização salarial, à investigação, e outras rubricas que as empresa utilizam; dizer que se paga mais 1,5 mil milhões com a venda da TAP é brincar, pois essa receita, se a houver, só existe num ano e nem sequer pode ser usada para despesa corrente, tipicamente serve para abater dívida pública; e dizer que o Estado tem de assumir “o resto” é outra forma de dizer mais dívida pública.

A Iniciativa Liberal, e Rui Rocha em particular, são melhores do que isto. Precisam de explicar melhor o que propõem.

Mas vamos ao 4), aos 35 mil euros e à taxa de IRS.

 

O que disse Rui Rocha

“Na Holanda, por exemplo, quem ganha 35 mil euros por ano, tem uma taxa de 9%; em Portugal hoje em dia já tem 37% e aquilo que o Rui Tavares quer é ainda mais progressividade, portanto o sinal é claro: com o Rui Tavares, como com o PS, quem quer subir pelo seu trabalho, não tem a possibilidade de o fazer.”

Mal acabou o debate, expliquei em direto na CNN Portugal que ninguém que ganhe 35 mil euros em Portugal paga 37% de IRS sobre esse valor.

 

Quanto paga de IRS quem ganha 35 mil euros?

A taxa de 37% é a taxa normal para o escalão de 26 355 € a 38 632 € (pode consultar as taxas de imposto aqui). Mas o IRS é progressivo e, portanto, é calculado e pago por “fatias” de rendimento (e cada fatia paga a respetiva taxa), e porque há deduções. Aliás, acrescentei, quem ganha 35 mil euros paga uma taxa efetiva de IRS de 14,56%.

Recebi várias mensagens questionando, dizendo que eu fiz mal as contas. Pois bem, eu nem sequer fiz contas: os dados são da Administração Tributária e Aduaneira (AT), que todos os anos publica estatísticas dos impostos de rendimento, incluindo do IRS. As últimas estatísticas disponíveis são as de 2021 e são elas que, na página 25 da folha de cálculo disponível no site, mostram este quadro:

Fonte: AT

Ou seja, quem teve um rendimento bruto entre 32 500 a 40 000 euros em 2021 pagou uma taxa efetiva de IRS de 14,56%. Não é sequer uma conta abstrata, é a realidade: o imposto que, efetivamente, foi suportada nesse ano pelos contribuintes que apresentaram rendimentos naquele intervalo.

(Nota: não se alarme com o facto de a tabela indicar que, entre 0 e 5 000 €, a taxa de tributação efetiva é de 16,57%, o que é muito elevado para um rendimento tão baixo: trata-se tipicamente de pessoas com rendimentos de capitais, rendas, e/ou situações em que não têm direito a deduções).

(Já agora, outra imprecisão de Rui Rocha, mas esta completamente aceitável, para efeitos de simplificação: o rendimento a considerar não é o Rendimento Bruto, mas o Rendimento Coletável. E este é, grosso modo, igual ao Rendimento Bruto depois da dedução específica de cada categoria. Esta dedução, para o trabalho dependente, é em geral de 4 104 € (como se pode ver aqui). Assim, um rendimento coletável de 35 mil euros corresponde a um rendimento bruto um pouco acima de 39 mil euros. Mesmo neste rendimento, a taxa média efetiva é na de 14,56%.)

Aliás, você pode ver a sua própria taxa efetiva. Está na sua declaração de IRS. Veja este exemplo, de um casal com dois sujeitos passivos, que no conjunto têm um rendimento global de quase 82 mil euros – muito mais do que os 35 mil do exemplo de Rui Rocha. Pela tabela atual, este casal estaria no escalão dos 43,5%. Mas pagou uma taxa efetiva de tributação de 23,66%.

Calcular o IRS é mais difícil do que parece (pode ver uma explicação aqui) - e pode nem nunca perceber como o Fisco lá chegou, porque a AT deixou de revelar a parte a abater. E tem tantas variáveis que o IRS é muitas vezes politizado. E, já agora, também muito pela esquerda. Quer ver?

 

Como se politiza o IRS (mas agora em versão esquerda)

Sim, há quem politize o IRS ao contrário. E diga que em Portugal se paga pouco IRS porque a taxa de tributação efetiva geral é de 13,53%...

É um outro caso de “com a verdade me enganas”: o facto é verdadeiro; mas, na minha opinião (e há opiniões contrárias), isto é tão enganador que a AT nem devia publicar este dado. Porque ele divide o IRS pago por todos os sujeitos passivos, incluindo os mais de 40% que não pagam qualquer IRS.

Segundo as mesmas estatísticas de IRS da AT (agora na página 42 da folha de cálculo), houve 5.575.084 (5,6 milhões) declarações entregues, mas só 3.256.426 (3,3 milhões) tiveram IRS liquidado: só 58,41% pagaram alguma coisa. E é este quadro que permite à AT escrever que “em 2021, para 41,59% dos agregados não é apurado qualquer valor de IRS”. Contudo, é contando com os 100% (os que pagam e os que não pagam) que a taxa efetiva geral é de 13,53%. Seria baixa se fosse para quem de facto paga.

(Pode ver quem está dispensado de entregar IRS aqui).

 

Como se politiza o IRS (mas agora versão governo)

Entre os mil truques para politizar o IRS, segue mais um. Recentemente, no Orçamento do Estado para 2024, o governo aprovou uma proposta do PS para que as despesas com trabalho doméstico passem a ser deduzidas ao IRS, ao lado de despesas como as de educação, saúde ou rendas. Boa notícia para a classe média, não é?

Nem por isso.

Porque o limite máximo às deduções à coleta não foi alterado. Pode deduzir mais itens, mas não pode deduzir um valor total maior. E muita gente da classe média já descontava o máximo.

Não vale de muito, mas é boa propaganda.

Já escrevi mil vezes que se pagam impostos de mais e que a catatonia do "quer destruir o Estado" do PS é um truque pouco honesto. Se assim fosse, então o PS estava a "destruir o Estado" com a descida de IRS deste ano. Foi o próprio governo que, depois de despejar milhares de milhões sobre a Saúde, reconheceu que afinal é um problema de gestão. É uma confissão: que não sabe governar, por mais dinheiro que cobre e gaste, é que acaba a "destruir o Estado". 

A Iniciativa Liberal gaba-se de fazer as contas que nunca ninguém faz, o que é muitas vezes verdade. Mas devia gabar-se também de fazer as contas… que toda a gente faz. 

 

 

Já eu sei bué de cenas

 

“Isto [uma sobretaxa de IMT sobre prédios de luxo] é o que se chama, em linguagem técnica, um imposto pigouviano. Ou seja, pretende arrefecer as externalidades negativas de um mercado.” Rui Tavares, no debate contra com Mariana Mortágua, 9 de fevereiro  

 

O lobo mau e a avozinha

“Eu vi o sobressalto da minha avó ao receber cartas do senhorio, porque não sabia o que é que lhe ia acontecer, e essa foi uma responsabilidade do PSD, que esvaziou as cidades.” Mariana Mortágua, 6 de fevereiro

Dois dias depois:

Rosa Pinto (à terceira tentativa): - “A sua avó cumpria esses requisitos à luz dos requisitos de arrendamento urbano de 2012?”
Mariana Mortágua – “Não faz muito sentido discutir as questões particulares.”

 

E já agora, nesse mesmo debate:
“Hoje eu sei que é dia 8, é dia de pagar rendas, sei que quando falar a minha mãe a seguir a este debate é uma coisa de que ela me vai falar”.  Rui Tavares, 9 de fevereiro

 

“Comigo não esperas nem mais um dia”

Se Pedro Nuno Santos vencer as eleições, o quando e o onde do novo aeroporto de Lisboa já está decidido: não é preciso ouvir mais ninguém, não é preciso estudar mais nada, vai ser em Alcochete. O líder do PS não o disse assim, mas disse assado.

“Comigo não esperas nem mais um dia”, respondeu ontem o candidato do PS ao jornalista António Costa no palco da conferência Fábrica 2030, do Eco. É para decidir logo. E a decisão parece já estar tomada: está indicada pela Comissão Técnica Independente e até já fora decidida antes pelo próprio Pedro Nuno Santos.

“O relatório é relativamente claro”, disse Pedro Nuno Santos, “eu não quero demorar”. Ora, o que o relatório escolhe é o destino de Alcochete. O mesmo que Pedro Nuno chegou a despachar em 2022, no célebre episódio em que o despacho acabou revogado pelo primeiro-ministro: Pedro Nuno queria então avançar primeiro com Portela + Montijo, enquanto Alcochete ia sendo construído.

 

Momento “vemo-nos lá fora”

Sobre debater com Pedro Nuno Santos: “Onde quiser, quando quiser, sobre o que quiser. Só tem de marcar o dia. Comigo.” Nuno Melo, Observador, 8 de fevereiro

 

Dois jotas entram num bar

Já está disponível o primeiro frente-a-frente entre líderes das “jotas”: Miguel Costa Matos, 29 anos, secretário-geral da Juventude Socialista, e Alexandre Poço, 31 anos, presidente da Juventude Social Democrata. Para ler e ver aqui.

 

Acompanhe o nosso Pulsómetro

Saldo na madrugada de 9 de fevereiro

O partido com assento parlamentar que teve menos votos em 2022 é até agora o que tem melhores notas médias no Pulsómetro. Veja os vencedores de debates segundo as redes sociais aqui.

 

Agenda para hoje

O PSD apresenta o programa eleitoral às 16h00.

E há três debates:
18h00 IL - PAN (SIC Notícias)
21h00 PS - Livre (RTP)
22h00 Chega - PCP (CNN Portugal)

 

Quem disse a frase? Solução

Quem disse “A melhor forma de aguentar [muito tempo] no governo é não fazer nada” foi Pedro Nuno Santos, esta quinta-feira na conferência Fábrica 2030, uma iniciativa do Eco. Dizer que o primeiro-ministro há oito anos ficou com as orelhas quentes já é maldade.

 

Por hoje não é tudo

Obrigado pela sua leitura. Recordo-lhe que hoje temos na CNN Portugal o debate entre André Ventura e Paulo Raimundo, pelas 22 horas. Veja no canal 7 da sua televisão – e acompanhe todo o dia no site. Até lá. E vamo-nos vendo por aqui.

 

 

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Newsletter diária de Pedro Santos Guerreiro sobre a campanha eleitoral das legislativas de 2024