Arrancaram-me os botões da camisa e um fio de ouro do meu baptismo, ele apareceu e resgatou-me. Ele: Artur Jorge (1946-2024)

22 fev, 17:49
Artur Jorge antes da partida do FC Porto para Viena, onde conquistou a Taça dos Campeões Europeus, em 1987 (Frank Leonhardt/picture alliance via Getty Images)

Fica para a história que Artur Jorge morreu aos 78 anos, mas a verdade é que a morte alcançou-o muito mais cedo: a morte da filha de 22 anos matou-o para a vida. E se calhar falhámos todos com ele, escreve Rui Santos. Que quer repor alguma justiça - e por isso escreve esta elegia a Artur Jorge na qual há quatro memórias acima de todas as outras (incluindo uma em que Rui Santos foi salvo de uma agressão maior e outra em que Artur Jorge foi mesmo agredido)

Artur Jorge: a morte que nos mata antes de morrermos

por Rui Santos
 

Morreu o “Rei Artur”, com 78 anos.

A morte não merece as pessoas boas, capazes de lidar com o Mundo apenas através do produto da sua integralidade.

A morte mata-nos em vida. Mata-nos os entes queridos e mata-nos antes de morrermos.

Nenhuma idade é boa para morrer e provavelmente o maior falhanço da Humanidade vai ser esse: não arranjar um antídoto contra a morte. Ou talvez não seja, afinal, um falhanço mas apenas o tributo da (in)existência e da sua temporalidade.

Fica para a história que Artur Jorge morreu aos 78 anos, mas a verdade é que a morte alcançou o ex-treinador do FC Porto e do Benfica e da Seleção Nacional muito mais cedo.

A morte da sua filha Francisca, aos 22 anos, “matou-o” para a vida. As perdas são sempre muito dolorosas e podem ser consideradas - todas - prematuras. Mas quando se perde alguém do círculo mais próximo na flor da idade e da vida — uma filha — não há reparação possível.

É a doença que se transforma num monstro e que consome, às vezes mais lentamente, outras vezes fulminantemente. Sempre de uma forma dolorosa e cruel. Apenas se procura a introspecção. A procura do eu. A melhor memória. A explicação das coisas que nunca acontece. Apenas porque não há explicação.

Artur Jorge era uma pessoa afável, mas profundamente introvertida. Nem sempre compreendida.

Fica ligado a um marco histórico na vida do FC Porto, quando em Viena esteve no comando da equipa que destronou o Bayern de Munique, conquistando a Taça dos Campeões Europeus, dando a volta ao marcador com aquele calcanhar mágico de Madjer.

Artur Jorge era, de facto, e à época, uma pessoa diferente, não canónica, e o percurso que fez talvez lhe tenha permitido acentuar as características do berço.

Jogar na Académica, dos “estudantes” de Coimbra, sob a batuta de Mário Wilson, tinha tudo que ver com o seu lado mais cultural, que não se coadunava com a imagem então formada segundo a qual a “malta do futebol”, era um bocado “bimba”, uma espécie de mundo subcultural, como se os livros tivessem de ir diretamente para a fogueira da intelectualidade.

Quando se olha para trás e se alcança a influência que Mário Wilson e José Maria Pedroto tiveram na vida de Artur Jorge, percebe-se muita coisa. Dois homens de enorme carisma, tão diferentes nas suas posturas mas tão iguais nas suas ironias, um mais lento nas fabricações e outro mais rápido nas conclusões, colocaram Artur Jorge no seu rumo. Um rumo ao qual o “Rei Artur” quis dar o seu cunho, o seu embalo, a sua marca pessoal.

Artur Jorge não foi igual a ninguém. Foi igual a si próprio.

Gostava de poesia, gostava de música clássica e gostava de ler. E então? Então é que não era uma coisa comum, a não ser através do exemplo das batinas — e de uma Académica que manteve, até não mais poder, a relação entre o futebol e a Universidade.

Artur Jorge era um jogador fino (ficou célebre o seu “pontapé de moinho”) e era um treinador fino. Jogava a bola e, como treinador, fazia jogar a bola. Está entre as figuras mais relevantes da história do futebol nacional e as gerações mais recentes talvez não tenham essa percepção, porque Artur Jorge retirou-se do fogo mediático nos últimos 20 anos, de uma forma em que o silêncio foi quase absoluto nos últimos 10.

O silêncio da doença e o silêncio motivado pelas agruras e pela infelicidade que bate à porta sem avisar.

Tenho muitas memórias com Artur Jorge mas há quatro que no dia de hoje estão ainda mais frescas:

PRIMEIRA MEMÓRIA Portimão, começo da década de 80, era Artur Jorge treinador do Portimonense, jogo com o Sporting para o campeonato. Eu já tinha estado recentemente a fazer uma outra crónica para A Bola, numa partida que o Portimonense havia perdido para o Amora e já a equipa algarvia tinha recebido o FC Porto, numa partida arbitrada por António Garrido em que houve mosquitos por cordas. Estava instalado o descontentamento com as arbitragens e com as críticas e, nesse jogo com os leões, voltou a haver queixas em relação à arbitragem, o Meszaros havia sido substituído a sangrar porque tinha levado um pontapé na boca e eu, como repórter, lá fui tentar apurar o estado do guardião húngaro. Quando o jogo acabou, encontrava-me junto da cabina do Sporting, que ficava em contacto com o público. Gerou-se uma grande confusão, arrancaram-me os botões da camisa e um fio de ouro do meu baptismo e a coisa teria sido bem pior se Artur Jorge não tivesse acorrido ao local, resgatando-me (com apoio de colegas da imprensa) da fúria dos adeptos visitados para a cabina do Portimonense.

São coisas que ficam para a vida.

SEGUNDA MEMÓRIA Primeira passagem por Paris, ao serviço do Matra Racing, depois de se ter sagrado campeão europeu pelo FC Porto, como aposta forte do clube francês - que tinha nas suas fileiras jogadores como Olmetta, Luis Fernandez e Enzo Francescoli. Havia dinheiro a rodos e Artur Jorge estava em alta. Uma reportagem para A Bola durante a qual, mais uma vez, Artur Jorge se comportou como um senhor que sempre foi.

Mais tarde, o regresso a Paris, ao serviço do PSG, campeão - e aceitou o convite de Manuel Damásio para ingressar no Benfica. A intervenção cirúrgica, delicada, a que foi submetido na época de 1994-95 marcou-o para sempre.

TERCEIRA MEMÓRIA Entrevista de fundo também para A Bola (há 35 anos!), estivemos horas a fio à conversa no seu apartamento em Lisboa, era uma rubrica em que os entrevistados se confessavam. Nessa entrevista, marcante, Artur Jorge afirmou que acreditava muito no futuro do futebol em Portugal mas que o futebol tinha de se livrar do problema da… droga. Na altura havia vários casos de ‘doping’ referenciados.

QUARTA MEMÓRIA O momento da agressão de que Artur Jorge foi vítima — e perpetrada por Ricardo Sá Pinto no Jamor, depois de uma não convocação e da alegada “sentença” do ex-seleccionador de que se tratava de um “jogador indisciplinado”. Sempre tive uma óptima relação com Sá Pinto, ele deu-me até o privilégio do exclusivo após esse incidente, mas ninguém podia entender o que se passou naquela tarde (do ano de 1997).

São memórias entre várias visitas ao Estádio das Antas para ver bom futebol e alguns dos intérpretes que marcaram o futebol em Portugal.

Faltou uma homenagem verdadeiramente nacional e talvez todos tivéssemos falhado, entre os silêncios de Artur Jorge, a maior parte dos quais forçados, em não marcarmos maior presença na sua vida.

A morte à vezes mata-nos antes de morrermos.

Descansa em Paz, Artur!

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