O adeus do oficial e cavalheiro do Inter

7 mai 2014, 10:43
Javier Zanetti

Javier Zanetti termina a carreira aos 41 anos

«No sábado, será a última vez no Giuseppe Meazza, e mesmo que a Curva esteja fechada por cânticos racistas, haverá muita gente e sei que estão a preparar algo. Quando sair do campo do Chievo Verona, na última jornada, de certeza que a minha carreira me passará pela mente como um filme. A minha mãe, o meu pai, a minha mulher, os meus três filhos, os amigos que me apoiaram todo este tempo. Uff, como vou quebrar.»


Reza a história que um dia Javier estava a ajudar nuns biscates de construção quando o pai Rodolfo lhe perguntou: «Gostas muito de futebol?» Javier respondeu que sim e com aquela afirmação aceitou tornar-se uma lenda futebolística. Ele ainda não o sabia, claro. Nesta terça-feira, ao La Nacion, que escreve aquela memória, revelou que se vai retirar quando a Serie A 2013/14 chegar ao fim. Ao cabo de duas décadas de futebol, Javier está «cheio de orgulho» pelo que fez.

Zanetti tem mais de mil jogos como profissional. Tem títulos e um troféu que ninguém lhe deu: o de guardião da moral e de valores, não só do Inter de Milão de toda a vida, mas também de todos os que praticam o jogo. Valores como a persistência. Aos 41 anos, cismou em recuperar de uma lesão sofrida no tendão de Aquiles, já esta época, e que o colocou fora dos relvados por seis meses. Conseguiu-o. Porque não seria a lesão a dizer-lhe quando devia acabar. 

Trator é um dos apelidos de Zanetti, aqui no Talleres, primeiro clube profissional



A carreira começou num clube modesto de Buenos Aires. Foi o irmão Sergio que o levou para o Talleres de Remedios de Escalada. Zanetti tinha andado pelo Independiente, ficou livre e o irmão puxou-o para o muito mais modesto emblema que Sergio representava como sénior.

«Creio que foi contra o Racing de Córdoba, no campo do Talleres. Estávamos 1-1 a sete minutos do final. Ele pegou na bola na nossa pequena área, fez o campo todo, e entre a pequena e a grande área do Racing passou-me a bola, para a marca de penálti. Eu fiz golo e fui festejar para o outro lado, onde estava o meu irmão. Depois vi que ninguém me vinha abraçar. Estavam todos agarrados ao Pupi. Não me restou se não atirar-me para cima deles.»

Hector Baillié foi o autor deste golo, a passe de Zanetti que se estreava em 1992 como profissional. Já conhecido como Pupi, os companheiros do Talleres adivinhavam-lhe sucesso e uma ascensão rápida. A única temporada na segunda divisão da Argentina foi suficiente para convencer o Banfield, que subira à primeira. Zanetti ia jogar no escalão maior.

Por pouco tempo. Zanetti vestiu de verde e branco entre 1993 e 1995, ano em que chegou ao Inter. 

Com o irmão Sérgio, já depois de ter assinado pelo Banfield




A história é contada por um amigo pessoal do Pupi num documentário feito na Argentina. Os responsáveis italianos estavam de olho em Sebastian Rambert. Mas um jovem Angelomario Moratti assistia aos Jogos Panamericanos de 95 pela televisão. Gostou de Zanetti e decidiu recomendá-lo ao pai, Massimo, presidente do Inter desde fevereiro.

Em junho, Zanetti e Rambert chegaram a Milão. A época de 1995/96 foi a única que jogaram juntos, porém. O filho Moratti, afinal, viu melhor pela televisão o que os olheiros não viram in loco.

«Que mais me surpreende na minha carreira? Os números, as estatísticas. Quando penso que tenho 1112 jogos, que sou o quarto da História do futebol com mais partidas e que os três que estão à minha frente são guarda-redes [Peter Shilton, Rogério Ceni e Ray Clemence]; que sou o único argentino a superar a barreira dos mil, que sou o estrangeiro que mais jogou no calcio e que apenas Paolo [Maldini] me supera no futebol italiano. Que ninguém jogou mais do que eu num clube com a grandeza do Inter e na seleção do meu país. Isso pesa-me e por vezes pergunto-me: “Eu fiz isso tudo?” E depois encho-me de orgulho.»

No Inter, Zanetti escreveu uma história de sucesso. Venceu cinco campeonatos de Itália, quatro Taças e o mesmo número de Supertaças. Na Europa, começou por vencer uma Taça UEFA em 1997/98. Aliás, o currículo de Zanetti é por demais conhecido. Os sentimentos já não.

«Quando peguei no troféu da Liga dos Campeões e o coloquei ao lado do meu cacifo, no balneário, falei com a taça. Disse-lhe que a tinha perseguido durante muito tempo e que, finalmente, ela estava nos meus braços.» A seguir, venceu o Mundial de Clubes.

O pior treinador, Mourinho, e o jogo que queria mudar

Zanetti tem mais de mil jogos na carreira. No Inter, mais de 800. Por ele passaram jogadores e treinadores. Ou seja, ele foi como o clube. Enquanto outros passaram, ele ficou. Ainda assim, el Pupi, que com o tempo passou a ser também conhecido como Il Capitano, não esqueceu a influência de quem estava no emblema nerazzurri quando ele chegou.

A sua autobiografia chama-se «Jogar como homem». Que significa? «Sobretudo, jogar com valores, com correção e vontade de deixar algo de importante a quem nos vê», respondeu no dia em que a apresentou. O histórico Fachetti foi mentor de ideias e Zanetti também seguiu Bergomi: a fundação PUPI, que criou, nasceu depois de se ter envolvido num projeto solidário com o antigo capitão nerazzurro.

Zanetti passou a porta estandarte do Inter. Respeitado por adversários, fez-se primeiro respeitar no próprio clube. Terá sido ele a confrontar Marcelo Lippi depois de o técnico ter dito em Reggio Calabria que os jogadores mereciam um pontapé no rabo. «Fiquei chateado. Acho que não foi um modo apropriado para se dirigir ao grupo. Os erros podem acontecer, mas há sempre maneiras indicadas para se dizer às pessoas o que fizeram mal.»

No relvado, Zanetti era um poço de força, as suas arrancadas ficaram famosas



Lippi foi apenas um dos muitos treinadores que Zanetti teve no Inter. «Mancini fez um grande trabalho», considerou sobre o italiano. «Foi muito triste o modo como Hector Cúper saiu do clube. Era muito fiável e capaz, mas acabou por pagar o preço do que aconteceu naquele 5 de maio, quando perdemos o título (na última jornada)», lamentou sobre o compatriota que o orientou em 2002.

O pior de todos, porém, foi Marco Tardelli. «Foi um ano doloroso. Perdemos o dérbi por 6-0 e alguma coisa se rompeu nesse dia. Não sei se ele foi mesmo o pior, mas é aquele a quem tenho menos afeição.»

No campo oposto, Mourinho. «Aqueles dois anos ficarão para sempre nos corações dos adeptos do Inter.» Como ficará Zanetti. Nas palavras do treinador do Chelsea, respondendo a um potencial assédio ao camisola 4, com uma declaração que ia bem para lá do contrato do argentino: «Zanetti pertence ao Inter.»

Apesar da carreira ímpar, há jogos que Zanetti gostava de repetir. «Um para desfrutá-lo de novo, outro para lhe mudar o destino. Voltaria a jogar a final da Champions em 2010 para revisitar essa noite mágica. E daria tudo para jogar outra vez e ganhar a partida com a Suécia, que nos deixou fora do Mundial da Coreia/Japão.» Também na albiceleste, pela qual detém o recorde de 145 jogos, teve momentos tristes como aqueles e outros mágicos, como este golo à Inglaterra.




Zanetti passará depois para um cargo no Inter. «Com camisa e gravata? Espero que não», respondeu ao La Nacion, que terminou a entrevista com esta pergunta. Alguma vez te zangas? «Sim, mais vezes do que as pessoas imaginam. Mas mesmo nos momentos desagradáveis devemos ter atenção aos modos.»

Deve ser por isto que um primeiro livro sobre Zanetti se chama Capitão e Cavalheiro.

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