Argumento a favor do exército europeu comum: "dá músculo". Contra: os EUA podem não gostar. A favor: deixaremos de estar "pendurados na NATO". Contra: o mundo não precisa de um "terceiro superpoder"

5 mai 2023, 07:00
Tanque Leopard 2 (EPA)

França já esteve contra, França já esteve a favor e assim continua: a Europa precisa de um exército comum europeu. Problema: não é consensual. Por isso: discuta-se, é o que fazemos aqui. “Mandar soldados portugueses combater para um lado qualquer por ordem de Bruxelas é sempre controverso”

“A Europa não pode seguir cegamente os Estados Unidos da América”, disse o presidente francês, Emmanuel Macron, durante a sua visita a Pequim, onde sublinhou que a Europa arriscava ser arrastada para um conflito que não é o seu em Taiwan. Implícito nas palavras de Macron estava um projeto antigo, lançado na década de 50 por Chales De Gaulle mas que nunca se concretizou: um exército europeu comum. 

“Há uma falta de visão tremenda na União Europeia e um exército comum daria à Europa aquilo que lhe falta: músculo. Nós somos uma grande potência económica, ninguém o nega, mas temos uma política externa de Defesa a la carte, que é ineficaz e ineficiente. Podemos continuar pendurados exclusivamente na NATO mas, no final do dia, quem lá manda são os Estados Unidos”, afirma o major-general Agostinho Costa.

O início da invasão russa na Ucrânia veio expor as fragilidades da Defesa europeia, marcada por décadas de desinvestimento que se traduziram numa incapacidade de fazer chegar à Ucrânia o material necessário o mais rapidamente possível, mesmo existindo vontade política para o fazer. Os vários países do bloco europeu viram as suas reservas de armamento entrarem em níveis críticos apenas nos primeiros meses de combate. A Alemanha, a maior economia europeia, observou as suas pequenas reservas de munições atingirem níveis críticos que durariam apenas para alguns dias de combate real.  

A falta de preparação surge, em parte, devido ao facto de uma grande parte dos países europeus ter passado décadas a investir abaixo dos níveis necessários, com muitos dos países a não atingirem sequer o gasto de 2% do PIB na Defesa, sugeridos pela NATO. No campo do investimento, são os Estados Unidos são os que mais investem na Defesa, com 778 mil milhões de dólares anuais, seguidos da China, que gasta 292 mil milhões, e da Rússia, com 86 mil milhões. Quase todos os países europeus estão fora do pódio dos que mais investem em Defesa mas, todos juntos, aplicaram 345 mil milhões de dólares na sua defesa.

“Os países da União Europeia têm uma grande quantidade de soldados, um grande orçamento, mas sofrem de uma grande ineficiência e de uma grande ineficácia. Basta olhar para a Ucrânia, onde há uma absoluta incapacidade de conseguir fazer chegar o material necessário”, reforça Agostinho Costa.

Tal como os Estados Unidos, China e Rússia, que possuem indústrias de Defesa próprias, países como Alemanha, França, Reino Unido, Suécia, Espanha e Itália também possuem empresas que, além de garantirem milhares de empregos altamente qualificados e bem remunerados, também contribuem fortemente para a subida do PIB. Abdicar desses empregos e do aumento do PIB nunca é uma opção política popular. O resultado é uma duplicação de esforços que torna os exércitos europeus extremamente ineficientes. Um documento de 2014 da própria União Europeia dá conta de um desperdício de 26,4 mil milhões anuais devido a esta duplicação e à capacidade excedentária que se cria em alguns sistemas na União.

F-16 da Força Aérea portuguesa a levantar voo (Lusa)

Por exemplo, um soldado norte-americano tem ao seu dispor pistolas, espingardas, metralhadoras e armas antitanque - são 27 sistemas disponíveis. Na Europa existem 154 diferentes. Cada um deles requer investigação e desenvolvimento, que acaba por ter reflexo no preço pago pelos mesmos. O mesmo acontece com veículos blindados de transporte de pessoal - existem nove tipos nos EUA e 37 na UE. Na Europa existem 19 tipos de aviões de combate, um número superior quando comparado com os 11 norte-americanos.

“Há, de facto, imenso a fazer em termos de cooperação europeia na área da Defesa, não só na área da indústria mas particularmente em tudo o que passa pela harmonização do material militar”, aponta o eurodeputado do PSD Paulo Rangel, que sublinha, no entanto, que é “totalmente contra a ideia de um exército europeu”.

Neste sentido, a União Europeia já começou a dar os primeiros passos, com o Parlamento Europeu a aprovar, na terça-feira, a criação de um incentivo para a aquisição conjunta pelos Estados-membros de armamento e munições e para a contratação pública colaborativa na área da Defesa. O Parlamento Europeu propõe mil milhões de euros para o orçamento deste mecanismo até 2024. No entanto, este mecanismo ainda tem de ser discutido em plenário e receber a aprovação da maioria dos 705 eurodeputados. E mesmo nesse caso, uma vez que as decisões do Parlamento Europeu não têm carácter vinculativo, pode nem sequer ser adotada pelos 27 Estados-membros da União Europeia.

França contra, França a favor - e o terceiro superpoder

A ideia de criar um exército europeu comum não é nova. Na verdade, remonta mesmo a final da guerra da Coreia, na década de 50, quando os Estados Unidos, com receio de que a Alemanha Oriental invadisse a Alemanha Ocidental, propuseram a criação da Comunidade de Defesa Europeia - que combinaria os exércitos de França, Alemanha, Itália, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo, com um comando supranacional. França, com receio de perder soberania ao libertar o controlo sobre o seu exército, rejeitou a proposta.

Uma década depois, seria a mesma França, pelas mãos de Charles de Gaulle, a tentar reformar a Comunidade Económica Europeia numa espécie de aliança militar. Isto porque na visão de de Gaulle, tal como Macron, os interesses europeus nem sempre estão alinhados com Washington. O líder francês chegou mesmo a retirar o seu país da estrutura de comando da NATO. No entanto, muitos dos países europeus preferiram estar salvaguardados militarmente por Washington e, no final, Charles de Gaulle fracassou.

Mais uma vez, é o presidente francês a chefiar o movimento de criação de forças armadas comuns na União Europeia. E este movimento começou a ser verbalizado em 2018, em conjunto com a então chanceler Angela Merkel, mas os obstáculos são semelhantes aos que existiam no passado. Muitos países europeus estão confortáveis com as garantias defensivas oferecidas pela NATO e temem que a criação de uma força europeia possa vir a minar as relações com os Estados Unidos, tornando a Europa um terceiro pilar de um mundo cada vez mais multipolar.

“Defendo que se faça um pilar europeu da NATO, com todas as responsabilidades militares no território europeu a serem asseguradas por figuras militares europeias, em coordenação com os EUA, até para aliviar a fatura que os americanos pagam na Defesa da Europa. Um exército comum criaria o risco de tornar a Europa um terceiro superpoder entre a China e os Estados Unidos”, reforça Paulo Rangel.

Preparação da Força de Intervenção Muito Rápida da NATO (EPA)

Diferentes países têm diferentes interesses em regiões totalmente distintas do mundo. A criação de um exército supranacional pode levar a situações em que soldados de um determinado país são chamados para lutar por interesses opostos aos do seu país. Esta ideia é vista com muita relutância por muitos chefes de Estado, em particular do leste da Europa, que veem cada vez mais os Estados Unidos como um parceiro fiável, segundo um estudo de 2022 do Pew Research Center. O estudo acrescenta ainda que o sentimento em relação à NATO é cada vez mais favorável desde a invasão russa.

“Mandar soldados portugueses combater para um lado qualquer por ordem de Bruxelas é sempre controverso”, frisa Agostinho Costa.

Essa ausência de objetivos externos comuns pode tornar-se perigosa e minar a possibilidade de criar essa força conjunta. Dentro da própria União Europeia existem diferentes posições em relação à questão do Kosovo, diferentes formas de olhar para a questão entre Israel e a Palestina. Até mesmo no que toca à Ucrânia, onde tem sido encontrada uma impressionante unidade europeia, países como a Hungria têm tentado travar algumas das posições quase consensuais que surgem na Europa.

“Acredito que há possibilidade de ressuscitar fantasmas antigos na Europa. Devemos salvaguardar esses apetites que surgem e tentar conter os génios dentro da garrafa”, frisa Paulo Rangel.

O precedente

Muitas das bases legais que permitem caminhar na direção de um exército comum até já foram criadas. Em particular com a base jurídica criada com o Tratado de Lisboa, que entrou em vigor em 2009 e que estabelece o quadro da Política de Defesa e de Segurança Comum. Este mecanismo permite aos países da União “desenvolver uma cultura estratégica europeia de segurança e defesa, abordar os conflitos e as crises em conjunto, proteger a União e os seus cidadãos e reforçar a paz e a segurança internacionais”.

Agostinho Costa recorda que já existe também uma organização que, apesar de ter causado muita controvérsia na sua criação, se assemelha ao que pode acontecer com o estabelecimento de uma força militar europeia conjunta: a Frontex, a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, criada para dar supostamente dar resposta à crise migratória e proteger as fronteiras europeias. A agência tinha acesso a uma reserva de recursos humanos e materiais dos Estados-membros, que podia utilizar. Mas, a partir de 2021, a Frontex passou a poder contratar os seus próprios oficiais.

“Há uns anos, a constituição da guarda de fronteiras, que também causou muita controvérsia, acabou por ser formada. A Frontex tem um corpo próprio e depois os países destacam para lá meios e pessoal. Temos vários polícias que estão lá destacados por seis anos e há meios policiais que são colocados ao serviço da Frontex”, destaca Agostinho Costa.

Mas existem outros exemplos de integração na União Europeia: a Bélgica e os Países Baixos, por exemplo, decidiram integrar as suas marinhas num só comando. As tripulações dos navios são treinadas na Bélgica, em Bruges, e os Países Baixos comandam os navios. Algo semelhante está a ser feito entre a Alemanha e os Países Baixos, mas focado no exército. A 13.ª Brigada Ligeira, sediada no município neerlandês de Oirschot, na província de Brabant, passará a fazer parte de uma divisão panzer (unidade blindada) alemã, resultando numa unidade de infantaria com uma força combinada de 50 mil soldados.

Um modelo a seguir

A forma de concretizar a constituição de uma força comum é também ela sujeita a um intenso debate. Os seus críticos apontam que é uma forma de “perder soberania” e que passa pela perda de poder, ao abandonar o controlo das forças armadas nacionais. Para Paulo Rangel, esta é uma situação que pode ser particularmente má para Portugal, que não devia “prescindir de ser um vértice do triângulo com os EUA e o Reino Unido” e manter “uma Europa atlântica”.

“Um exército europeu com um vértice hierárquico próprio é mau para um país como Portugal. Claramente levaria a uma perda de soberania e de controlo militar. Iria criar problemas muito graves, até porque o que está em causa não é só poder político e militar, mas também uma questão simbólica sobre se nós gostaríamos de que a Europa seja parte de um bloco ou uma terceira superpotência”, refere Paulo Rangel.

Militares portugueses (Lusa)

Porém, outros garantem que esse é o caminho a seguir para quem quer uma Europa Federalista. O modelo sugerido pelo major-general Agostinho Costa aproxima-se, por isso, do modelo norte-americano. Nos Estados Unidos existe o exército federal, que está às ordens do presidente do país, e a guarda nacional, uma força militar à disposição do governador de cada um dos 50 estados. Para o militar português, é possível manter uma força militar nacional capaz de cumprir missões específicas aos interesses e objetivos do país, à semelhança da guarda nacional americana, enquanto as Forças Armadas comuns seriam responsáveis pela Defesa comum e pela projeção de força no estrangeiro.

Por isso, sugere a criação de um corpo de exército, uma estrutura de comando com capacidades de lançar operações no exterior e capaz de coordenar operações em terra, no ar e no mar. Agostinho Costa insiste ainda que é preciso que a União Europeia invista mais em “enablers estratégicos”, como capacidades de transportar militares, abastecer aeronaves em pleno voo, capacidades espaciais, capacidades cibernéticas e capacidades marítimas.

“Um corpo de exército seria um embrião das forças armadas europeias. Obrigaria a União Europeia a ter um orçamento da Defesa maior, mas os países podem reduzir a nível nacional. Os europeístas acreditam nisto. É preciso andar no sentido do federalismo, quem não quiser tem de sair”, conclui o major-general. 

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