Gangues juvenis: “É altamente preocupante” a facilidade “com que pegam e usam” armas

6 jul 2023, 06:56
Crime

São mais de 30 gangues e mais de 700 jovens que estão no radar na Polícia Judiciária, na região de Lisboa. João Oliveira, responsável pela Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo da PJ, falou sobre este fenómeno numa entrevista à CNN Portugal. Acredita que há uma ligação entre a pandemia e a subida de casos e confessa estar preocupado com o nível de violência e a facilidade com que os jovens usam armas

O aumento de homicídios entre os mais jovens, em 2022, surpreendeu as autoridades e o Governo. Não era um fenómeno novo, mas nunca tinha tido números tão elevados. O Executivo acabou mesmo por criar uma Comissão para analisar o assunto. João Oliveira é o nome responsável pela Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo (DLVT) da PJ e falou com a CNN Portugal sobre o tema. As polícias agiram no terreno e, segundo garantem, o número de casos baixou, estando estáveis. João Oliveira não tem muitas dúvidas de que a pandemia teve um papel importante nestes 'boom' de casos. Na região de Lisboa, a PJ "controla" mais de 30 gangues e mais de 700 jovens.

A criminalidade juvenil e a ação dos gangues juvenis têm aumentado na região de Lisboa?

Notou-se claramente que no primeiro semestre de 2022 houve uma atividade muito mais intensa. Em bom rigor esta curva ascendente de casos não cessou no final do primeiro semestre. O calendário não virou no dia 30 de junho do ano passado. Naturalmente este tipo de situações entrou pelo verão e só, depois, a partir de setembro/outubro é que começou a cair e a cair muito. 

O fenómeno não é novo. Recuamos no tempo e vamos a 2007, 2008. Em Portugal houve situações já com alguma visibilidade. Na primeira década de 2000 houve algumas situações, o fenómeno começou a ser falado na comunicação social. Depois entrou num registo mais calmo.

O fenómeno voltou no ano passado com mais força?

Voltou. Sobretudo no pós-pandemia. Temos de admitir que há aqui alguma ligação e temos que admitir com uma base muito objetiva. E qual é a base objetiva? Fazer uma comparação, entre 2019, 2020, 2021 e 2022. Já havia situações em 2019, naturalmente. Mas não eram estes números. 

Em 2019, no que diz respeito aos homicídios - tentados ou consumados - fazendo aqui um pacote geral, tivemos sete situações. Envolvendo jovens, num universo de 106 casos, houve sete casos. Em 2022 tivemos 135 casos, no total de homicídios. E 24 eram casos relacionados com atividade dos gangues juvenis.  Ou seja, aqui é um salto de sete para 24. Representa, em termos absolutos, um aumento de 242%, mas em termos reais não é assim, porque os números não são números muitíssimo elevados.

O que é absolutamente significativo é este grande diferencial entre sete em 2019 e 24 em 2022.

A pandemia poderá ajudar a explicar este aumento de números em 2022?

Não há sombra de dúvida de que a pandemia teve aqui efeitos. Os confinamentos e aquelas restrições todas. Depois é um efeito ‘boom’. Quando agitamos a garrafa do espumante, já sabemos. Quer dizer, a garrafa do espumante em condições normais, quando se abre, já tem algum gás. Agora se agitarmos, o que é que acontece? 

Estava ali contido, ainda ia tendo algumas manifestações, claro que sim. Mas depois deu-se a libertação. Havia muito gás que estava ali acumulado. Ou seja, a dimensão covid-19, a dimensão pandémica, teve seguramente aqui um papel também ele importante.
A curva ascendente foi subindo. No arranque do ano começa de forma tímida. E depois começa a subir, a subir, a subir. Entra no verão, e o calor convida a um conjunto de excessos. Depois do verão, começa então a decair e entra numa linha de estabilização, pelo menos até ao final deste primeiro trimestre de 2023.

O que nos revelam os dados de 2023?

Baixou e está estável. Posso dizer que no quarto trimestre de 2022, ao nível de homicídios, tivemos um total de 25. Destes, dois tinham ligações a estes casos – gangues juvenis. No primeiro trimestre, deste ano, tivemos um total de 29 situações de homicídio, sendo que no que diz respeito aos gangues juvenis, temos três situações.

Quais serão os motivos para os números terem baixado e estabilizado no fim de 2022 e, agora, em 2023?

Vários. Há alguns que são tangíveis, podem não explicar totalmente, mas ajudam. Houve uma grande intervenção policial, não só a nossa, da Polícia Judiciária, como também dos colegas de outras polícias. Foram feitas muitas detenções. Naturalmente isto tem impactos e tende a fazer baixar a manifestação do fenómeno. E deu seguramente um contributo importante para que começasse a baixar. 

Trata-se de um efeito dissuasor da prática, pelo menos, desta tipologia de crimes mais graves. E também, do ponto de vista, depois do grupo, tem este potencial de dissuadir nos outros. 

A detenção de elementos dos gangues faz tremer as estruturas destes grupos?

Temos percebido um fenómeno interessante: nalguns dos grupos, nos mais importantes, com mais atividade, mais visibilidade, não existe necessariamente um grande líder. Têm alguma capacidade de regeneração, uma mobilidade interna, vão-se adaptando. As estruturas do poder dentro do próprio gangue não são necessariamente muito rígidas, são dinâmicas.

O facto de um ou outro elemento mais preponderante ser detido, influencia mais pelo aspeto da prevenção em si, do que propriamente pela dificuldade que o grupo tem em fazer reagrupamento e continuar no mesmo registo. 

Quantos gangues juvenis existem?

Estão identificados um conjunto significativo, cerca de 30. Grupos e também há subgrupos. Depois há subgrupos que surgem, existem durante algum tempo e depois acabam. Nós temos umas centenas de indivíduos identificados, centenas largas de indivíduos identificados.

E qual a quantidade de jovens envolvidos? Por volta de 700 a 800?

São umas centenas largas. Isto não é ciência pura e exata. Por volta disso.

Estão normalmente em zonas geográficas específicas? 

Isso é uma das características típicas. É a intensa associação de um determinado grupo a uma determinada zona, a uma concreta zona: o bairro. Isso é inquestionável.

E quais são essas zonas?

As zonas são sem surpresa: Loures, Odivelas, Amadora, Sintra. Portanto, estamos a falar de municípios aqui à volta de Lisboa. Já Lisboa propriamente dita, não.

Há uma intensíssima ligação, e utilizo aqui deliberadamente o superlativo dos grupos associados, ao bairro. É quase como se fosse uma comunidade muito fechada. Com uma dinâmica própria de existência e muito coesa. Com um nível de identificação entre eles muito forte.

É quase um "nós contra os outros"?

Não é um quase; é mesmo um "nós contra os outros". Aliás entre as características subjacente à prática destes crimes graves, estão as rivalidades entre os grupos. Eles desafiam-se, e combinam inclusivamente, encontros para se digladiarem. Não é só o grupo contra alguns cidadãos, é também o grupo contra o grupo. Há rivalidades e essas rivalidades são manifestadas em agressões físicas combinadas e, algumas delas, de consequências muito graves.

Desafiam-se e deslocam-se do sítio A para o sítio B para se encontrar com indivíduos, com membros do outro grupo. Os níveis de coesão são muito fortes, ao ponto de se antagonizarem muito facilmente com membros de outro grupo. 

Há vários pontos comuns entre estes grupos?

É certo que é possível encontrar entre os múltiplos grupos um conjunto de denominadores comuns. É muito mais aquilo que os une do que aquilo que os separava. 

Há características comuns como serem do bairro. Ou seja, a vivência do bairro. São também de estratos sociais desfavorecidos e de famílias destruturadas. Há um  fortíssimo pendor em termos de ascendência e a esmagadora maioria é de origem africana. 

Há também outras pontos em comum. O gosto musical. O contexto de drill, variante do Hip Hop. Aquele tipo de música com as letras que lhe são características, que apelam à violência, passando também pelo desafio à autoridade, à norma instituída. Portanto, as fontes de inspiração são as mesmas. E há o recurso naturalmente ao mundo digital.

Além dessa rivalidade e da violência grave que os números revelam, estes grupos estão ligados a outro tipo de crimes?

O que é o mais importante é o que no nosso mundo real, de facto, há um conjunto alargado de miúdos que se organizam desta forma. Estes grupos ou estes gangues não são necessariamente uma associação criminosa no sentido técnico ou jurídico.

Há a prática de outros crimes, mas subjacente à criação do grupo, não estão os pressupostos que são típicos de associação criminosa. Move-os um conjunto ou outro de intenções, de ideais e se quisermos também uma apologia da violência. E, associado a isso, vem a prática de alguns crimes, desde logo contra a propriedade. Mas não é que as coisas tenham sido, ao início, pensadas, estruturadas, desenhadas com aquele fim concreto. Depois é a oportunidade que vai surgindo.

Consegue dar algum exemplo de crimes que estes grupos tenham cometido sem ser o de violência entre eles?

Nós tivemos, aqui, ao nível dos crimes contra a propriedade e contra as pessoas, algumas situações de crime de roubo. E para serem da competência de Polícia Judiciária, tem que ser com uso de arma de fogo. 

Eram coisas, algumas até, relativamente simples. Através do OLX, anúncios de venda de objetos, por exemplo, atraíam as pessoas ao bairro, a um determinado bar, a um determinado local. As pessoas iam levar o bem, um tablet, o que fosse. Coisas de mais ou menos fácil transporte. E com algum valor.

Depois ligavam a dizer ‘é melhor entrar ali e tal’. Entram e depois já têm muita dificuldade em sair sem consequências.

Isto é um exemplo de situações que tivemos aqui e tivemos de forma reiterada. Era um dos modos operandi, digamos assim, que era utilizado no que diz respeito aos roubos.

Estes dados são apenas da região de Lisboa?

Estes números são referentes à área geográfica da diretoria de Lisboa e Vale do Tejo. Não é a nível nacional. Agora, sem sombra de dúvida, isto é, de longe, a realidade mais representativa do país no que diz respeito a este fenómeno.

E de que faixas etárias estamos a falar?

A criminalidade juvenil, do ponto de vista técnico, essa, mais grave, é quase inexpressiva. Ou seja, em bom rigor, não há gangues juvenis, no sentido jurídico que vigora em Portugal. Porquê? Porque seria abaixo dos 16 anos.  A partir dos 16 já há responsabilidade criminal.

Aqui, quando falamos de gangues de juvenis, é uma designação mais alargada. E que vai até aos 25 anos. Sendo que a grande fatia é entre os 18 e os 22, 23. 

Foi criada uma comissão pelo Governo para analisar este fenómeno.

Há uma Comissão de análise integrada da delinquência juvenil e a criminalidade violenta. A Polícia Justiça faz parte dela e eu sou representante. Este assunto tem de ser debatido. 

Temos de compreender ou, pelo menos, perceber o fenómeno e adequar medidas e caminhos a seguir. E com uma grande virtualidade que é esta: a abordagem tem sido muito transversal. É multidisciplinar, tem muitas entidades diferenciadas. É intergovernamental, porque envolve cinco ministérios - Justiça, Saúde, Educação, Trabalho e Segurança Social. E isto é bom.

Nós completámos há pouquíssimo tempo uma fase dos trabalhos que foi a audição de um conjunto muitíssimo alargado de pessoas. Sociedade civil, inclusive os próprios jovens. Houve jovens que foram ouvidos. Jovens que integram associações, jovens que estão em centros educativos. 

Tenho de acreditar -  e  eu acredito - na bondade do trabalho que está a ser levado a cabo. Depois tem de haver a capacidade de ser consequente. E nesse caso é o poder político que tem essa essa faculdade. 

Entre o tipo de armas que os jovens usam há armas de fogo. Como é que acedem a elas? 

É fácil, é um mercado negro, é um mercado próprio, é um submundo. Tocou aqui num aspeto que para mim é um aspeto chave. O grupo até pode ter coisas boas, a libertação de energias, a música, o desenvolvimento de algumas competências pessoais. Mas é particularmente preocupante os elevados índices de violência subjacentes a algumas condutas de natureza criminal. A facilidade com que com que eles pegam em armas, com que pegam em facas, com que pegam em armas de fogo. E quando eu digo a facilidade com que pegam, quero dizer a facilidade com que pegam e usam. Isto é altamente preocupante.

Há uma desumanização entre os jovens?

É um ângulo possível de leitura. É chocante a expressão, naturalmente. Perceber o que é que está por trás. Tem de haver claramente uma dissociação de um quadro de valores que tem de ser vinculativo para todos nós.
E em idades muito baixas, há um uso maior das armas e uma maior gravidade dos fatos. Os homicídios, felizmente, nem todos são consumados, mas são tentados. Não são consumados, mas isso é a casuística, pois a linha de fronteira entre o consumado e o tentado é a sorte.

Mesmo sendo jovem tem de haver esta noção. Sabem que há zonas do corpo que são particularmente vulneráveis. Se me espetarem ou derem um tiro na perna, eu posso ter azar. Podem-me apanhar a femoral e eu não ser imediatamente assistido e morrer. Mas a probabilidade é muito maior se me atingirem na zona do peito. 

Algum caso que se recorde?

Estou-me a lembrar de um jovem de 14 anos que foi vítima. Rivalidades de grupos. Encontraram-se e o miúdo foi atacado. Não foi com uma arma de fogo, foi com uma catana. Ficou gravemente ferido numa perna, uma lesão muitíssimo grave e a criança foi amputada. Resultou numa amputação, um dano corporal gravíssimo, irreversível num jovem de 14 anos que integrava um grupo. Mas que não deixa de ser uma criança com 14 anos.

O problema não é a existência dos grupos per si. Mas cada vez mais a génese do grupo estar também associada à violência. Há um caminho, há uma pré-orientação para o uso da violência. Isso é altamente preocupante. 

O grupo é sedutor para o jovem e estamos a falar do bairro com as características que já falámos. O grupo é muito sedutor e há aqui o fenómeno da substituição. O grupo acaba por dar aquilo que o jovem não encontra no outro lado. Mas é o sentimento de pertença, ele sabe que alguém o vai defender, tem uma família.

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