São o mesmo que nudes e são usadas como "moeda de troca" em grupos online. Pode um terceiro intervir quando vê fotos de crianças nas redes sociais?

31 mar, 18:00
Família e tecnologia (Alexander Dummer/Unsplash)

O sharenting é o nome dado à partilha de informação dos filhos menores por parte dos pais nas redes sociais, o que pode incluir fotos e vídeos. Em causa está uma prática que "viola um princípio e um direito" consagrado na Constituição Portuguesa

Percorria a página principal de uma das suas redes sociais, quando surgiu uma foto de uma menina "toda fofa", que vestia apenas cuecas, com o resto do corpo exposto. A publicação, aparentemente inofensiva, feita pela mãe da visada na imagem, despertou a inquietação de Cristiane Miranda, que ficou "em dúvida" sobre se devia alertar a progenitora para os perigos da partilha. Pode (e deve) um terceiro intervir numa situação destas?

"Um terceiro pode e deve fazer queixa", afirma a advogada Patrícia Baltazar Resende, analisando o ponto de vista legal. A especialista em direito das crianças explica que todas as pessoas, incluindo os menores, têm "o direito à imagem", que está consagrado na Constituição Portuguesa e que dá luz vermelha à captação de imagem ou vídeo sem o consentimento do envolvido. 

A partilha de informação dos filhos menores, que passa muitas vezes por fotos na praia ou a tomar banho, até já tem um nome: sharenting. Trata-se de um termo que resulta da "combinação das palavras partilha [share] e parentalidade [parenting] e é utilizada para descrever os pais que partilham informações pessoais sobre os seus filhos online, que podem ser palavras, imagens e/ou vídeos", lê-se no estudo EUKids de 2020.

"Sim, consubstancia um crime. Publicar fotos a mostrar que estou com o meu filho na praia ou no restaurante x é uma violação a um princípio e um direito consagrado - o da reserva da intimidade e da vida privada", argumenta Patrícia Baltazar Resende. 

A imagem de qualquer pessoa tem, como explica, "proteção penal" e a parentalidade "tem tido um papel de sobreposição aos direitos das crianças", em vez do "equilíbrio" que deve estar subjacente a tais funções e que "começa numa coisa essencial": "a proteção e a segurança".

"A imagem não pode ser usada com os nossos critérios e sem ter em consideração os direitos de terceiros, nomeadamente das crianças. Parece caricato dizer 'gosto desta foto, vou partilhar, importas-te?'", observa. A advogada frisa que "as crianças deverão dar consentimento para que se possa publicar, mas são muito pequeninas e não conseguem dá-lo".

Patrícia Baltazar Resende, apesar de admitir que a lei dá "ferramentas suficientes para que as publicações que são feitas sejam muito arbitrárias", avisa que o "bom senso deve imperar" e que cabe aos pais assegurar "a segurança e a proteção" dos filhos.

As crianças têm o "direito à imagem" e os pais devem "a segurança e a proteção" dos filhos, diz Patrícia Baltazar Resende (Pixabay)

Fazer queixa não é, no entanto, sinónimo de "punição". "Pode cometer-se uma infração, que é muito diferente de uma punição. É preciso ser um crime público, ou seja, um tipo de imagem que capte traços íntimos e situações de intimidade ou vida sexual, para que aconteça alguma punição", esclarece.

Se o terceiro for o outro progenitor do menor, a situação já se desenrola de forma diferente. "O progenitor pode agir legalmente e referir que está a ser violado o direito à imagem do filho e que não teve conhecimento disso bem como o filho", explica a advogada.

Avançando ou não para uma queixa, Patrícia Baltazar Resende, que defende que o tema deve ser "legislado de outra forma, sem tanta abrangência e de forma mais limitada", defende que "como sociedade devemos estar sempre muito atentos". E foi precisamente isso que fez Cristiane Miranda: agir e falar com a mãe cuja publicação a inquietou.

"Os pais não têm assim tanta consciência dos riscos e de quem pode estar do outro lado a ver. O perfil até pode ser privado, mas quem vê pode mandar a imagem para outras pessoas a dizer ‘olha que fofa a filha da minha amiga’ e perde-se o rasto da foto", considera a cofundadora do Agarrados à Net, um projeto que aborda a parentalidade digital.

Tudo porque em causa estão fotografias que à primeira vista são inofensivas e publicadas com uma "motivação de carinho e de amor", como explica Tito de Morais. Mas, na realidade, de acordo com a psicóloga Ivone Patrão, estas imagens "não são muito diferentes das nudes" - "são apenas publicadas pelos pais e o objetivo não é expor".

"Apesar de para a generalidade das pessoas a foto parecer inócua, os pais não têm perceção de que as imagens podem ser usadas por pessoas com perturbações mentais como objeto de desejo e que até podem usá-la como moeda de troca para entrar em grupos online onde têm acesso a outras fotos", continua o cofundador do Agarrados à Net.

E foi o que Cristiane Miranda pensou quando se deparou com a tal foto: "Pode ser usada por pedófilos." "Na nossa mente estas fotos são uma coisa fofinha, mas quando me disseram que há quem esteja a ver e a masturbar-se com estas fotografias isso bateu-me", explica.

O estudo EUKids utilizou, em 2020, uma amostra da população entre os nove e os 17 anos de 19 países e provou que os pais portugueses são dos menos atentos às partilhas nas redes sociais; 29% dos jovens revelaram que os pais publicam fotografias suas online sem o seu consentimento; 14% já pediu aos progenitores para remover conteúdos seus e 13% reconheceu  que já foi alvo de comentários devido a essas partilhas.

29% dos jovens portugueses disseram, em 2020, que os pais publicam fotografias suas online sem o seu consentimento (Pixabay)

Como agem as plataformas perante as publicações dos pais?

A idade mínima para criar uma conta no Instagram ou no Facebook é de 13 anos. Já o WhatsApp só pode ser usado a partir dos 16. Os menores acabam, ainda assim, por entrar nas plataformas ainda antes. Muitas vezes, isso acontece quando são bebés, ainda que indiretamente através das partilhas dos progenitores.

"Há plataformas que permitem fotos de crianças nuas, outras não", explica Tito de Morais. A parceira Cristiane Miranda acrescenta que as redes sociais "identificam e têm pessoas a olhar com olhos humanos para determinadas fotos", sendo "algumas automaticamente vistas e retiradas".

É preciso ter, no mínimo, 13 anos para criar uma conta no Instagram ou no Facebook e 16 para usar o WhatsApp (Pexels)

E se um terceiro está a passear pelas plataformas e se depara com uma foto de um menor, partilhada pelo seu pai ou pela sua mãe, e isso o incomoda, como aconteceu à cofundadora do Agarrados à Net, há algo que se pode fazer. "Todos os utilizadores podem denunciar determinada foto", constata.

"Mas vamos denunciar o quê? Porque é que uma plataforma vai retirar uma fotografia de um bebé fofinho meio despido que a mãe partilhou? É um pai ou uma mãe a publicar. O que temos a ver com a educação que os pais estão a fazer?", questiona.

Cristiane Miranda garante que "não há muito a fazer" e que "têm de ser os pais a terem consciência destes perigos". "Cabe aos pais regularem", concorda Tito de Morais.

Pegada digital, bullying, partilha de dados

A partilha de informações sobre os menores pelos pais nas redes sociais pode projetar-se para o futuro e impactar de forma negativa a vida dos que se deparam com elas anos mais tarde. "Uma vez na Internet para sempre na Internet", reforça a psicóloga Ivone Patrão.

Estes conteúdos vão alimentando a pegada digital dos filhos à medida que vão crescendo e estes "não têm controlo" sobre ela, já que as imagens são "facilmente replicáveis e pesquisáveis". "Os pais estão a criar a pegada digital dos filhos e não têm noção disso. As imagens são mais permanentes do que as relações", alerta Tito de Morais.

Ivone Patrão, que afirma que as crianças referem estas situações de forma "descontente" nas formações que faz em escolas, antecipa que, quando crescem e têm consciência e idade para compreender, os filhos se deparam com "um mundo sobre si que não escolheram", o que pode impactar a saúde mental de forma negativa. Impacto este que pode passar pelo bullying e pelo ciberbullying, por vezes feito em torno destas imagens.

Há, para além disso, perigos a nível da segurança com a partilha de dados, ainda que muitas vezes seja inconsciente. "Deixa de existir vida privada, porque é exposta e, a partir daí, tudo pode ser possível. Todas as consequências podem advir daí", diz a advogada Patrícia Baltazar Resende.

"Quando partilhamos fotografias, não estamos a ter em atenção a quantidade de informação que estamos a partilhar, desde o uniforme da escola, o sítio das férias, as coisas que se tem em casa", constata Cristiane Miranda. "Todos temos rotinas e partilhar fotos do dia a dia permite reconstituir os locais por onde as pessoas passam. É um exemplo de como estamos inadvertidamente a partilhar conteúdos pessoais", alerta Tito de Morais.

Os cofundadores do projeto Agarrados à Net relembram um acontecimento que foi partilhado com os mesmos. "Uma menina de oito ou nove anos publicava muitas coisas no seu perfil e a própria família também. Partilhavam até fotografias da casa e o pior acabou por acontecer: duas pessoas entraram na casa e foram direitinhas aos locais onde queriam ir e levaram a menina também. E isto foi cá", relatam, em conjunto.

Tito de Morais e Cristiane Miranda, cofundadores do Agarrados à Net, durante uma ação numa escola. O projeto aborda, entre outros temas, a parentalidade digital

"Orgulho" ou "puro egoísmo": porque é que os pais o fazem?

Numa altura em que tanto se fala de segurança na Internet e em que se ouvem casos chocantes, importa entender as motivações por detrás da exposição dos filhos pelos pais no mundo digital.

"A maternidade e paternidade é algo que enche os pais de orgulho e de felicidade e há uma tendência para partilhar os momentos de felicidade com o mundo através das redes sociais", observa Tito de Morais. O especialista em segurança na Internet admite que "os pais não têm noção dos perigos", publicando as imagens por olharem para elas com "carinho e amor". 

Mas há mais do que isso. "Partilhar fotos é uma forma de nos sentirmos amados e aceites pelos amigos. Tem a ver com egoísmos e necessidades próprias", garante Cristiane Miranda, instando os pais a questionar-se sobre "qual a necessidade que tentam colmatar" com as publicações que fazem.

Estas "necessidades" são muitas vezes preenchidas com os likes e os comentários. "Há mais pessoas a dizer-nos 'estás gira' nas redes sociais do que na rua. É um sítio onde as pessoas sentem que são recompensadas, como algo que as acolhe e acabam por partilhar os filhos, onde moram e até imagens íntimas sem pensar se é bom ou mau", indica Ivone Patrão.

Este sentimento de "recompensa" leva, frequentemente, a "questões de dependência". "Estar nas redes sociais pode gerar dopamina no cérebro e sensação de bem-estar e, se alguém se sente mais vulnerável e encontra nas redes um escape, vai querer estar lá e partilhar sobre si e os seus", afirma a psicóloga, explicando que vigora "a perceção de que é um mundo restrito onde se está protegido e que não é assim tão alargado".

"Ninguém ensina os pais a gerir isto e muitas vezes o bom senso não chega. É normal ter dificuldade", conclui Cristiane Miranda.

Ser pai ou mãe enche, por norma, uma pessoa de felicidade, mas muitas vezes a partilha de momentos deve-se ao "egoísmos", diz Cristiane Miranda (Pexels)

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