Como a Europa quer reduzir a dependência da economia chinesa

ECO - Parceiro CNN Portugal , Nuno Carregueiro
17 ago 2023, 08:14
Xi Jinping com os novos líderes da Força de Mísseis Wang Houbin à esquerda e Xu Xisheng à direita, após a sua promoção ao posto de general em Pequim, a 31 de julho de 2023. Li Gang Xinhua via AP

A China é um “parceiro, concorrente e rival sistémico” da Europa, que agora pretende reduzir da dependência do país asiático. Se o objetivo é claro, o caminho é incerto e não está isento de riscos.

De-risking e decoupling. Estas duas palavras têm sido utilizadas de forma mais frequente nos comunicados oficiais da União Europeia e estados-membros, bem como nas declarações dos políticos europeus, traduzindo uma nova abordagem nas relações políticas e económicas com a China.

O objetivo passa por reduzir a exposição e dependência (de-risking) da Europa face aquela que é a segunda maior economia do mundo, sem que tal traduza um corte profundo nas relações (decoupling) entre as duas economias. Este desígnio tem sido assumido de forma explícita pela União Europeia nos últimos tempos, numa abordagem mais dura face à China que reflete a posição de proximidade de Pequim face a Moscovo, após a invasão da Ucrânia por parte da Rússia.

Apesar da intenção de reduzir a exposição à economia chinesa, são escassas as medidas concretas anunciadas nesse sentido e não é ainda claro como a União Europeia pretende implementar esta estratégia que é repleta de riscos, efeitos secundários potencialmente negativos e que pode acentuar a divisão do mundo em blocos opositores que represente um travão adicional à globalização.

Esta posição europeia mais firme não passará de retórica política com efeitos económicos incipientes? Ou irá além de comunicados e declarações de políticos, traduzindo-se efetivamente num conjunto de medidas e decisões que vão reduzir o comércio e fluxo de investimento entre a Europa e a China? São dúvidas que devem persistir nos próximos tempos e dependem também da resposta de Pequim a potenciais ações adotadas nas capitais europeias.

Europa clarifica posição

A China é atualmente o maior parceiro comercial da União Europeia, tendo superado os EUA em 2020, concluindo um período em que os países europeus abriram as portas ao investimento chinês e as empresas europeias apostaram forte no mercado chinês em busca da expansão do consumo neste país com mais de 1,4 mil milhões de habitantes e um mercado interno e classe média em crescimento.

Esta posição mais clara da Europa foi transmitida num curto comunicado emitido após o Conselho Europeu de 30 de junho, onde a China é identificada em simultâneo como “parceiro, concorrente e rival sistémico”. O objetivo passa por manter a segunda maior economia do mundo como um “importante parceiro económico e comercial”, embora com uma relação “equilibrada, recíproca e de benefícios mútuos”.

As designações de “concorrente” e “rival sistémico” são utilizadas em Bruxelas desde 2019 e contrastam com a aproximação encetada em 2013, quando foi celebrada uma parceria estratégica entre os dois blocos. A mensagem transmitida agora é bem diferente. Por um lado, o objetivo passa por “reduzir a dependência crítica e vulnerabilidade, incluindo nas cadeias de abastecimento, pelo que o de-risking será implementado onde se considerar apropriado e necessário”. Contudo, os líderes europeus descartam “o objetivo de cortar laços” com a China, “ou fecharem-se no mercado interno”.

Escaldada pelo resultado desastroso da forte dependência da Rússia no abastecimento energético, a Alemanha publicou pela primeira vez um documento onde é definida a estratégia nas relações económicas com a China, país que há sete anos lidera o comércio com a maior economia europeia.

relatório inédito, revelado a 13 de julho pelo governo germânico, replica em grande parte a posição assumida pelo Conselho Europeu, defendendo a “redução urgente dos riscos” nas relações com a China, embora “rejeitando um ‘desligamento’ entre as duas economias”.

Assumindo que é necessário “alterar a nossa abordagem” porque a “China mudou”, Berlim identifica diversas áreas onde as ações de Pequim estão a “aumentar os riscos para a segurança, soberania e prosperidade” da Alemanha. O objetivo passa por “reduzir a dependência em setores críticos”, combatendo o objetivo de Pequim em assumir um papel crucial nas cadeias de abastecimento globais.

Neste âmbito, a Alemanha já aprovou subsídios superiores a 20 mil milhões de euros para a instalação de fábricas de produção de chips no país, visando anular a escassez de um produto essencial para uma série de atividades que foi evidente na recente crise das cadeias de abastecimento global.

A segurança é um dos fatores que mais preocupa os europeus, tal como é evidente num relatório publicado a 8 de julho pelo Parlamento britânico. Os serviços de inteligência britânicos e norte-americanos concluíram que a China representa a maior ameaça de segurança das últimas décadas para o Ocidente. Colocando em causa as reais ambições da China na economia do Reino Unido, o Parlamento britânico assinala que as relações económicas entre os dois países deterioraram-se nos últimos anos e identifica os ciberataques e a espionagem industrial como os principais perigos oriundos da China, que classifica de “inadequados” e “cada vez mais sofisticados”.

O afastamento da chinesa Huawei das redes de 5G em diversos países europeus, tal como se verificou em Portugal, é um dos vastos exemplos que estão a ser adotados na Europa para reduzir os riscos de segurança face à China, embora seja apenas uma pequena parcela de uma verdadeira estratégia de de-risking.

Nos EUA, a preocupação com a ameaça da China em questões de segurança é ainda mais evidente, sendo um ponto crucial na política externa da administração liderada por Joe Biden. O presidente norte-americano assinou, na semana passada, uma ordem executiva que restringe o investimento de empresas dos EUA em “países problemáticos” como a China, nas tecnologias de ponta e sobretudo em inteligência artificial, computação quântica e semicondutores avançados.

O objetivo da Casa Branca passa por “defender a segurança nacional americana protegendo as tecnologias críticas da próxima geração de inovações militares”. A Comissão Europeia já fez saber que está a analisar “de perto” esta decisão e “em contacto próximo com o governo dos Estados Unidos”, esperando “uma cooperação contínua sobre esta matéria”.

“Equilíbrio entre a dependência económica e independência política”

Dias depois de apresentado o relatório sobre a China, o chanceler alemão efetuou declarações que aumentaram as dúvidas sobre as intenções da Alemanha em reduzir efetivamente a exposição à economia chinesa. “O de-risking não traduz um projeto de curto prazo, uma vez que diz sobretudo respeito a decisões que têm de se adotadas pelas empresas”, referiu Olaf Scholz, acrescentando que no passado as empresas assumiram riscos elevados ao ficarem dependentes apenas de um fornecedor.

Scholz efetuou uma visita de Estado a Pequim em novembro do ano passado, acompanhado de uma forte delegação empresarial que gerou desconforto em Bruxelas. Dias antes tinha aprovado a entrada da chinesa Cosco no capital da companhia que gere o estratégico porto de Hamburgo. A Alemanha comprou mercadorias à China no valor de 191,1 mil milhões de euros (+33,6%) em 2022, enquanto as exportações para o país asiático foram bem inferiores (106,8 mil milhões de euros).

Outros líderes europeus, como Macron, Sánchez e Meloni, têm levantado a voz nas declarações contra a China, mas também adotam iniciativas para melhorar o ambiente de negócio das suas empresas neste país asiático e fazem fila para visitas oficiais a Pequim e assinatura de acordo bilaterais. Um comportamento que faz crescer as dúvidas sobre a implementação efetiva da estratégia de de-risking europeia.

Niclas Poitiers, economista especialista em comércio internacional do think tank Bruegel, assinala o compromisso entre “a necessidade de abordar os riscos nas relações económicas da Europa com a China e os interesses económicos e políticos num maior envolvimento”, o que aliado às decisões de cada país, “dá o sinal às empresas e investidores que têm de pensar seriamente sobre a sua exposição à China”.

Jorge Botelho Moniz, diretor de Estudos Europeus na Universidade Lusófona, considera que o “desafio de fundo da UE prende-se com o equilíbrio entre a dependência económica e independência política”. Assinala que “uma coisa é depender dos EUA, país que faz parte das mesmas organizações internacionais e comunga a mesma visão da ordem internacional; outra coisa é depender da China, país que quer forjar uma nova ordem internacional, com princípios (políticos) e valores (económicos) diferentes, e que deseja uma secundarização do Ocidente à escala global”.

Botelho Moniz destaca que Bruxelas “está a tentar diminuir os riscos associados à sobredependência de Pequim, procurando parceiros que ajudem à diversificação da economia europeia”, mas este processo, “tal como sucedeu com o gás russo, levará tempo e gerará tensões no bloco”. Assinala também que a “dependência europeia no que respeita, em especial, ao lítio e ao magnésio (essenciais para a construção de baterias ou chips), mostra a sua falta de autonomia estratégica”.

Diferentes abordagens

Niclas Poitiers vê três abordagens principais para a Europa lidar com a redução da dependência da economia chinesa: “melhorar a resiliência da nossa economia, diversificar as cadeias de abastecimento e os mercados de exportação e criar dissuasão contra a coerção económica chinesa”.

“A política industrial desempenha um papel importante, mas dada a posição da China na diversificação das cadeias de abastecimento globais através da política comercial será mais importante”, refere o economista do Bruegel, acrescentando que, “para muitas indústrias que dependem de fornecimentos chineses, o recurso à economia europeia de salários altos não será uma opção viável comercialmente”.

Botelho Moniz salienta que a Europa tem de garantir a viabilidade do mercado interno europeu, o “núcleo duro do funcionamento da UE”, ao mesmo tempo que define uma estratégia “para garantir o sucesso da transição económica/verde – aquela que deveria ter sido uma das maiores transições industriais da história, liderada por Bruxelas e que ajudaria a redefinir o lugar da Alemanha e da Europa na economia global”.

Para lá chegar, existem duas vias potenciais, diz o diretor de Estudos Europeus na Universidade Lusófona. Ou os países da UE “encontram, rapidamente, novos parceiros comerciais que lhes garantam cadeias de abastecimento mais seguras e um level playing field mais justo”, ou “ultrapassam o tabu da exploração de recursos naturais nos territórios dos próprios Estados-membros”. Se a primeira opção permite reduzir a dependência chinesa, “com a segunda, as empresas europeias poderiam gradualmente substituir as importações da China, reforçando o mercado interno e, por consequência, o sentimento de integração europeia”.

Tendo em conta as trocas comerciais entre Alemanha e a China, já evidente uma diminuição no comércio entre os dois países, uma tendência que é justificada sobretudo pelo abrandamento das duas economias, mas também pode traduzir este objetivo de redução de dependência face ao país asiático. As exportações alemãs para a China representaram apenas 6,2% do total da maior economia da Zona Euro no primeiro semestre deste ano, o que representa o nível mais baixo desde 2016.

As empresas alemãs exportaram 49,5 mil milhões de euros para a China entre janeiro e junho, um valor inferior ao registado para os EUA, França e Países Baixos. A braços com um abrandamento económico pronunciado, as exportações chinesas para o Ocidente estão a recuar de forma pronunciada. Caíram 23,1% para os Estados Unidos e afundaram 20,6% para os países da União Europeia.

As retaliações de Pequim

Pequim não perdeu tempo a responder ao maior afastamento europeu. O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros Qin Gang (entretanto desaparecido), comparou o de-risking a desestabilização e outras expressões em inglês iniciadas por “de” que equivalem a retrocesso, complicação e inconveniente. O seu substituto na liderança da diplomacia chinesa, Wang Yi, solicitou que a União Europeia clarifique a sua posição.

Antes da resposta, Pequim decidiu restringir a exportação de gálio e germânio, dois minerais cruciais para as indústrias de semicondutores, telecomunicações e veículos elétricos, bem como para a descarbonização da economia europeia. A UE importa da China 71% do gálio e 45% do germânio que consome.

“A menos que soluções novas e eficazes sejam encontradas, qualquer retaliação chinesa tem um potencial de destabilização da UE”, adverte Botelho Moniz, admitindo uma “escassez de bens e uma diminuição do crescimento económico que alimentaria a inflação”, pois “dificilmente as empresas europeias poderiam oferecer serviços e produtos ao mesmo preço baixo dos chineses”, o que evidencia a “dificuldade em desatar a interdependência sino-europeia”.

Num cenário de corte de laços profundo entre a Europa e China, com retaliações fortes por parte de Pequim, o diretor de Estudos Europeus da Universidade Lusófona vê duas consequências. Na frente económica a UE “estagnaria rapidamente” e na política “passaria a ser encarada como um junior partner de Washington por ter cedido às suas pressões – algo que afetaria o seu perfil internacional nesta nova ordem internacional em recomposição”.

Niclas Poitiers destaca que “a Europa depende de fornecimentos chineses em muitas áreas diferentes, mas os de maior interesse atual são os produtos de tecnologia limpa’, como painéis solares e baterias para veículos elétricos”. O economista do Bruegel lembra que a “China recorreu a proibições de importações e boicotes de consumidores no passado para penalizar outros países, pelo que devemos procurar mercados de exportação alternativos para os nossos produtos”.

Consequências relativamente limitadas para Portugal

Portugal foi dos primeiros destinos do investimento direto chinês na União Europeia, com diversas companhias estatais do país asiático a assumirem posições de controlo em companhias de setores estratégicos como a energia e a banca.

Apesar de admitir que “não se pode descartar a hipótese de a economia portuguesa sair prejudicada, no caso de a UE tomar uma posição mais assertiva de de-risking”, Botelho Moniz assinala que “não faltam boas razões para acreditar que o nível de de-risking será devidamente calculado (em articulação com a retórica relacionada com a guerra) e que trará consequências relativamente limitadas no que respeita a países como Portugal”.

“Na impossibilidade de a UE fazer uma dissociação muito assertiva face à economia chinesa, restar-lhe-á uma retórica mais assertiva que tenderá a ter impactos não extraordinariamente significativos nos seus Estados-membros, tal como Portugal”, conclui o diretor de Estudos Europeus da Universidade Lusófona.

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