Samuel recebeu uma dívida de 77 mil euros para pagar à Câmara de Loures em nome do pai, que faleceu em 2003
Casa na Quinta da Fonte, Loures. Habitação. Foto: Teresa Abecasis/CNN

Samuel recebeu uma dívida de 77 mil euros para pagar à Câmara de Loures em nome do pai, que faleceu em 2003

Reportagem
Teresa Abecasis

Câmara de Loures reclama milhões de euros de dívidas em atraso de quase metade dos inquilinos dos bairros municipais. Moradores queixam-se de terem sido abandonados durante anos pela autarquia. Uma política de habitação de costas voltadas

Uma das entradas para o bairro da Quinta da Fonte, em Loures, é através da estrada nacional 250. Junto a um cartaz do Partido Socialista onde se pode ler escrito em enormes letras garrafais vermelhas “Sim, estamos a fazer”, vira-se para a Rua Ary dos Santos, espreita-se um enorme relvado adornado com umas dezenas de palmeiras e entra-se no meio de um lote de apartamentos amarelos com base amarelo-torrado. É uma imagem de marca do bairro.

Na avenida José Afonso, a principal, há dois ou três cafés, uma mercearia, um restaurante. Numa esquina, uma senhora vende roupa, noutra está um senhor com caixas de fruta. Aproveitando a sombra das entradas dos prédios, outra vendedora prepara cuscuz caseiro de milho e arroz que vende em copos de cinquenta cêntimos. Parecem pequenos bolinhos. É nesta rua que passam os autocarros da Carris com ligação ao Campo Grande. Num final de tarde quente de junho, esta rua é um ponto de encontro para moradores de todas as idades.

Inês aproveita o dia de folga para estar com os amigos no café. Na casa dos 30 anos, cresceu no bairro, conhece a sua fama e avisa logo que “nunca teve problemas a entrar aqui a qualquer hora do dia ou da noite”. Não quer dar o seu nome verdadeiro, mas não se importa de partilhar a sua história. Já não mora aqui, comprou casa num bairro próximo, mas é como se ainda morasse. Sempre que pode vem visitar a mãe e os amigos. Motorista da Carris, costuma conduzir a carreira que atravessa o bairro. “No outro dia, vinha no autocarro e alguém estava a falar com outra pessoa por videochamada, a filmar o bairro e a dizer que estava a passar por aquele bairro perigoso. Apeteceu-me ir lá corrigir, mas como estava no meu posto de trabalho, mantive-me calada.”

À entrada de outro prédio, Samuel Semedo, 32 anos, descansa depois de um dia de trabalho na construção civil. Também ele cresceu ali e ainda vive no bairro. Lembra-se da mudança, em 1996, do Prior Velho para a Apelação, freguesia a que pertence a Quinta da Fonte. Os prédios ainda não estavam todos acabados, Samuel ainda se lembra de ver os esgotos destapados. Os pais e cinco filhos tiveram direito a um T3, onde ainda vive até hoje. Os pais morreram, a casa agora é partilhada por cinco irmãos, uma cunhada e uma criança.

A habitação estava em nome do pai, que morreu em dezembro de 2003. Nessa altura, a renda passou de seis euros para 323 euros. A mãe estava desempregada, Samuel tinha 12 anos e os irmãos também eram menores. O único rendimento que tinham era o abono de família. Samuel conta que nunca conseguiram atualizar o processo. Depois de fazer 18 anos, em 2010, tentou falar com a autarquia para regularizar o arrendamento, mas nessa altura responderam-lhe que a sua situação estava com o gabinete jurídico da Câmara. Entretanto, a mãe morreu, em 2015. O processo arrastou-se até este ano.

Há uns meses, foi informado de que a família tinha uma dívida de 109 mil euros, que depois foi baixada para 77 mil euros, para pagar à autarquia.

Em março, a Câmara de Loures apresentou a Samuel uma lista de rendas em dívida em nome do pai, Felisberto Semedo. A primeira prestação em falta data de março de 2003, o mesmo ano em que o pai morreu. Foto: DR

Samuel recebe o ordenado mínimo e não sabe como vai devolver este valor. Durante anos, diz que nunca teve qualquer resposta, nem ninguém visitou a casa. De repente, a situação mudou. “Aquilo que perderam, querem ganhar agora, à custa das pessoas.”

“Já fomos às reuniões. Já entregámos os papéis todos. Eu queria ter resolvido isto há mais anos. Agora é que nos dizem que são 77 mil euros.” Neste momento, está à espera da proposta da Câmara de um plano de pagamentos, mas teme que possa ser incomportável.

“Apareciam nas eleições, arranjavam uma lomba na rua, diziam para irmos votar e não voltavam a aparecer.”

Aida Marrano, presidente da Associação de Moradores Unidos da Apelação, confirma, em conversa telefónica com a CNN Portugal, que existe um serviço “muito burocrático e demorado” por parte da Câmara de Loures para resolver questões relacionadas com o pagamento das rendas.

“Por qualquer razão, a vida das pessoas muda e elas pedem revisão de renda. Ficam anos à espera e as rendas acumulam”, explica. Por outro lado, os anos da pandemia vieram agravar a situação porque muitas das pessoas que vivem nestes bairros têm empregos que não podiam ser realizados em teletrabalho. “Há casos de pessoas que ficaram desempregadas e que não conseguiram pagar.”

Samuel Semedo, com a tia no bairro da Quinta da Fonte, para onde se mudou quando tinha cinco anos. Imagem: DR

 

02
“O tempo para olhar para o lado acabou”

554 casas das cerca de 800 habitações na Quinta da Fonte são propriedade municipal. As restantes são propriedade privada. O projeto inicial pertenceu a duas cooperativas que tiveram problemas financeiros e acabaram por vender a maior parte dos lotes à Câmara Municipal de Loures. Construído em 1996, na Quinta da Fonte foram alojadas muitas das pessoas que viviam em barracas nos terrenos onde foram construídos os acessos à Expo 98, que transformou a zona oriental de Lisboa. 

Dez anos depois, o bairro tornou-se conhecido pelas piores razões: um tiroteio obrigou a uma forte intervenção policial e atraiu horas de diretos na televisão. Já passaram vinte anos, mas a imagem e a sensação de insegurança perduram. 

Mas, agora, “o tempo para olhar para o lado acabou”. As palavras são do presidente da Câmara de Loures, Ricardo Leão (PS), citado pelo jornal Público no dia 29 de maio. A câmara anunciou um Plano Extraordinário de Recuperação de Créditos e Regularização de Dívidas da Habitação Municipal para tentar recuperar um passivo de 15 milhões de euros em rendas não cobradas, indemnizações moratórias e saldos dos planos de regularização de dívidas. 

“O tempo para olhar para o lado e fingir que nada se passa acabou. Isso já foi. Passámos demasiado tempo sem agir.” Estas palavras soam a ultimato. Em conversa com a CNN Portugal, a vice-presidente da autarquia, Sónia Paixão, que tem o pelouro da Habitação, prefere falar em “justiça, cumprimento das obrigações, envolvimento e participação”.

À entrada da Quinta da Fonte, em Loures, há um enorme relvado adornado com palmeiras. Foto: Teresa Abecasis/CNN

De acordo com dados da autarquia, quase metade dos 2570 inquilinos das duas dezenas de bairros municipais e ainda dois agrupamentos de fogos dispersos pelo concelho não paga a renda. 1225 agregados familiares têm três ou mais faturas por liquidar. A maior parte das rendas rondam os dez, 20 ou 30 euros. Como se chegou, então, a um passivo de 15 milhões? 

Sónia Paixão admite ainda que poderá ter havido alguma “inércia que se poderá dizer de parte a parte, mas o culpado maior é quem reside dentro dos fogos, que sabe que tem um contrato de arrendamento”. 

“Durante muitos anos não foi feita qualquer intervenção no parque público municipal, sobretudo no interior dos fogos”, diz, em entrevista à CNN Portugal, garantindo que também isso irá mudar, tendo como “indexante o cumprimento por parte do arrendatário das suas obrigações”. 

A maior parte dos devedores (844) têm dívidas até aos 3800 euros, sendo que o tempo médio de incumprimento ronda os cinco anos. 241 agregados familiares devem mais de 7600 euros, como é o caso de Samuel. 

O plano apresentado pela Câmara prevê um prazo máximo de 30 meses para pagamento das dívidas. Dividido por esse número de prestações, os 77 mil euros de Samuel dariam um pagamento superior a 2500 euros mensais. Sem contar com a atualização da renda. Sónia Paixão garante que o plano de pagamento será ajustado “à capacidade económica das famílias”. E reitera: é preciso “disciplinar a utilização do património habitacional público” e acabar com um “clima de impunidade e incumprimento”.

03
Moradores e autarquia de costas voltadas

Rolando Borges, da Plataforma pela Habitação de Loures, trabalha há três anos num projeto de proximidade com a Quinta da Fonte. Vê no discurso da câmara vontade de resolver um problema que, ressalva, também é da responsabilidade do próprio município e do Estado quando, há 27 anos, iniciaram o processo de realojamento. “Não se desloca milhares de pessoas em poucos meses e se fica à espera que corra tudo bem.” 

“Faltam palavras” nas declarações mais recentes da autarquia, sublinha Rolando, ele próprio antigo morador de um bairro precário de Loures, o do Talude. Aos 15 anos, fundou a Associação para a Mudança e Representação Transcultural e desde então esteve sempre muito atento às questões da habitação. Passaram 20 anos e, entretanto, formou-se em Ciências Sociais com especialidade em Sociologia. 

“Faltam palavras. Tem de se reconhecer que houve erros. Porque é que hoje se está a por uma ordem de despejo a alguém que tem uma dívida de milhares de euros e porque é que este problema não foi atacado à nascença? A câmara e o próprio Estado português desresponsabilizaram-se durante muito tempo destas situações.” 

O sociólogo recorda a origem do bairro para explicar os problemas que hoje ali se sentem. “O formato em que fez o realojamento devia ter acautelado um acompanhamento social permanente aqui no bairro até as coisas assentarem nos eixos.” 

“É preciso pensar noutras áreas de atuação para alem da construção da habitação: a preparação dos moradores para virem morar aqui, a interação entre eles, a criação e o reforço da necessidade de os moradores se organizarem para quando se estraga alguma coisa.” O problema é antigo e já foi identificado em outros realojamentos realizados noutras áreas do país. "Não é só a questão da habitação que é preciso resolver. Há famílias que estão com problemas específicos que vão encalhar na habitação.” 

Regressando à Quinta da Fonte e a 2023. “As pessoas queixam-se de que ninguém fez nada durante muitos anos, a câmara queixa-se de que as pessoas não cuidam do que lhes foi dado.” Rolando Borges vê um problema que só se resolve com novas fórmulas. “Todas estas dinâmicas são alimentadas por falta de um tecido social forte. Quem tem a obrigação de criar este tecido social forte é quem programou o realojamento. A gestão do território não pode ser abandonada um único dia.”

04
A história repete-se

“Todos os anos me pedem a mesma papelada e não fazem nada.” Sentada no seu escritório do centro educacional Escolhas P’ra Vida, na Quinta da Fonte, Nancy Gonçalves, 36 anos, deixa escapar ao mesmo tempo um desabafo e uma certa resignação. Há três anos que espera por uma casa da Câmara de Loures para si e para os dois filhos, de 4 e 2 anos. 

O pedido de habitação foi feito quando ainda estava grávida da filha mais nova. Depois de viver cinco meses numa casa de abrigo para vítimas de violência doméstica, Nancy ainda chegou a voltar para casa do ex-marido antes de perceber que não podia mais. Instalou-se, então, na casa do pai, no bairro da Quinta da Fonte. A mesma casa onde cresceu com os seus seis irmãos, no mesmo bairro onde agora está instalado o centro educacional para o qual trabalha, e onde dá apoio ao estudo às crianças que ali moram.

Neste final de junho, os miúdos estão de férias. Na sala de entrada do centro, meia dúzia de rapazes com cerca de dez anos pegaram em raquetes de ténis de mesa e numa bola e juntaram-se num círculo para jogar.

Nancy Gonçalves instalou-se em casa do pai com os filhos para fugir a uma situação de violência doméstica. Foto: Teresa Abecasis/CNN

A casa onde Nancy agora mora é um T2 – o pai dorme num quarto, Nancy e os dois filhos noutro. A relação não é a melhor. O pai quer o seu espaço, as crianças exigem outro tanto. Pagam uma renda de nove euros. Nancy até podia pagar mais por uma casa onde as crianças estivessem “à vontade”, mas já procurou alternativas no mercado e aquilo que recebe, pouco mais do que o salário mínimo de 740 euros, seria logo engolido por uma renda. Por isso, sempre que lhe pedem, Nancy entrega os papéis que justificam o seu pedido de habitação à câmara. “Pergunto pelo processo, entrego os documentos e espero.” 

Entretanto, em vez de estar mais perto de uma solução, o problema parece adensar-se. Como Nancy passou a fazer parte do agregado familiar do pai, o progenitor acabou por perder o direito ao Rendimento Social de Inserção. Agora, é a filha que assegura todas as despesas da casa, bem como as necessidades dos quatro. 

O apartamento onde vivem, para onde Nancy se mudou durante a pandemia, em 2020, pertence ao parque habitacional da Câmara de Loures. Na altura, já estava “podre”, descreve, com problemas graves de infiltração. A autarquia avançou com obras há uns meses, tendo reparado apenas um dos lados da casa de banho e deixado o outro como estava. As obras começaram e não acabaram. Nancy continua à espera.

Silvério da Costa, 34 anos, irmão de Nancy, voltou temporariamente para casa do pai. Vai tendo trabalhos na construção civil, e garante estar só de passagem, depois de se ter separado da mulher, e enquanto espera pela resolução da situação da casa que tinha com ela. Não quer ficar longe do filho, de três anos, que mora em Sesimbra. Viveu no bairro desde os nove anos e lamenta a falta de apoio que a irmã recebe. O T2 onde cresceu com os seis irmãos, é o mesmo onde agora está com o pai, a irmã e os filhos dela. “Os meus sobrinhos estão a crescer como eu”, lamenta. A história parece repetir-se.

05
Uma crise nacional de habitação

No dia 1 de abril, milhares de pessoas marcharam em várias cidades do país em nome de “uma casa digna para todas as pessoas”. Por todo o país, as rendas não param de subir, os juros tornaram as prestações da casa incomportáveis e a inflação continua a pressionar as famílias. O problema atinge a classe média, os estudantes, acaba por se refletir também nos mais pobres e até nos mais recentes movimentos migratórios de estrangeiros que vêm para Portugal preencher postos de trabalho necessários, mas que acabam a viver em condições para lá de precárias

A própria câmara de Loures alegou, na apresentação do plano para a regularização das dívidas ter uma lista de espera com mil pessoas à espera de habitação social. No município, no final de maio, 800 famílias corriam o risco de ser despejadas por não terem apresentado os documentos que justificavam a atribuição de uma casa da câmara. Um mês depois, a vice-presidente, Sónia Paixão, garante que cerca de cem famílias já o fizeram, entretanto, e que os seus processos estão a ser analisados. O prazo para regularizar a situação estende-se por um ano, até ao final de maio de 2024.

Mas e se todas estas famílias, as atuais e aquelas que estão em lista de espera, provarem estar a precisar de apoio para encontrar uma habitação? Sónia Paixão admite que o parque habitacional da câmara “não é suficiente para responder às necessidades de habitação do concelho”. A autarquia prevê a construção de mais casas, 400 até ao final de 2026, e acrescenta que está também à procura de soluções para comprar entre o mercado privado bem como de outras respostas ao nível da renda acessível. 

São prazos e soluções que, do ponto de vista de Rolando Borges, não se coadunam com uma crise que já se sente há anos e que não dá sinais de travagem. “Porque é que as pessoas conseguem ter trabalho, mas não conseguem ter uma habitação?” 

“Nós vamos por aí, e encontramos uma data de lugares em que era possível construir, nem que fosse algo temporário. Tem de haver construção para acompanhar essas necessidades. O próprio Estado pode criar soluções simples e dignas e que não sejam muito caras. Não podemos continuar a pensar da mesma forma como pensávamos há 10 ou 15 anos.”

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