Pagar a renda, comer e nada mais ou viver num T-partilhado com estranhos. Habitação, nunca estivemos tão mal?

Pagar a renda, comer e nada mais ou viver num T-partilhado com estranhos. Habitação, nunca estivemos tão mal?

Jornalista
Alda Martins

Imagem
André Lico

Edição de imagem
Miguel Freitas

Grafismo
Víctor Magano

Produção
Ana Gouveia

Rendas que não param de subir. Juros incomportáveis. Rendimentos baixos. Uma combinação explosiva que deixa cada vez mais pessoas sem casa. Quem são estas famílias? E como podem senhorios e construtores fazer parte da solução para o problema da habitação?

A falta de habitação é um problema que está perfeitamente identificado e do qual já não é possível fugir.

Um problema que entrou pela casa de Daniel Fernandes (46 anos) e Ana Sofia Vilar (42 anos) sem pedir licença. Em outubro, a senhoria comunicou-lhes um aditamento ao contrato de arrendamento que subia a renda para 800 euros. O dobro do que então pagavam pela casa onde vivem há oito anos, na freguesia do Bonfim, no Porto.

Vídeo sem som. Daniel e Ana vivem no Bonfim, no Porto. Era uma zona pobre da Invicta. Hoje, um T1 de 70 metros quadrados naquela zona custa, em média, 700€.

“Respondemos que compreendíamos que quisesse aumentar, mas, por exemplo, no nosso caso não podíamos ir além dos 600 euros e já era um aumento brutal”, diz Daniel.

Vivem na zona desde sempre. Antes da faculdade e do filho Duarte, de sete anos, nascer.

O Bonfim era uma zona pobre da Invicta. Hoje, um T1 de 70 metros quadrados custa, em média, 700€. Tendo em conta o salário médio nacional em 2022, 1029€, esta renda representa 68% do rendimento. A taxa de esforço recomendável é de 35%.

“Olhamos à volta e não há alternativas. É pura ganância”, lamenta Daniel, apesar de reconhecer que nem todos os senhorios são assim.

“Os maus da fita”

Sofia Portugal é um desses casos. Foi assistente social e hoje toma conta do património da família porque alguém tem de o fazer.

“Chateia-me a ideia [que muitas pessoas têm] daquele senhorio que está sentado a contar notas.”

Graças à iniciativa do bisavô, a família tem dois prédios da década de 50 na capital.  A renda mais elevada são mil euros por um apartamento T3 totalmente remodelado.

Sofia quis mostrar-nos outro apartamento, com as mesmas áreas em Benfica, pelo qual cobravam 408 euros.

O lema da família sempre foi ter rendas acessíveis, com contratos de cinco anos, renováveis, e um inquilino em quem confiassem. Neste caso correu mal.

O arrendatário deixou de pagar e não queria sair. Ganharam a causa em tribunal, mas ficaram com um imóvel totalmente destruído. Enquanto percorremos a área, constatamos que não há uma assolhada que se aproveite. Estores, portas, móveis de cozinha, chão. Tudo destruído.  Até há interruptores arrancados. Já para não falar das paredes e dos tetos.

“Primeiro pensámos que era urina, mas chegámos à conclusão que é gordura porque não seca”, constata Sofia com um olhar desolado.

Vídeo sem som. Sofia Portugal mostra-nos o estado em que um inquilino deixou uma casa da família. Vai ficar uns tempos desocupada porque as reparações exigem algum investimento.

“Com este nível de maldade nunca nos tinha acontecido. Já nos deixaram de pagar a renda e o senhorio fica sempre a arder”, assegura, lamentando que os senhorios sejam sempre os “maus da fita”.

Quarto, doce quarto

Em 31 anos de vida, Rodrigo Vaz Pinto nunca teve más experiências com senhorios, mas admite que após a licenciatura em Jornalismo, a saída da casa dos pais e um estágio na Alemanha tinha sonhos maiores do que viver num quarto.

“Saí de casa com 29 anos. Na altura dividi casa com mais três pessoas e depois comecei a sentir um bocadinho de falta de privacidade. Por isso, no início de 2022, comecei à procura de casa e aí é que percebi que era uma realidade difícil.”

Atualmente vive na Baixa, na freguesia de Santa Maria Maior, uma das mais caras da capital. Aqui, a renda média de um T1 com 70 metros quadrados ronda os 1059 euros. São mais 30€ do que o salário médio nacional.

Por um quarto de 10 metros quadrados com acesso à casa toda, Rodrigo paga 400 euros.

“É um terço do meu salário”, diz. Trabalha como assistente de apoio ao cliente enquanto conclui a pós-graduação em Marketing Digital.

Como está em teletrabalho até poderia fazê-lo noutro local, sair da área metropolitana de Lisboa, mas “é aqui que tenho a minha família os meus amigos. Não gostaria de ir para outro local.”

Vídeo sem som. O proprietário não autorizou a CNN a filmar dentro da casa onde vive Rodrigo Vaz Pinto. Aos 31 anos, o especialista em marketing digital tem sonhos maiores do que viver num quarto. 

Um sentimento que é partilhado por Tomás Afonso, engenheiro informático de 26 anos. Vive em Oeiras desde sempre, agora só com o pai e a avó de 81 anos.

“Não gostaria de deixar o meu pai e a minha avó. O que é a vida se não a partilharmos com as pessoas que amamos?” Também está em teletrabalho, mas sonha com o dia em que poderá comprar uma casa com a namorada, Maria.

“Sempre que vamos de miniférias para algum lado e estamos a regressar dizemos um ao outro que seria ótimo chegarmos a casa desfazermos a mala e estarmos no nosso espaço, mas cada um vai para a casa dos pais”, desabafa Maria Correia. É farmacêutica e um ano mais nova do que o Tomás.

“Projetamos os nossos objetivos de vida, os nossos sonhos consoante constrangimentos externos. E um constrangimento muito grande é o acesso ao emprego e à habitação.” A frase é da demógrafa, investigadora e professora na Universidade de Lisboa, Alda Azevedo.

Será legítimo dizermos que nunca estivemos tão mal?

Alda Azevedo não esconde que houve períodos complicados da nossa democracia, por exemplo, quando se deu o regresso das ex-colónias, depois do 25 de Abril de 1974, em que havia falta de habitação em Lisboa.

“Os problemas hoje são diferentes. Temos tido uma subida de preços da habitação que tem estado desfasada da subida dos rendimentos das famílias e isto criou um problema novo”.

Desde 2019, o salário médio líquido em Portugal subiu 120 euros. Em quatro anos, uma casa com 70 metros quadrados ficou, em média, 27 000 mil euros mais cara. E a mediana da renda de uma casa da mesma dimensão subiu 84 euros, absorvendo a quase totalidade do aumento do salário.

“O pouco que sobra”

Daniel Fernandes é técnico superior no Estado. Leva para casa 1 045 euros por mês. A renda ficou, para já, nos 700 euros o que representa uma taxa de esforço de 67%. Era isto ou a denúncia do contrato.

“De repente vemo-nos apenas com dinheiro para comer e pouco. Não há dinheiro para livros, atividades culturais, visitas. Não há. Acabou. É pagar a renda e o resto será para comer. O pouco que sobra”, desabafa.

A mulher, Ana Sofia Vilar, está desempregada. Reconhece que o curso de História de Arte e o mestrado em Ciências da Informação e Documentação não lhe abrem muitas portas.

“Não é que não queira trabalhar. Quando aparece algo na minha área, fico super feliz e faço, mas às vezes nem compensa.”

Quando surgem outro tipo de empregos, ou tem qualificações a mais ou são na área da restauração, mal pagos e com horários que obrigariam a outra logística no apoio ao filho Duarte.

No caso de Maria  Correia, o salário até compensa, mas a casa continua longe. “Em termos de emprego, reconheço que tenho condições privilegiadas em comparação com a maioria dos jovens portugueses e mesmo assim sinto uma grande dificuldade em dar este passo de sair de casa dos meus pais”, assume.

“O montante inicial, de cerca de 10% do valor total do imóvel, que temos de juntar para conseguir um empréstimo é absurdo, sobretudo na zona de Oeiras”, acrescenta Tomás. Continuam a juntar dinheiro e a acreditar que não terão de deixar família e amigos e ir para o estrangeiro.

Mas a verdade é que estas opções têm consequências.

“Quanto mais adiamos o acesso à habitação, mais vamos adiar projetos de fecundidade. Com uma população que está em declínio, em franco envelhecimento, não é a situação que gostaríamos”, diz Alda Azevedo.

Temporário até quando?

As dificuldades são iguais nas ilhas. Na Madeira, por exemplo, a mediana das rendas é a segunda mais elevada do país. Um T1 no Funchal custa, em média, 573 euros ou 43% de um ordenado médio.

O arquipélago está entre as regiões com os preços mais caros para venda.

O boom do turismo faz com que para muito locais a casa não passe de um sonho no papel.

Mónica  Freitas de 27 anos, assistente social e Sérgio Marciel, de 25, coordenador de segurança contra incêndios já casaram.

“Queríamos muito uma casa, mas quando andamos a ver preços, de facto, as coisas estavam insustentáveis”, diz Mónica.

Conseguiram comprar um terreno com uma casa, mas em ruína. Um projeto que requer obras e dinheiro. Os juros colocaram o sonho em pausa.

“Em outubro de 2022, tínhamos um orçamento que não é exequível atualmente”, diz Sérgio.

“Em termos de prestação, aumentou 20 a 30 euros, mas ao nível do valor que precisamos para a construção aumentou para o dobro.”

Vídeo sem som. Mónica Freitas e Sérgio Marciel compraram um terreno com uma casa em ruínas. Em outubro de 2022, pediram um orçamento para as obras, que, entretanto, ficou desatualizado: aumentou para o dobro.

“Quando o mercado está quente, tudo sobe. Os preços dos terrenos e dos materiais subiram de forma exorbitante e a carga fiscal em Portugal também é muito elevada”, justifica o presidente da Socicorreia, Custódio Correia.

É construtor oriundo de Braga e, hoje, tem projetos em outras cidades, como Lisboa e Funchal. Na capital do arquipélago está a construir 98 apartamentos. Estão todos vendidos a locais, não necessariamente madeirenses.

Garante que há muitos portugueses a comprarem, mas sabe que dificilmente um salário médio conseguirá comprar uma destas casas.

“Apesar dos preços estarem a subir, os preços do arrendamento estão a subir mais. Isso significa que os que têm uma renda estão a ser mais pressionados”, explica a investigadora da Universidade de Lisboa.

Ana e Daniel, ainda a viver no Bonfim, não conseguem pensar além da gestão do dia a dia e rezam para que nada se avarie em casa nem “haja uma maleita de saúde”. Acreditam que em setembro, no término do contrato, haverá um novo aumento de cerca de 20 euros. Os tais 2% de teto máximo imposto para os aumentos deste ano pelo Governo.

Uma angústia que é partilhada a outro nível por João e Tatiana Branco, ambos com 30 anos. Salvaterra de Magos, na Lezíria ribatejana foi o local que escolheram para erguer a casa de sonho.

“Ainda estávamos em Inglaterra quando comprámos o terreno”, recorda a administrativa. “Felizmente tenho um pai e um marido engenhocas que se ajeitam um pouco em tudo e foram eles que fizeram esta casa”, acrescenta.

Uma vida que parecia tranquila deixou de o ser, rapidamente. Longe das áreas metropolitanas descem os preços das rendas e das casas para venda, mas a subida dos juros está em todo o lado.

De um momento para outro, o empréstimo com uma Euribor a 12 meses e um spread de 1,1% ficou elegível para a renegociação com o banco, ao abrigo das novas regras do Governo.

“Fizeram a análise e apresentaram a proposta. Pior que a que já tínhamos. Ou seja, a prestação era ligeiramente menor, mas somadas todas as parcelas – cartões e outros encargos obrigatórios – íamos pagar mais. Não faz sentido algum. No limite, admito que houve má interpretação da pessoa que fez a análise”, diz João que já reclamou junto do Banco de Portugal e está a estudar alternativas no mercado para conseguir uma melhor solução.

Enquanto não surge, o empréstimo passa para cerca de 1 000 euros, o dobro, já em abril.

“Um dos nossos ordenados já não chega para os encargos que temos com o banco. Fazemos umas horas extra. Arranjo um trabalho adicional. Isto torna-se incomportável se for uma situação ad aeternum. Quero acreditar que vamos conseguir, mas não está fácil”, admite.

“Planeámos mais um filho. Tínhamos planos que ficam adiados”, partilha com tristeza Tatiana que nem contempla a ideia de perderem a casa.

À espera de resposta do banco também estão Mónica e Sérgio. Enquanto não chega, para saber se têm dinheiro para a obra, vão vivendo em casa dos pais dela, com a avó e o cão. Já foram seis, mas o irmão de Mónica saiu para estudar no continente.

“Sabermos que é uma situação temporária ajuda imenso, mas há dias em que, obviamente, é extremamente complicado. E não era isto que idealizávamos”, diz apesar de reconhecer que, deste modo, conseguem poupar dinheiro.

“Para mim, Portugal acabou”

Sofia Portugal, a nossa senhoria, vai deixar a casa em Benfica, para já, como está. Destruída. Seriam precisos uns 30 mil euros, que não tem, para a colocar em condições para arrendar novamente.

Sobre o pacote para a habitação, diz que “só vai inflacionar ainda mais as rendas porque os senhorios não têm nenhuma confiança no Governo. Num dia, as leis são umas. Noutro dia, são outras. Os senhorios, assim que podem, apanham uma brecha na lei e aumentam as rendas. Já sabem que se ficar congelado durante dez anos, pelo menos, ficam com um valor bom.”

Alda Azevedo diz que têm de existir esperança e soluções.

“Em primeiro lugar, seria fundamental aumentar o parque de habitação pública. Isto é um projeto a largos anos que não se coaduna com ciclos governativos. Podemos também pensar, como existe em alguns países europeus – a Dinamarca, por exemplo – onde a cada operação de construção nova, e chamamos o privado, com mais de x alojamentos há uma percentagem que deve ser colocada no mercado sem fins lucrativos. Se conjugarmos algumas medidas destas, o que fazemos é criar uma percentagem do parque de habitação a preços abaixo do mercado, o que vai impedir os preços de subirem de uma forma galopante.”

Enquanto nada disto se vislumbra… a vida vai correndo. “Tenho sempre de ceder alguma coisa. Acho que é essa questão que às vezes é mais complicada”, desabafa Rodrigo Vaz Pinto, antes de regressar ao seu quarto de 10m2 no centro de Lisboa.

Daniel Fernandes e Ana Sofia Vilar ponderam fazer as malas. Querem que o Duarte seja um “cidadão do mundo”. “A Ana quer manter-se um pouco cá, para ver também o que é que isto dá. Mas, para mim, Portugal acabou.”

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