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Oppenheimer ‒ a biografia da bomba, que também é uma história sobre nós

30 jul 2023, 21:00
Oppenheimer Fotos Universal Pictures

No seu primeiro filme no qual não se dispara um único tiro e na sua estreia enquanto biógrafo de grande ecrã, Christopher Nolan estende-se por três horas.

“Oppenheimer”, maestro da primeira bomba atómica, é a menos nolanesca das longas-metragens realizadas pelo britânico.

O tempo não é a musa do homem que brincou com ele nas paisagens espaciais de Interstellar, na corrida contrarrelógio nas praias de Dunkirk, nos sonhos furtados de Inception ou no exercício vão ‒ ainda que deslumbrante ‒ de Tenet. Em “Oppenheimer”, um retrato fidedigno do físico norte-americano, há retrospetiva, entrelaçamento cronológico e memória. Mas há sobretudo pontes, não entre os tempos do enredo, mas cá para fora: para hoje.

A guerra civil espanhola e o franquismo, ora tão atuais, a ameaça russa e o risco de uma escalada armamentista, idem, o poder desmesurado do Estado diante de denúncias politicamente motivadas, a facilidade da verdade também mentir, o magnetismo de figuras históricas pela era que vivem e pelas certezas que outros têm sobre elas, mas não elas próprias.

Tal é matéria humana do quotidiano público; não uma relíquia a preto e branco.

“A genialidade não é garantia de sabedoria” ou “o poder permanece na sombra” são avaliações sobre a natureza da vida pública e política. Não lições de uma turma de mecânica quântica.

“Oppenheimer” não é um filme sobre o que fomos, antes e depois da Segunda Guerra, antes e depois de Hiroshima e Nagasaki, antes e depois da derrota das potências do Eixo.

É um filme sobre o que ainda somos hoje; sobre como permanecemos a mesma humanidade. Com os mesmos defeitos, a mesma obstinação e os mesmos dilemas. Como se de um documentário ficcionado se tratasse, cujo objeto é simultaneamente seminal e contínuo.

Mais surpreendente do que isso, o verdadeiro biografado não é, de facto, J. Robert Oppenheimer, com a sua ambiguidade e a sua singularidade, certamente dignas de ficção. É a bomba. Ou melhor: nós e a bomba, depois de Oppenheimer. E ele, depois do que ela nos fez a nós. A partir do momento em que nos condenámos a conviver com a iminência do fim.

Apesar da longa duração do filme, não há um real acesso à relação de Oppie ‒ como lhe chamam os devotos ‒ com a sua mulher, com as suas amantes, com os seus filhos ou sequer com o seu antagonista, o burocrata Lewis Strauss, na melhor interpretação da carreira de Robert Downey Jr. desde Chaplin (1992).

Não seria arriscado estimar que Strauss e Oppenheimer dividem o ecrã menos de 15 minutos das três horas de filme, sendo que dois terços desses 15 minutos são flashbacks incapazes de escalar o confronto entre ambos; não mais do que pontos desconexos de tensão.

O perfil psicológico do biografado chega-nos pela sua leitura em discurso direto durante o processo de recrutamento para o Projeto Manhattan (“Sabemos que é” egocêntrico, obsessivo, instável) e não pela atuação de quem o representa.  A personalidade de Oppenheimer é algo que nos é dito, não mostrado. O compenetrado Cillian Murphy segura o fardo de protagonista, mas, mais do que isso, o peso de não ter nada que sentir durante a maioria do guião. Oppenheimer viaja, casa, trai, descobre, erra e mente exatamente com a mesma expressão: nenhuma.

Numa segunda visualização, nota-se a estranheza com que Nolan filmou a intimidade do seu personagem principal ‒ algo a que escapou em todos os seus épicos. A tragédia de Jean Tatlock (Florence Pugh) é outra das narrativas sem crescendo em “Oppenheimer” e a alternância repentina entre sexo e psicanálise ligeiramente descabida.

Os habituées de Nolan ‒ Matt Damon, Kenneth Branagh, Gary Oldman, Tom Conti ‒ servem mais de suporte à curiosidade do espectador do que para algo que lhes faça justiça ao talento. Casey Aflleck, outro repetente do nolanismo, transcende-se como coronel inquisidor, tão ou mais intimidante do que o procurador (Jason Clarke) a quem encomendaram a descredibilização de Oppenheimer. Emily Blunt (a esposa, Kitty) parece só chegar no final e, como Downey Jr., rouba foco ao Oppenheimer de Cillian Murphy.

Há uma moral na mensagem final de Nolan ‒ os aplausos aos bombardeamentos do Japão são mais altos do que o som da explosão em Los Alamos ‒, o que força a introspeção, mas obriga a dúvida: refletimos devido ao drama no filme de Christopher Nolan ou antes pelo terror na História do século XX? A celebração do genocídio ali denunciada, a euforia pela destruição ali exposta, provoca-nos repulsa. Mas graças a Nolan ou graças a nós?

Talvez “Oppenheimer” estivesse condenado a essa questão desde o primeiro rascunho, talvez Nolan o soubesse desde então. Para um cinematógrafo dedicado à ansiedade, a história da bomba atómica carregaria sempre a dificuldade de criar suspense num filme em que todos já sabemos o final e em que, tal como na vida real, nunca sabemos se vai ou não acontecer. Até hoje. Com ou sem “Oppenheimer”, o filme. Mas definitivamente por causa de Oppenheimer, o homem.

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