Doping: a Rússia entre acusações e suspeitas que vão mais longe

8 dez 2014, 10:40
Suspeitas de doping generalizado na Rússia

Documentário televisivo fala em recurso generalizado a doping e corrupção no país: reações e questões

«Não conseguimos atingir os objetivos sem nos doparmos. Tens de te dopar, é assim que funciona na Rússia.» «99 por cento dos atletas na Rússia dopam-se.» São várias as vozes a dizer estas coisas, num documentário
emitido na Alemanha que traça um quadro de doping generalizado e corrupção nas instâncias desportivas no país. No mesmo dia, também o jornal francês LÉquipe publicava uma investigação
com contornos semelhantes, que envolvia inclusivamente a Federação internacional de atletismo, acusada, pelo menos, de fechar os olhos. Algumas das acusações não surpreenderam propriamente as instituições internacionais e, entre garantias de investigação de um lado e ameaças de procedimentos judiciais por parte dos responsáveis do atletismo russo, o caso volta a lançar uma enorme nuvem sobre a luta antidoping, bem como a questionar a abordagem global ao problema.

O documentário, que se intitula «Doping confidencial: como a Rússia fabrica os seus vencedores» e foi transmitido na noite de quarta-feira pela estação pública alemã ARD, constrói ao longo de uma hora um quadro negro, com depoimentos, documentos e câmaras escondidas, que torna inevitável a comparação com os métodos da antiga União Soviética. As denúncias começam por partir da semi-fundistas Julia Stepanova, atualmente suspensa por doping, e do seu marido, Vitali Stepanov, que trabalhou entre 2008 e 2011 na agência antidopagem russa (Rusada). São deles as afirmações do início deste artigo.

Stepanova diz também no documentário que os treinadores lhe diziam para manter amostras de urina «limpas» no frigorífico e há uma gravação oculta a mostrar o seu técnico a dar-lhe comprimidos, alegadamente de Oxandrolona, um esteróide. «Os treinadores escolhem uma rapariga, enchem-na de comprimidos e ela está lançada. E quando ela for apanhada dizem «Vamos encontrar outra.»

Há mais depoimentos, que falam de um sistema que envolve muita gente. A maratonista Lilia Schobuchova, também atualmente suspensa, diz que pagou no total 450 mil euros a um treinador com responsabilidades na Federação russa para esconder «valores anormais» nas suas amostras sanguíneas entre 2009 e 2011.
Perante estes dados, a Agência Mundial Antidopagem (AMA) e a Federação Internacional de Atletismo (FIAA) apressaram-se a garantir que já estavam a decorrer investigações. O comunicado da AMA foi emitido mesmo antes da emissão do documentário.

«A AMA já recebeu informação e provas do tipo das que são expostas no documentário. Toda essa informação foi passada ao órgão independente competente da Federação internacional, a FIAA», diz o comunicado da agência mundial. Quanto ao organismo que tutela o atletismo, reagiu no dia seguinte, mais ou menos nos mesmos termos: «A IAAF registou uma série de alegações graves sobre doping relacionadas com o atletismo na Rússia, que foram transmitidas pelo canal alemão ZDF/ARD. Já está a decorrer uma investigação da Comissão de Ética da IAAF, com respeito a algumas das alegações feitas no documentário.» O presidente do Comité Olímpico Internacional (COI), Thomas Bach, disse aguardar pelas investigações e garantiu que terá «tolerância zero» caso se provem as acusações.

Quanto à Rússia, enquanto o organismo antidopagem anunciou que iria lançar a sua própria investigação, a Federação de atletismo reagiu ameaçando com ação legal e dizendo que as vozes de denúncia no documentário não são credíveis. «Vemos este filme como uma tentativa planeada de criar um escândalo em torno do atletismo e do desporto russo em geral», afirmou Valentin Balakhnichev, presidente da Federação russa de atletismo e também ele questionado no documentário, onde se recusa a prestar esclarecimentos. «Tem declarações de cinco pessoas que não são credíveis. Todos eles foram expostos por doping e têm razões pessoais para hostilizarem os nossos atletas, treinadores e a agência antidopagem russa.»

Também há reações de atletas. Que alimentam as suspeitas. O britânico Dai Greene, antigo campeão do mundo, diz que são antigas as desconfianças dos próprios atletas. «Como atletas sabemos de quem suspeitamos, porque não os vemos no circuito, só os vemos nos campeonatos», afirmou à BBC. «Treinam e competem na Rússia durante o ano, acho, e de repente aparecem nos grandes campeonatos e são os melhores do mundo», insiste, enquanto defende que é «muito difícil apanhar estas pessoas», mas também que «o atual sistema de testes não é suficientemente bom».

A britânica Paula Radcliffe, que numa primeira reação se disse «enojada» pelas alegações do documentário, dá voz a uma das principais questões em torno do assunto. O facto de as sanções, por regra, incidirem apenas sobre atletas, às vezes sobre treinadores, e nunca sobre os organismos que os tutelam.
 


«Devia haver sanções para os países nas competições como os Mundiais de atletismo e os Jogos Olímpicos», afirmou a recordista do mundo da maratona à BBC: «Não devia ser apenas a Rússia a ser questionada aqui, mas qualquer país que não esteja a cumprir os códigos da AMA (Agência Mundial Antidopagem) ou da FIAA (Federação Internacional de Atletismo). Também olharia para os organismos de controlo independentes. Talvez precisem de os retirar dos países, se não se pode confiar neles.»

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