A figura em Espanha que nada tinha: «Limpava balneários por 300 euros/mês»

5 nov 2021, 22:38
Randy Nteka (Rayo Vallecano)

A história impressionante de Randy Nteka, que cumpre, aos 23 anos, a primeira época na liga espanhola.

Se dissessem a Randy Nteka que, quase cinco anos depois de ter chegado com uma mão cheia de nada a Madrid, estaria a jogar na liga espanhola e prestes a pisar, como este sábado, palcos como o Santiago Bernabéu, provavelmente seria uma utopia. Algo sem sentido.

Mas a vida e o futebol também têm histórias nobres e de superação. Foi assim com o médio franco-angolano de 23 anos, que cumpre a primeira época no Rayo Vallecano e no principal escalão do futebol em Espanha.

Com 19 anos acabados de fazer, Nteka chegou à capital espanhola em janeiro de 2017 com a única esperança de conseguir uma oportunidade para jogar futebol. Dinheiro para ficar ali, numa grande cidade, não tinha. Também não tinha um contrato. Nem o seu representante o tinha visto jogar antes. A única força real eram mesmo as palavras do seu pai, um camionista de origem angolana que criou Nteka nos subúrbios de Paris, em França.

«Vim fazer uns testes, mas nem sequer sabia se ia ficar mais do que uma semana. Para sobreviver tive de trabalhar a limpar balneários por 300 euros por mês». As palavras são, ao El Mundo, do agora futebolista profissional, que tem sido uma das agradáveis surpresas do recém-promovido Rayo, que tem no plantel nomes como os portugueses Bebé ou Kévin Rodrigues e o ex-FC Porto Radamel Falcao.

A bola para fugir à má vida

Nteka desde cedo que teve numa bola o escape aos problemas. A uma vida no meio da violência. Cresceu a percorrer os bairros de Paris.

«A minha mãe tentava que eu não me metesse em confusões. Por isso, jogava sempre futebol para evitar problemas, para escapar da má vida. Cada vez que saía de casa não tinha a certeza de que voltaria inteiro», admitiu Nteka, num testemunho impressionante de um imigrante sem recursos e que até passou dificuldades para comer em condições dignas.

A primeira casa: «Levávamos-lhe sandes»

O inverno de 2017, que o levou a Espanha, teve no Betis San Isidro, um clube de Madrid, a espinha dorsal. Foi a casa que acolheu Nteka, que viveu então no distrito de Carabanchel. «Tinha ficado sem opções devido ao fecho do mercado e o seu agente, que nos conhecia porque trabalhava no mercado africano, chamou-nos. Mal o vimos, demos conta de que não era um jogador de Preferente [ndr: categorias regionais de Espanha]. O seu nível era muito superior». Quem o diz é Pablo García Rojo, dirigente do clube que vive muito da carolice, como muitos das divisões inferiores.

Sem ganhar dinheiro num clube modesto como o Betis San Isidro, Nteka era ajudado com comida. «Ajudávamo-lo como podíamos. Oferecemos-lhe uma das nossas bolsas para que pudesse pagar uma habitação partilhada. Dissemos-lhe para cuidar um pouco de tudo, desde os acessos ao estádio até à limpeza das instalações», disse Pablo, sobre um dinheiro que chegava das quotas mensais dos sócios… e até às vezes do bolso dos próprios dirigentes. «Sabíamos que ele nunca pediria nada, mas na sua idade e com aquele físico, era normal que precisasse de comer mais. Por isso, tivemos de levar-lhe umas sandes», lembrou, ainda.

«Queria voltar a Paris, não aguentava mais»

Foi com esta convicção que Nteka ligou ao pai, expressando o desejo de voltar a França e de que o futebol não era para si. Enganar-se-ia, pois. O pai ajudou. «Ele insistia, porque estava convencido de que a minha hora chegaria», recordou o médio do Rayo.

Hoje, Nteka é uma peça importante no Rayo, levando 12 jogos – cinco como titular, sete como suplente – e três golos. Ali chegou depois de quatro temporadas no Fuenlabrada, entre 2017 e 2021, que o catapultaram para a elite.

E como é que Nteka chegou ao Fuenlabrada? No verão de 2017, voltava a casa para uns dias de férias quando o seu representante o contactou. «Disse que eu não voltaria a Espanha se não encontrasse uma boa equipa. Então disse-me que ia começar a pré-época como o Rayo B e que o meu nome, inclusive, já estava na página oficial na internet», recordou Nteka.

Porém, na equipa secundária do Rayo não haveria vaga e um jogo particular com o Fuenlabrada mudaria o rumo dos acontecimentos. Nteka nem queria ir, mas acabou convencido após grande insistência do outro lado. «Pagaram-me 800 euros por mês, mas desta vez para jogar futebol. Além disso, podia morar num apartamento, sem ocupar-me com despesas», sublinhou.

Agora, no topo do futebol espanhol, joga, marca e aprende… sobretudo com Falcao. «Com quem mais aprendo em cada treino é com Radamel Falcao, porque este ano estou a atuar muito como nove. Também me encanta jogar ao lado do Óscar Trejo, porque é um dos futebolistas que, quando tem bola, acontecem coisas».

Coisas que, numa vida que podia ter tido outros caminhos, levam Nteka a cumprir um sonho com a bola no pé.

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