"Operações secretas", com "ameaças a familiares", para persuadir cidadãos a voltar à China. Suspeitas recaem em três associações que operam em Portugal

8 out 2022, 08:00
Polícia da rede fuzhou

A CNN Portugal falou com a autora do relatório da ONG Safeguard Defenders que denuncia a atividade clandestina das autoridades chinesas em vários países, incluindo Portugal. Em causa, adianta, estarão operações sigilosas para tentar levar cidadãos que o governo quer julgar, contornando as leis internacionais. "A situação preocupa-nos muito", afirma Laura Harth. No entanto, as associações visadas negam qualquer ação ilícita

Há suspeitas de que centros de apoio para a comunidade chinesa em Portugal estejam a ser utilizados para operações de chantagem e retorno forçado de cidadãos que o governo de Xi Jinping quer ver julgados. A denúncia parte da ONG Safeguard Defenders, baseada em Espanha, que acredita ter descoberto três “estações” dessas em Portugal que através de operações secretas fazem regressar à China cidadãos, contornando a lei portuguesa que impediria a extradição de opositores políticos para um país com pena de morte. 

“Muitos destes centros podem ter interesses legítimos, mas o que temos visto e nos tem preocupado é o facto de poderem estar envolvidos em operações secretas para persuadir cidadãos a voltar à China”, revelou à CNN Portugal Laura Harth diretora de campanha e uma das redatoras do relatório 110 OVERSEAS: Chinese Transnational Policing Gone Wild – que recentemente levou a Iniciativa Liberal a confrontar António Costa sobre o perigo das atividades destes centros e a pedir a revisão dos acordos entre Portugal e a China.

Agora, em entrevista À CNN Portugal, Laura Harth explica o que descobriu na investigação a este tipo de atividades e revela os métodos usados para que o governo chinês consiga “capturar o seu alvo” que vive no estrangeiro, sem que para isso tenha de recorrer aos meios legais. “Pode ser feito através de ameaças à família do alvo, à perseguição dos seus filhos. Por exemplo, se tiver filhos a estudar na China, podem impedi-los de ir à escola”, diz.

A investigadora afirma que apesar de o uso destes métodos não ser novo, a utilização de organizações para apoiar cidadãos chineses no estrangeiro “é um conceito relativamente recente e sobre o qual ainda se está a adquirir dados”. Sabe-se, porém, que “as pessoas destas organizações", “são chamadas pelos serviços de segurança chineses para os ajudarem a conduzir este tipo de operações para seguir o alvo e conseguir que ele chegue à polícia chinesa”.

“Tudo isto é muito perigoso e é uma violação clara dos direitos individuais e da soberania do território”, avisa, sublinhando que estes centros costumam servir para ajudar os chineses a obterem cartas de condução ou a renovar cartões de cidadão, mas, na realidade, podem ter outras atividades escondidas.

De acordo com dados da Safeguard Defenders, o governo chinês divulgou ter "persuadido" 230 mil pessoas a regressarem a julgamento na China entre abril 2021 e julho e 2022. 

Para o investigador Victor Madeira, especialista em segurança interna e investigador no Centre for Information Resilience, do Reino Unido, o relatório desta ONG é “revelador” do tipo de operações levadas a cabo pelo governo chinês para “evitar muitas questões legais e pedidos formais de extradição”. “Isto impede o escrutínio de abusos de direitos humanos e da lei internacional”, avisa.

Centros em Lisboa, Porto e Madeira

Até ao momento, segundo a investigação da ONG Safeguard Defenders, foram detetados casos em três endereços em Lisboa, Porto e na Madeira. “Estes foram os que encontrámos, não quer dizer que não hajam mais”, assinala Laura Harth

O alerta para as suspeitas deste tipo de atividades estarem a ocorrer em território português surgiu quando, no dia 10 de janeiro deste ano, a polícia municipal de Fuzhou, no sudeste da China, anunciou a abertura de 30 “estações de serviço para ”prestar assistência a um vasto número de chineses a viverem fora do país” em 25 cidades de 21 países. Na lista divulgada pela polícia municipal de Fuzhou estavam duas localizações em Portugal - uma na Ribeira Brava, na Madeira, e outra em Vila do Conde, no distrito do Porto.

Em Lisboa, a ligação foi encontrada através de uma notícia de 4 de março de 2021 que dava conta de que o Gabinete de Segurança Pública da região de Qingtian tinha realizado uma cerimónia para premiar e reunir os “diretores dos centros de serviços fora da China”. Nesse evento foram anunciados cinco novos centros, em Lisboa, Bratislava, Santiago, Odessa e Dar es Salaam.

A CNN Portugal contactou as três moradas portuguesas identificadas no relatório. O proprietário do centro da Madeira, que a ONG internacional identifica como pertencente à Associação Fuzhou Shiyyi em Portugal, aceitou falar sublinhando que todas as suspeitas “são mentira” e que a associação presta apenas serviços como a renovação da carta de condução. Garante também que o relatório deixou-o "preocupado com assédio recebido sem motivo".

Em Vila do Conde, onde os investigadores dizem estar em funcionamento uma associação ligada à polícia de Fuzhou, o proprietário do espaço não respondeu às tentativas de contacto da CNN Portugal, mas recentemente veio a público negar qualquer envolvimento em operações de regresso forçado de chineses, garantindo que a morada que consta no relatório é apenas uma oficina de reparação de carros.

O proprietário da estação ligada ao Gabinete de Segurança Pública da região de Qingtian, em Lisboa, também não deu resposta aos contactos da CNN Portugal. Mas, também ele tinha há pouco tempo feito declarações a garantir que o centro que dirige apenas trata de "documentos, autorizações de residência, vistos gold e traduções". Em entrevista ao Expresso, salienta que há uma permanente falta de comunicação entre os imigrantes chineses e os portugueses que acaba por levar a maus entendidos e desconfianças. “A nossa comunidade é muito fechada, o que é mau. Devíamos ser mais abertos até porque precisamos dos portugueses”.

Ligações à Frente Unida chinesa

Segundo a ONG, há uma “direta ligação” entre os centros associados à polícia municipal de Fuzhou e a Frente Unida, do Partido Comunista Chinês (PCC), um departamento que responde diretamente ao Comité Central do PCC e que é acusado pelo governo norte-americano de ser responsável por “coordenar operações de influência", focadas principalmente em “controlar potenciais grupos de oposição dentro, mas também fora da China”.

De acordo com um relatório elaborado em 2018 pela Comissão de Revisão Económica e de Segurança entre os Estados Unidos e a China, é “precisamente a natureza do trabalho da Frente Unida procurar influência através de ligações difíceis de provar publicamente e de ganhar influência através de questões sensíveis como a identidade étnica, política e nacional, tornando aqueles que procuram identificar os efeitos negativos de tal influência vulneráveis a acusações de preconceito”.

A ligação entre a Frente Unida e os serviços criados pela polícia de Fuzhou está, por sua vez, expressa numa publicação no site oficial do governo central chinês. Nela, é referido que, no processo de lançamento do projeto de serviços transfronteirços da polícia de Fuzhou, a Frente Unida “deu um forte apoio ao longo de todo o processo” e lança o repto para que os envolvidos nesses serviços procurem “a verdade e o pragmatismo”.

Operações como as descritas no relatório da ONG, diz o investigador Victor Madeira, “geralmente recaem na Frente Unida chinesa, uma organização com mais de 40 mil pessoas dentro da China e a nível mundial” e que, de uma maneira ou de outra, “conduzem atividades de espionagem e influência sobre as elites e organizações”, nomeadamente através de indivíduos em posições relevantes comerciais, académicas e políticas de grande destaque.

Da perspetiva portuguesa, salienta ainda o especialista, esta é uma “grande ameaça à tradição democrática”, porque a Frente Unida “serve de organização de fachada para os oficiais de informações e operações dos serviços de espionagem chineses”. Além disso, continua Victor Madeira, “por causa do sistema que existe na China, em que não há setor privado nem público e em que se vive um sistema autoritário”, “todas as organizações”, sejam elas companhias industriais ou de comércio podem potencialmente vir a sofrer pressão das autoridades chinesas. “Geralmente não há escolha” e estas organizações são forçadas a  colaborar, “por exemplo a adquirir tecnologia de alta ponta no estrangeiro, ou em operações de influência ou de espionagem”. “Não têm escolha, se o Partido (Comunista da China) indicar, não há escolha”.

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