"Rapazes, isto tem de parar!" Como o moral está a colapsar no exército privado de Putin

"Rapazes, isto tem de parar!" Como o moral está a colapsar no exército privado de Putin

Aviso: esta reportagem contém imagens e linguagem que podem chocar.

CNN, Saskya Vandoorne, Melissa Bell, Joseph Ataman e Renee Bertini

Os corpos dos ucranianos jazem lado a lado na relva, a terra ao seu lado está aberta por uma cratera. Arrastados para o local por mercenários russos, os corpos das vítimas têm os braços apontados para o local onde morreram.

“Vamos plantar-lhes uma granada”, diz uma voz em russo rouco, no que parece ser um plano para armadilhar os corpos.

“Não há necessidade de uma granada, vamos apenas esmagá-los”, diz outra voz, sobre os soldados ucranianos que hão de vir recolher os corpos. Os mercenários apercebem-se então que ficaram sem munições.

Estes acontecimentos, vistos e ouvidos num vídeo no campo de batalha, num exclusivo da CNN, juntamente com o acesso a recrutas do grupo Wagner que combatem na Ucrânia, e com a entrevista rara que a CNN realizou com um antigo comandante Wagner que agora procura asilo na Europa, combinam-se para dar um olhar sem precedentes sobre o estado da principal força mercenária da Rússia.

Embora já tenham sido documentados problemas de abastecimento e de moral, bem como alegações de crimes de guerra, entre as tropas russas regulares, a existência de crises semelhantes entre os mercenários do grupo Wagner, muitas vezes descritos como as tropas de choque não oficiais do Presidente Vladimir Putin, é um terrível presságio para a guerra da Rússia na Ucrânia.

Na sombra do Kremlin

Há vários anos que as forças do grupo Wagner gozam de notoriedade global. Mas à medida que a “operação militar especial” de Putin na Ucrânia rebenta pelas costuras, e com o anúncio de uma “mobilização parcial” para recrutas necessários a levar mais de 200 mil cidadãos russos a fugir para países vizinhos, as fissuras nesta suposta força de elite estão a aparecer.

Desde a criação do grupo Wagner em 2014, o seu mandato, pegada e reputação internacional têm vindo a crescer. Considerada pelos analistas como uma empresa militar privada aprovada pelo Kremlin, os seus combatentes têm lutado na Ucrânia desde a invasão russa em 2014 e na Síria, bem como operado em vários países africanos, incluindo o Sudão, Líbia, Moçambique, Mali e a República Centro-Africana.

Com uma reputação na Rússia de constituírem uma força fiável e valiosa, os soldados privados do grupo Wagner reforçaram os interesses globais e os recursos militares de Moscovo, esticando os combates numa guerra na Síria em apoio ao regime de Assad. Como noticiou a CNN, os seus destacamentos têm sido frequentemente a chave para o controlo russo de recursos lucrativos, desde o ouro sudanês ao petróleo sírio.

Exibindo equipamento moderno nos vídeos de recrutamento, com armas pesadas e até helicópteros, eles assemelham-se às Forças Especiais dos EUA.

“Estou convencido de que se a Rússia não utilizasse grupos mercenários em tão grande escala, não haveria dúvidas quanto ao sucesso que o exército russo alcançou até agora", diz Marat Gabidullin - um antigo comandante Wagner que em tempos foi responsável por 95 mercenários na Síria - à CNN.

Em contacto com antigos camaradas que agora combatem na Ucrânia, Gabidullin afirma que o uso de mercenários pela Rússia aumentou à medida que a execução da sua guerra pelo Kremlin caiu na desordem. O ministro da Defesa da Ucrânia, Oleksiy Reznikov, disse à CNN que as tropas Wagner estavam a ser destacadas nas “missões mais difíceis e importantes” na Ucrânia, desempenhando um papel fundamental nas vitórias russas em Mariupol e Kherson.

Gabidullin, contratado do Grupo Wagner, na Síria em 2015. Marat Gabidullin / CNN

O Kremlin não respondeu aos pedidos de comentário feitos pela CNN.

A informação oficial limitada sobre o grupo Wagner, e as negações de longa data do Kremlin sobre a sua existência e sobre os seus laços com o Estado russo, apenas acrescentaram camadas à sua infâmia e apelo, ao mesmo tempo que ajudaram o grupo a nublar a análise quanto às suas exatas capacidades e atividades.

Na realidade, porém, o grupo Wagner - tal como a Rússia - está a lutar na Ucrânia, de acordo com o testemunho em vídeo dos próprios combatentes mercenários do grupo.

Falta de experiência

Mais de sete meses de luta lançaram uma dura luz sobre as falhas no desempenho militar da Rússia na Ucrânia. Os pequenos ganhos da Rússia, especialmente em comparação com os ambiciosos objetivos iniciais de Putin para a guerra, tiveram um enorme custo, dizimando unidades da linha da frente e fazendo passar fome muitos dos seus soldados, bem como reduzindo a experiência de importância crítica.

Aviso: este vídeo contém linguagem ofensiva

A experiência no campo de batalha é um dos dois fatores que o ex-comandante Gabidullin - que deixou o grupo em 2019 e entretanto publicou as suas memórias sobre o tempo em que trabalhou para o grupo - diz que separam os mercenários das tropas russas regulares, sendo o outro o dinheiro.

“A espinha dorsal destes grupos foi sempre constituída por pessoas muito experientes, que passaram por várias guerras”, explica à CNN.

Depois de servir como oficial júnior com uma unidade aérea nos dias do fim da União Soviética, Gabidullin voltou à vida militar como recruta Wagner na sequência da invasão russa da Ucrânia oriental em 2014. Segundo ele, muitos elementos-chave do grupo Wagner podem, como ele, ter lutado anteriormente na Ucrânia, bem como na Síria, ganhando valiosa experiência de combate, alheia à maioria das tropas russas regulares.

“Têm uma experiência mais pesada, mais significativa do que o exército. O exército [é constituído por] jovens soldados que foram forçados a assinar um contrato, não têm experiência", diz ele.

É isso que torna tais forças paramilitares na Ucrânia, das quais o Wagner é apenas uma, tão valiosas para a Rússia.

“O exército russo não pode lidar [com a guerra] sem mercenários", afirma Gabidullin, acrescentando que há “um mito muito grande, uma grande ofuscação sobre um exército russo forte”.

Hoje, pelo menos 5.000 mercenários ligados ao grupo Wagner estão a operar com forças russas na Ucrânia, disse à CNN Andrii Yusov, porta-voz da agência de inteligência de defesa da Ucrânia, que tem estado a monitorizar o Wagner na Ucrânia. Este número é apoiado por uma fonte francesa dos serviços secretos, que observou que alguns combatentes Wagner tinham deixado o continente africano para reforçar os esforços do grupo na Ucrânia.

O Kremlin tem confiado cada vez mais nos combatentes do grupo Wagner como tropas de assalto, segundo o Ministério da Defesa da Ucrânia. Escondidos da contagem oficial de mortos russos, e disponíveis para operações cuja existência pode ser negada, eles têm suportado um pesado fardo de baixas, o que tem sido politicamente sensível para Putin na Rússia.

"O Wagner tem sofrido elevadas perdas na Ucrânia, especialmente e sem surpresa entre os jovens e combatentes inexperientes", de acordo com o que afirmou em setembro uma fonte sénior da defesa dos EUA.

Uma equação simples está subjacente ao emprego das forças Wagner, diz Gabidullin: “Paz russa por dólares americanos”.

Os mercenários podem ganhar até 5.000 dólares por mês.

Aos combatentes do Wagner foram até oferecidos bónus - todos pagos em dólares americanos - pela destruição de tanques ou unidades ucranianas, de acordo com uma fonte superior de defesa ucraniana e com base na inteligência recolhida pelas autoridades ucranianas junto do grupo Wagner desde o início da guerra.

Os incentivos financeiros do grupo Wagner

De acordo com o Ministério da Defesa do Reino Unido, aos combatentes Wagner foram também atribuídos sectores específicos da linha da frente, operando quase como unidades normais do exército, uma mudança brusca em relação à sua história de missões distintas e limitadas na Ucrânia.

Yusov disse também que o grupo Wagner está a ser cada vez mais utilizado para “remendar buracos” na linha da frente russa. Isto foi também confirmado por um oficial superior da defesa dos EUA, que acrescentou que o Wagner está a ser usado em diferentes linhas de frente, ao contrário dos combatentes chechenos, por exemplo, que estão concentrados em torno da ofensiva russa dirigida a Bakhmut.

Isto levou a desafios logísticos significativos, diz ele, com a necessidade de fornecer munições, alimentos e apoio às tropas Wagner para operações alargadas, tudo isto enquanto a Ucrânia tem aumentado os seus ataques à logística russa.

Filmagens de “bodycams” (câmaras de filmar presas ao corpo) de alegados combatentes Wagner em agosto, que foram passadas à CNN pelo Ministério da Defesa ucraniano, mostram mercenários a queixarem-se de falta de coletes à prova de bala e capacetes. Num outro vídeo, um guerrilheiro queixa-se de ordens para atacar posições ucranianas quando a sua unidade está sem munições.

Sapatos para encher

As fileiras do grupo Wagner também foram esvaziadas por perdas no campo de batalha. Em resposta, voltaram-se para recrutamentos invulgarmente públicos.

Na Rússia, surgiram cartazes a apelar a novos recrutas para o grupo Wagner. Adornados com um número de telefone e uma imagem de combatentes em camuflagem. O slogan - "A Orquestra 'W' Espera-o” - alude à alcunha passada do Wagner, a “orquestra”.

Um cartaz de recrutamento do grupo Wagner na Rússia, que faz parte do recente recrutamento público.

A ampla rede de recrutamento do grupo corresponde a uma mudança face ao seu passado secreto. Até Yevgeny Prigozhin, o aliado de Putin, admitiu finalmente o seu papel como chefe do grupo Wagner no final de setembro, depois de ter passado anos a tentar distanciar-se do grupo mercenário através de repetidas negações, e mesmo levando a tribunal os meios de comunicação russos que o investigavam.

Os convites do grupo Wagner para contactar recrutadores também se espalharam nos meios e redes sociais. Um recrutador contactado pela CNN ofereceu um salário mensal de “pelo menos 240.000 rublos” (cerca de 4.000 dólares) com a duração de uma “viagem de negócios” - código para um destacamento - de pelo menos quatro meses. Grande parte da mensagem do recrutador enumerava condições médicas que excluíam os candidatos da adesão: desde o cancro à hepatite C e ao abuso de substâncias.

Em contraste com a imagem de organização de elite militar, um recrutador do Wagner fez uma admissão surpreendente sobre os recrutas quando contactado por um jornalista da CNN: disse não ser necessária qualquer experiência militar.

A mensagem terminou com uma palavra de código - "Morgan" - que os candidatos deviam dar à porta das instalações de Wagner em Krasnodar, na Rússia.

Recrutar prisioneiros

Em setembro, surgiu um vídeo em que parece ser Prigozhin quem está a recrutar prisioneiros das prisões russas para o grupo Wagner. A sua proposta: uma promessa de clemência em troca de seis meses de serviço de combate na Ucrânia, apoiando a invasão da Rússia.

É uma medida que há meses seria impensável para a empresa militar privada, outrora considerada uma das unidades mais profissionais do arsenal do Kremlin.

 

Yevgeny Prigozhin fotografado em 2016 (Foto: Mikhail Svetlov/Getty Images)
Yevgeny Prigozhin fotografado em 2016 (Foto: Mikhail Svetlov/Getty Images)

“Um acto de desespero” - é como o ex-comandante do grupo Wagner, Gabidullin, descreve o apelo.

A aparente campanha de recrutamento de prisioneiros por Prigozhin corresponde aos esforços russos mais amplos para mobilizar a população prisional do país para o combate, oferecendo salários mensais no valor de milhares de dólares, e pagamentos por morte de dezenas de milhares de dólares, para recrutar as famílias dos prisioneiros.

Tanto para os camaradas do Wagner como para os seus adversários ucranianos, isso é preocupante.

"[O Grupo Wagner] está pronto para enviar qualquer um, qualquer um”, disse o Procurador Ucraniano Yuriy Belousov à CNN. “Já não há critérios de profissionalismo”.

Trabalhando nas investigações ucranianas sobre possíveis crimes de guerra russos, Belousov receia que este recrutamento facilitista leve ao crescimento em escala dos crimes de guerra.

Embora o recrutamento feito diretamente nas prisões seja um novo passo, ter registo criminal já antes não era obstáculo à contratação pelo Wagner, de acordo com Gabidullin. Ele próprio diz ter cumprido três anos de prisão por homicídio, e contou à CNN sobre comandantes proeminentes do Wagner que tinham servido em todo o mundo com o grupo após cumprirem penas de prisão.

O inimigo dentro

Os combates do Wagner na Ucrânia puseram em movimento um problema mais vasto: o descontentamento dentro das suas fileiras. Para um grupo que depende do apelo dos salários e do trabalho, isso é crítico.

A partir de telefonemas intercetados, os serviços secretos ucranianos observaram em agosto um “declínio geral do moral e do estado psicológico” das tropas Wagner, afirmou o porta-voz dos serviços secretos ucranianos da defesa, Yusov. É uma tendência que ele também tem visto de forma mais ampla nas tropas russas.

A redução dos requisitos de recrutamento do Wagner aponta também para a desmoralização, diz, e o número de “soldados verdadeiramente profissionais que estão dispostos a voluntariar-se para lutar com o Wagner” está também a diminuir.

O ex-comandante Gabidullin, que diz falar quase diariamente com os seus antigos camaradas, explicou que esta desmoralização se devia à sua insatisfação “com a organização geral dos combates: incapacidade [da liderança russa] de tomar decisões competentes, de organizar batalhas”.

Para um mercenário que contactou Gabidullin para pedir conselhos, essa incompetência era já demasiada. “Ele ligou-me e disse: Basta, não vou estar mais lá. Não vou participar mais nisto", contou Gabidullin à CNN.

E à medida que as perspetivas de vitória da Rússia na Ucrânia - ou até mesmo de reivindicar um desfecho positivo - parecem magras, a vida de um mercenário russo não tem o mesmo apelo que terá tido em tempos.

“Pode ser que o dinheiro já não compense”, disse o procurador ucraniano Belousov.

Num dos muitos vídeos que saem das linhas da frente da Ucrânia, a triste realidade da guerra do Wagner é evidente nas filmagens fornecidas à CNN, que alegadamente mostram as operações do grupo.

Num clip, um mercenário do Wagner caído jaz, morto, quase pacificamente, com a sua mão esquerda agarrando suavemente a terra negra. À sua volta, o campo de batalha alinha-se de cadáveres e de destroços em chamas dos veículos blindados. Tiros ocasionais crepitam através do fumo.

“Desculpa, mano, desculpa”, diz o camarada do soldado, batendo levemente nas suas costas, despidas da farda pela batalha que o matou. “Vamos sair daqui, se eles dispararem contra nós, jazeremos ao lado dele".

 

 

LEIA TAMBÉM
O que é o Grupo Wagner, o exército de mercenários russos na Ucrânia
Mercenários e meninos soldados - reportagem na República Centro-Africana
 
Scroll top