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Psicologia em tempo de guerra. A guerra não está a dar, está a acontecer!

"Psicologia em tempo de guerra", uma rubrica para ler no site da CNN Portugal

Há dias, dei de caras, pelos meandros da Internet, com uma frase que me fez pensar sobre os tempos tempestuosos em que vivemos, nesta altura em que a Guerra se faz ouvir nos nossos arredores e se tornou omnipresente no nosso quotidiano. Reza a frase, numa tradução livre, que “as estatísticas são seres humanos a quem secaram as lágrimas”. A frase é de Paul Brodeur, escritor e divulgador científico, e sublinha um aspecto muito relevante, aquele da despersonalização do sofrimento, agora que a Guerra passou do campo da metáfora para a sentirmos diariamente, como pano de fundo do dia e das conversas.

Não é a primeira Guerra que sabemos que existe, nem a primeira que acompanhamos nos media. Recordo o tracejado luminoso das anti-aéreas iraquianas, na Primeira Guerra do Golfo, numa estranha excitação que, criança, não sabia compreender, nem interpretar. “A Guerra deu na TV”, como canta o Sérgio Godinho, nessa altura. Outros conflitos passaram a estar no digital, com tudo o que isso tem de democrático ou pernicioso. Nenhum conflito, nenhuma Guerra está tão presente no nosso mundo como esta. E temos que perceber que podemos não estar preparados para tal. E que temos que estar atentos. A Guerra é uma entidade absoluta, nunca relativa.

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Vivemos tempos estranhos, difíceis de assimilar e de encaixar no nosso puzzle interior, em que o conforto do nosso privilégio ocidental se vê confrontado com um contexto de Guerra, que circunscrevíamos a outras paragens e a outras cronologias. Em que passámos de uma guerra metafórica contra um vírus, que nos satura e desafia há mais de dois anos, para percebermos que a Guerra não é uma entidade abstracta, distante ou anacrónica. É uma realidade, quiçá humanamente inevitável, que aniquila (mesmo) os nossos semelhantes, da qual não estamos livres.

A Guerra deixou de dar “na retrospectiva”, mais uma vez revisitando as “Cartas de Fogo”, do Sérgio. Passou a estar no quotidiano, nos rodapés contínuos dos canais televisivos, nas redes sociais, nas notificações constantes nos telemóveis. Passou a ser, até, um desbloqueador de conversas, esse termo genial cunhado pelo Nuno Markl, à falta de outro assunto. Passou a estar nas notícias, no imaginário, nos medos das crianças (aquelas que agora tremem, sem saberem porquê, quando passa um avião ou quando um carro acelera na rua…).

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A Guerra dá na televisão. A Guerra está no Instagram e no Tiktok. A Guerra acompanha o café, ao pequeno-almoço. Adormecemos a “ver” a Guerra e acordamos com ela. Os nossos filhos sonham com ela. Confrontamo-nos (mas será que ainda os assimilamos?) com números de baixas, descrições de armamento militar, dramas dos refugiados, histórias de vidas interrompidas daqueles que são como nós. Uma torrente de informação que vemos e que sentimos. “Sou incapaz de multiplicar o sofrimento de um homem por cem milhões”, dizia Albert Szent-Györgyi. E dizia bem.

Empatia. Aquela extraordinária conquista humana que nos singulariza e que nos pode vulnerabilizar, partindo da constatação da vulnerabilidade e do sofrimento do Outro. A Guerra sente-se. As imagens da Guerra vivem-se. Não passar da empatia para a empatite (em que, por excesso ou por defeito, deixamos de ler e sentir o Outro) é o desafio, nestes tempos em que temos que lidar com mais do que aquilo que estamos preparados para digerir. Para assimilar. Entrar em dissonância cognitiva (negando aspectos sensíveis da realidade, privilegiando manter tudo como sempre, mesmo que isso desafie a lógica) é tentador, e perversamente protector, mas é perigoso. Torna a Guerra (mais) um conteúdo que se consome (e que pode acabar por nos consumir). Desumaniza-nos e desobriga-nos de agir, desligando-nos, por exemplo, da solidariedade.

A Guerra não está (só) a dar. A Guerra está a acontecer. Aconteçamos com ela.

E percebamos que a tirania, o discurso único, a promoção do ódio e o populismo também moram por aqui. Há sementes que não podem florescer. A Paz é uma conquista, não um bem adquirido. Acontecermos com esta Guerra é também percebê-lo. E praticá-lo.

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