Terça-feira, 19 de abril de 2005. Estava no bar do Instituto Superior Técnico em Lisboa, na minha universidade. Entre jogos de cartas, gargalhadas, conversas sobre Dragonball, a televisão diz-nos em direto quem seria o sucessor de João Paulo II. Habemus Papam. Joseph Ratzinger. Os meus colegas de engenharia, não crentes a maioria, olhavam para mim e perguntam “Jorge, tu que és crente, diz-nos lá quem é este senhor?”. Desconhecia o novo Papa, o seu pensamento. Foi então que li “Introdução ao Cristianismo” escrito algumas décadas antes.
O livro começa por notar como é difícil o diálogo entre crentes e não crentes. Ilustra-o com uma parábola de Kierkegaard: um fogo irrompe num circo, e o diretor do circo envia um palhaço, vestido a rigor, a correr para a aldeia seguinte para pedir ajuda. Os habitantes ignoram o palhaço e quanto mais dramaticamente o palhaço pede ajuda, mais eles se riem dele. No final, o circo e toda a aldeia são consumidos pelas chamas.
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Para Ratzinger, no século XX a fé cristã quando faz os seus apelos sobre a conversão e o destino eterno de cada um e da humanidade, tornou-se, para o homem moderno, como este palhaço. Esta história mostra o grande desafio que o cristianismo enfrenta no mundo contemporâneo. É preciso quebrar os clichés do pensamento e da linguagem. Uma dificuldade que não é superada pela mudança exterior de vestuário e de linguagem. No nosso tempo o crente deve viver com dúvidas e insegurança. Isso aprendemos quando revisitamos a vida dos santos.
Foi para mim uma lição importante. Tinha algo em comum com esses amigos não crentes. Lembro-me de pensar: mas tudo isto não são apenas bonitas teorias? Como é que um Papa vive isto? O seu pontificado estava pensado para todos. Também para os meus amigos. E isso surpreendeu-me. Dou alguns exemplos.
Crentes e não crentes. Num bar do Instituto Superior Técnico, ou em Paris ou Londres. Todos partilham dúvidas, dificuldades. Bento XVI aponta para a solução: “voltar a colocar Deus em primeiro lugar”, voltar a encontrar um significado para existência. “A tarefa de um cristão resume-se a isso: revelar de novo a prioridade que é Deus. Hoje o importante é voltar a ver que Deus existe, que Deus nos diz respeito e que nos responde”.
Dizia Chesterton que a mediocridade consiste em estar diante da grandeza e não se dar conta. Bento XVI fez-nos descobrir - a crentes e não a crentes - a beleza de Deus e o caminho para voltar a ele. Afinal "Ele" [Deus] é muito melhor do que nós pensávamos. Por isso, o Papa alemão foi tão criterioso nos comentários à bíblia. Tão acertado no tom intelectual com que olhou para os problemas do mundo. Tão generoso por nos ter vertido essas reflexões em discursos, homilias e abundantes livros. Serão necessárias décadas para descobrir essa riqueza. Uma herança não merecida. Uma grandeza igualmente desconhecida. Ainda não sabemos bem quanto devemos a Bento XVI. Mas já sabemos juntar-nos às palavras do Papa Francisco: "no coração sentimos muita gratidão: gratidão a Deus por tê-lo dado à Igreja e ao mundo; gratidão a ele, por todo o bem que fez e, sobretudo, por seu testemunho de fé e oração, especialmente nestes últimos anos de sua vida retirada."
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