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Pode ser o caso "mais sério", "mais chocante" e "mais surpreendente" a atingir Bruxelas: o escândalo de corrupção no Parlamento Europeu que envolve o Catar

A confirmar-se, pode ser o maior escândalo de corrupção a atingir Bruxelas em anos, diz o diretor da Transparência Internacional da União Europeia

Pelo menos 16 buscas domiciliárias foram levadas a cabo pela polícia de Bruxelas, na sexta-feira, por suspeitas de organização criminosa, corrupção e lavagem de dinheiro. A investigação das autoridades belgas, que decorre há vários meses, indicam que o Catar - anfitrião do campeonato mundial de futebol - possa estar a "influenciar decisões económicas e políticas no Parlamento Europeu". A vice-presidente do Parlamento Europeu Eva Kaili e três outras pessoas ficaram em prisão preventiva.

Figuras como o antigo deputado de esquerda e fundador da Fight Impunity, Antonio Panzeri, e o secretário-geral da Confederação Internacional de Sindicatos (CIS), Luca Visentini - entretanto em liberdade - estiveram entre as detenções que renderam mais de meio milhão de euros em dinheiro, bem como telefones e computadores. Um mandado de detenção, ao que o jornal Politico Europe teve acesso, acusa Panzeri de "intervir politicamente com membros que trabalham no Parlamento Europeu, em benefício do Catar e do Marrocos”. A sua mulher, Maira Colleoni, e a filha, Silvia Panzeri, também foram detidas em Itália, por suspeitas de serem cúmplices nos delitos. 

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O jornal belga "Le Soir" avançou ainda a prisão do diretor geral da ONG No Peace Without Justice, Niccolò Figà-Talamanca e as buscas na casa de um segundo eurodeputado, o socialista Marc Tarabella. A fundadora da organização, Emma Bonino, não comentou a situação.

O cenário rapidamente se agravou, ao final do mesmo dia, aquando da detenção de uma vice-presidente do Parlamento Europeu, Eva Kaili, e do seu companheiro, Francesco Giorgi, assistente parlamentar ligado à Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas nesta instituição. Apanhado no sábado com uma mala cheia de dinheiro à saída de um hotel em Bruxelas, o pai da socialista, Alexandro Kailis, também acabou envolvido na investigação, mas já se encontra em liberdade.

De apresentadora de TV a eurodeputada

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Hoje, Eva Kaili tem 44 anos, mas entrou na política aos 20. É natural da segunda maior cidade da Grécia, Salonica, tendo inclusivamente alcançado o cargo de vereadora da cidade em 1998. 

Formou-se em arquitetura, estudou relações internacionais e europeias e concluiu o curso de jornalismo. Segundo a agência de notícias France-Press, foi entre 2004 e 2007 que apresentou o noticiário para o Mega TV, um dos principais canais privados da Grécia. 

Torna-se, no mesmo período, o membro mais jovem do partido Pasok, quando é eleita para o parlamento grego. Sobe até ao Parlamento Europeu em 2014, através do Partido Socialista, e mantém o mandato nas eleições europeias de 2019. Já em 2022, ascende ao cargo de uma das 14 vice-presidentes da instituição e insere-se na delegação responsável pelo desenvolvimento das relações da União Europeia com a Península Arábica. 

Curiosamente, Kaili foi uma das grandes defensoras de Doha na Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas. Votou inclusivamente a favor da liberalização de vistos para o Catar e o Kwait, e elogiou ainda a "transformação histórica" do país desencadeada pelo Mundial de futebol, durante um plenário sobre a morte de milhares de trabalhadores migrantes, a 22 de novembro deste ano. "Eu própria digo que o Catar é líder nos direitos laborais. Apesar dos desafios, que levam até as empresas europeias a negar-se a aplicar essas leis, eles estão comprometidos com uma visão por opção e estão abertos ao mundo", sublinhou.

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Pouco antes do evento, e após o cancelamento de uma visita de eurodeputados ao Catar, viajou sozinha até ao país do Golfo, afirmando estar a representar 500 milhões de cidadãos europeus que estão atentos ao "progresso". A eurodeputada alemã e responsável pela Delegação para as Relações com a Península Arábica, Hannah Neumann, acusou-a de estar a agir nas suas costas. Defende que o grupo tenha sido desconvidado por ter uma posição "equilibrada", ao passo que as declarações de Kaili seriam menos críticas. 

No seguimento da detenção, o mandato de Kaili no Parlamento Europeu foi imediatamente suspenso. "À luz das investigações judiciais em curso, realizadas pelas autoridades belgas, a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola decidiu suspender, com efeitos imediatos, todos os poderes, deveres e funções que foram delegados a Eva Kaili na qualidade de vice-presidente do Parlamento Europeu", revelou um porta-voz de Roberta Metsola.

Agora em prisão preventiva, Kaili terá a sua imunidade parlamentar revogada, uma vez que o crime de que é acusada foi detetado "em flagrante delito". 

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A líder do PE utilizou ainda a rede social Twitter, no sábado, para declarar que o Parlamento Europeu se mantém "firme contra a corrupção", garantindo que irá cooperar "totalmente com as autoridades policiais e judiciárias competentes".

A suspensão de Kaili também se estendeu ao grupo dos Socialistas e Democratas, e do seu partido na Grécia, Pasok. O Partido Socialista Europeu diz ter ficado “completamente surpreendido”, falando num “balde de água fria” e num “choque” para o movimento sindical europeu. 

Mas que objetivo levaria a um investimento tão avultado por parte de Doha? 

Aquilo que podia ter sido uma manobra de marketing com um impacto significativo no Catar, acabou por colocar o país muçulmano no centro da polémica sobre as condições de trabalho dos migrantes por trás da organização do campeonato, políticas de proteção de direitos humanos e possível suborno no processo de licitação. A posição conservadora sobre os direitos das mulheres e LGBTQ+ também foi alvo de fortes acusações em todo o mundo.

Mas a Confederação Internacional de Sindicatos, mesmo antes de ser assumida por Luca Visentini, foi uma exceção entre os críticos. O problema é que a reputação do Catar é de grande importância num panorama de acordos com os países da União Europeia para o seu gás natural. 

Já surgem reações

A confirmar-se, pode ser o escândalo de corrupção "mais sério", "mais chocante" e “mais surpreendente” a atingir Bruxelas em anos, diz o diretor da Transparência Internacional da UE, Michiel van Hulten. Acrescenta que o Parlamento criou uma "cultura de impunidade", com uma "combinação de regras e controlos financeiros negligentes, e uma completa falta de supervisão ética independente". 

Alberto Alemanno, professor de direito no Colégio da Europa em Bruges, escreveu no Twitter que o controlo no Parlamento é “defeituoso”.  

Após denúncias contra Antonio Panzeri, vários nomes do conselho da Fight Impunity estão a abandonar os seus cargos. Na ONG que se diz dedicar à "luta contra a impunidade por graves violações de direitos humanos nos tempos modernos", estavam registados a ex-chefe de Política Externa da UE, Federica Mogherini, o ex-primeiro-ministro francês, Bernard Cazeneuve, o ex-comissário europeu de migração, Dimitris Avramopoulos, a ex-deputada Cecilia Wikström, e ainda a deputada Isabel Santos.

Já os socialistas do PE pediram que a proposta de liberalização de vistos fosse suspensa, e a viagem ao Catar planeada pela Comissão de Assuntos Externos, depois de uma visita à Arábia Saudita, foi cancelada.

Num comunicado oficial divulgado este domingo, o governo do Catar declara que qualquer associação com as alegações relatadas "é infundada e gravemente mal informada". “O Estado do Catar trabalha por meio do envolvimento de instituição para instituição e opera em total conformidade com as leis e regulamentos internacionais", garante. 

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