Há alguns anos, uns poucos depois da ocupação russa da Crimeia, conversava informalmente com um embaixador europeu junto da NATO. A prioridade da aliança militar, defendia o diplomata, deveria ser o combate ao terrorismo islâmico e o reforço do chamado Flanco Sul. Estranhei não ouvir uma palavra sobre a Rússia e perguntei se Vladimir Putin não era uma ameaça ou, pelo menos, o exacto oposto dos "nossos" valores de democracia e liberdade.
A resposta veio na forma e no tom que quase já me habituara a ouvir em muitos anos de Bruxelas. "Você parece os nossos amigos bálticos e polacos, sempre a falar da Rússia e obcecados com a Guerra Fria. Esse tempo já acabou."
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Saltamos agora para abril de 2022. Aconteceu-me ter passado um mês em Kyiv durante o cerco das tropas russas à capital ucraniana. Acabei de regressar ao meu posto habitual de correspondente diplomático em Bruxelas e alguns eurocratas perguntam-me como os Ucranianos vêem a União Europeia. Respondo sem intenção de provocar que Boris Johnson é o político mais popular nas ruas de Kyiv. E que Macron e os "alemães" são pouco mais que desprezados.
Por esta altura a Europa estava genuinamente chocada com a invasão russa e solidária com a Ucrânia. Os ditos eurocratas tentavam reconciliar-se com o passado. Aborda-me um deles, antigo assessor do Presidente da Comissão da Comissão Europeia, José Manuel Barroso: "Sabes, esses anos todos, quando íamos a Moscovo para as reuniões com o Putin havia sempre um momento em que ele se punha a falar do passado. A queda da União Soviética, a perda da Ucrânia, o ressentimento com o Ocidente. A reunião tornava-se num monólogo que durava uma eternidade. E nós ficávamos a ouvi-lo sem saber o que dizer. Sabes, tínhamos lá ido para fazer «negócio» e aquilo parecia-nos estranho".
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Mantemo-nos em 2022. Vimos este ano a Alemanha a pedir solidariedade aos outros estados perante a crise energética. Afinal o milagre económico alemão foi alimentado pelo gás barato da Rússia. Na verdade, o preço foi bem alto: custou a segurança do continente e tragicamente colocou a UE a financiar a máquina de guerra de Putin. O legado de Angela Merkel parece irremediavelmente manchado.
Mas houve solidariedade. Ou melhor, a Europa manteve a união que trazia do combate à pandemia. Se o Kremlin contava com a divisão política dos 27, cometeu mais um grave erro de cálculo. A Hungria é uma dor de cabeça mas Viktor Orbán condenou-se ao isolamento.
Em Bruxelas foram aprovados sucessivos pacotes de sanções económicas à Rússia e de dinheiro e armas para a Ucrânia. Caíram tabus em tempo recorde e, em dias de múltiplas reuniões, tornou-se difícil distinguir a UE da NATO.
Por isso não surpreendeu ver Ursula von der Leyen, a Presidente da Comissão, proferir o discurso da rentrée política europeia vestida com as cores da Ucrânia. Política hábil, dinâmica e muito sensível à opinião pública, von der Leyen está de pedra e cal com a causa ucraniana.
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Em surdina ainda, contudo, vai-se escutando algum incómodo. Algumas capitais alertam que se tornou difícil chamar a atenção da Presidente da Comissão para outros temas. Que é preciso fazer mais pelos cidadãos porque vai ser um inverno de descontentamento económico. Esses críticos enervam-se quando ouvem as teorias de alguns funcionários da comissão sobre a necessidade de deixar os preços subir, porque são tempos difíceis e as famílias devem ser obrigadas a fazer escolhas.
Outros são diplomatas europeus de ofício e natureza. Custa-lhes que se tenha entrado nisto sem a perspectiva de "um fim de jogo". Mantêm, desde o início, que "a Rússia não vai desaparecer" e que, a dado momento, será preciso negociar a paz com Moscovo.
Neste ano, nos últimos anos, a União Europeia transformou-se muito. Mas não sabemos ainda se para sempre.
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