Uma jogada de alto risco de Sunak ou "uma oportunidade" para África? O que envolve a proposta de enviar migrantes para o Ruanda, que pode ter impacto na paz entre as Irlandas
Protesto migrantes Reino Unido acordo Ruanda (Kirsty Wigglesworth/AP)

Uma jogada de alto risco de Sunak ou "uma oportunidade" para África? O que envolve a proposta de enviar migrantes para o Ruanda, que pode ter impacto na paz entre as Irlandas

Como outros países europeus com governos conservadores, o Reino Unido está apostado na terceirização do asilo de migrantes e refugiados na tentativa de roubar eleitores à extrema-direita. Depois de algumas derrotas judiciais, o governo de Rishi Sunak acaba de ver aprovado o projeto-lei “Segurança do Ruanda” na Câmara dos Comuns, mas a aprovação pelos Lordes não-eleitos está longe de ser um dado adquirido. Mesmo que o consiga, especialistas dizem que mais dificuldades se avizinham no plano internacional – com potenciais efeitos no Acordo da Sexta-Feira Santa, que pôs fim a 30 anos de um sangrento conflito entre Dublin e Belfast. E até lá, cerca de 5 mil pessoas aguardam num limbo político e judicial sem fim à vista

Faltavam poucos dias para o parlamento britânico aprovar o projeto-lei “Segurança do Ruanda” quando, a 14 de janeiro, mais um barco sobrelotado naufragou no Canal da Mancha, em rota para Inglaterra, com cerca de 70 pessoas a bordo. Pelo menos cinco morreram nas águas geladas no norte de França e mais de 30 foram resgatadas – uma com “hipotermia severa” após a exposição prolongada à água a 9 graus centígrados, a outra inconsciente e hospitalizada em estado grave. Navios da guarda costeira francesa foram de imediato enviados para o local, na tentativa de encontrar mais pessoas que ainda pudessem "estar à deriva no mar". 

Esta foi a última de um rol de tragédias que, nos últimos anos, têm deixado a descoberto a incapacidade dos governos de França e do Reino Unido em travar as perigosas travessias de migrantes e refugiados pelo canal – uma questão que, para o governo de Rishi Sunak, tem uma solução: ser o Ruanda, e não os tribunais britânicos, a decidir o futuro dos requerentes de asilo que chegam ao Reino Unido “de forma irregular”. Contudo, a medida tem esbatido (e continua a esbater) numa série de decisões judiciais e políticas contrárias à intenção do Partido Conservador.

O litígio tem sido intenso e tudo indica que vai continuar. A primeira batalha judicial aconteceu em meados de 2022, quando, a 10 de junho, o Supremo Tribunal britânico recusou suspender o primeiro voo com requerentes de asilo de várias nacionalidades para Kigali, com o juiz Jonathan Swift a invocar “interesse público material” em avançar com a proposta do governo – na sua visão, fulcral para impedir os traficantes de lucrarem com as travessias pelo Canal da Mancha.

Três dias depois, o tribunal de recursos afinou pelo mesmo diapasão, indicando que Swift “não errou na sua abordagem” e “chegou às conclusões a que tinha direito a chegar”. Mas o voo acabaria por ser suspenso no dia seguinte, 14 de junho, no seguimento de uma série de recursos interpostos no Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), que “raramente intervém em questões judiciais de Estados-membros”, ressaltou na altura James Wilson, vice-diretor da Detention Action, que monitoriza as políticas de detenção, deportação e asilo do Reino Unido. “O facto de o ter feito agora mostra o quão potencialmente perigosa é a política governamental de remoções para o Ruanda.”

Face à sentença europeia, os juízes do Supremo britânico reviram a sua postura e, em novembro passado, confirmaram que a proposta de lei do governo Sunak é ilegal, contrária quer à legislação britânica, quer ao direito internacional. A rejeição unânime da proposta pelo painel de cinco juízes levou o governo a apresentar um novo projeto-lei, “Segurança do Ruanda”, que foi aprovado por uma maioria dos deputados da Câmara dos Comuns na semana passada, e que dita que a nação africana com mais de 13 milhões de habitantes é um destino seguro para requerentes de asilo.

Hope Hostel, em Kigali, Ruanda, fotografado dias antes de o primeiro voo do Reino Unido com requerentes de asilo ter sido suspenso (AP)

 

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Um "pingue-pongue" entre Comuns e Lordes e a regra 39

“Apesar de o projeto-lei ter avançado na Câmara dos Comuns, enfrenta agora escrutínio na Câmara dos Lordes e, sob a Convenção de Salisbury, os Lordes normalmente não obstruem o manifesto do governo, apesar de o Ruanda nunca ter integrado o manifesto eleitoral do governo em 2019, e os trabalhistas concordaram em respeitar este protocolo”, explica Sarah Gogan, advogada de imigração da sociedade Harbottle & Lewis. “Ainda assim, isto não impede os Lordes de tornarem a vida o mais difícil possível para o governo, o que pode resultar numa prolongada batalha.”

Para Gogan e outros especialistas, o que está em causa é uma constatação dos factos – no caso, se o Ruanda é ou não um país seguro – que, ao abrigo das leis nacionais e internacionais, obriga o Reino Unido a assumir as suas responsabilidades para com migrantes e refugiados. E foi essa a premissa que os Lordes invocaram esta semana, no primeiro de uma série de debates e votações que, como aponta a magistrada, deverão resultar num demorado braço-de-ferro entre o poder executivo e o legislativo, nomeadamente entre os deputados da câmara baixa e os legisladores não-eleitos da câmara alta do parlamento.

“Parece que esta é a primeira vez que a Câmara dos Lordes vota contra a ratificação de um tratado e é também a primeira vez que um governo ignora uma sentença do Supremo baseada na constatação de um facto”, indica a advogada especializada, no rescaldo da primeira votação dos Lordes. “Dado que o tratado diz que ‘o Ruanda é seguro’, mas que não existem provas que o sustentem [...], os Lordes estão a tentar agir no seu apropriado papel constitucional com base no escrutínio de fundo da legislação e declararam que o governo não apresentou provas que demonstrem que o Ruanda é seguro”, uma decisão contrária à vontade de Sunak que, na prática, vem protelar a decisão final.

Gogan destaca que “os Lordes não estão a dizer que o Tratado do Ruanda não deve ser ratificado”, antes que “o parlamento deve ter a oportunidade de escrutinar o tratado e as medidas nele inscritas antes de decidir se o Ruanda é seguro”. Neste momento, acrescenta, “é improvável que o projeto-lei chegue à votação final na Câmara dos Lordes até 12 de março”, altura em que os deputados da câmara baixa “terão a oportunidade de votar quaisquer alterações introduzidas" pelos primeiros. 

O capítulo seguinte da saga está marcado para a próxima semana, com a continuação do debate na câmara alta – isto numa altura em que o Reino Unido se prepara para as primeiras eleições legislativas participadas desde 2010, que têm de acontecer até 25 de janeiro de 2025. Contudo, a forma como este processo vai ficar concluído continua a ser difícil de prever, sobretudo tendo em conta as convenções ratificadas pelos britânicos. “Crucialmente, embora o projeto-lei possa alterar a lei nacional, o parlamento não pode legislar contra as obrigações do Reino Unido ao abrigo do direito internacional”, destaca a mesma advogada. 

“No que toca especificamente à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), o Reino Unido continua vinculado a ela – e, mesmo que a abandonasse, continuaria a ser abrangido por ela nos seis meses seguintes. Qualquer indivíduo continuaria a poder apresentar uma reclamação ao TEDH em Estrasburgo e esse tribunal teria de avaliar se o Ruanda é de facto seguro, tendo em conta o novo tratado [britânico] e as provas apresentadas pelas partes e pelo Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACDH). E de acordo com as suas obrigações sob a convenção europeia, o Reino Unido ficaria vinculado às conclusões do TEDH.”

Antecipando um potencial “pingue-pongue” entre os Comuns e os Lordes “em busca de um acordo conjunto”, Gogan deixa a ressalva de que, mesmo que o alcancem, existe a possibilidade – como aconteceu há menos de dois anos – de o TEDH intervir a pedido de cidadãos. É isso que estipula o ponto 39 do regulamento do tribunal europeu, que permite a qualquer pessoa submeter um pedido individual por medidas interinas para suspender, mesmo que apenas temporariamente, determinada legislação nacional. 

A confirmar-se o cenário, tal daria lugar “à implementação de medidas provisórias previstas na CEDH que exigem que o Reino Unido se abstenha de aplicar determinadas medidas enquanto uma reivindicação de direitos humanos é analisada”, explica a advogada, invocando um potencial déjá-vu. “Teríamos uma repetição de junho de 2022, quando o primeiro voo para o Ruanda foi impedido de descolar.”

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"Uma profunda compreensão do que significa ser refugiado"

Olhemos para o país que, à distância de 9.080 quilómetros de Londres, está a protagonizar o maior dos atuais dilemas britânicos. Dias antes de os Comuns aprovarem o projeto-lei “Segurança do Ruanda”, um relatório interno do governo destacava que o país do leste africano – que faz fronteira com a República Democrática do Congo (RDC), Uganda, Burundi e Tanzânia – é “relativamente pacífico no que toca ao Estado de Direito”, mas admitia que existem “questões com o seu historial de direitos humanos em torno da oposição ao atual regime [de Paul Kagame, há 24 anos no poder], dissidência e liberdade de expressão”. 

Na mesma altura, o OpenDemocracy revelou um aviso do ACDH da ONU à Administração Interna britânica, de março de 2022 – quando Boris Johnson, ainda primeiro-ministro, apresentou a proposta original de enviar migrantes e refugiados para o Ruanda – sobre as potenciais dificuldades para os requerentes de asilo não-heterossexuais naquele país. “Previamente, requerentes de asilo LGBTQ+ no Ruanda receberam rejeições verbais imediatas por funcionários responsáveis pelo registo de pedidos, que lhes disseram que ‘este não é o sítio para vocês, o Ruanda não lida com tais questões’”, lê-se no relatório, que invoca algumas instâncias de “tortura e abusos por causa da sua sexualidade ou género”. O maior receio invocado é o que acontecerá àqueles que, tendo sido enviados para o Ruanda, virem os seus pedidos de asilo rejeitados e forem recambiados para os seus países de origem, onde enfrentam potencial tortura, perseguição e morte.

Questionado sobre as preocupações do Ocidente com a liberdade de expressão e dissidência no país, Gaidi Faraj tenta desmontar o que classifica de “exageros” com base num “legado racista e colonialista que classifica todos os países africanos como inseguros”. “É notável que a segurança dos imigrantes e requerentes de asilo no Reino Unido não seja sujeita ao mesmo escrutínio”, critica o líder académico, atualmente num cargo de direção no Instituto Americano de Ciências Aplicadas, na Suíça. 

“Os imigrantes e requerentes de asilo, particularmente os provenientes de África, enfrentam racismo e sentimentos anti-imigração no Reino Unido que provavelmente poriam as suas vidas bem mais em risco do que no Ruanda. Para além disso, o Ruanda é, em geral, um país seguro do ponto de vista da segurança pública e da criminalidade. Tendo vivido no Ruanda quatro anos, e mantendo relações de trabalho lá, vi em primeira mão quão exageradas e inflamatórias são muitas das críticas ao seu histórico de direitos humanos.”

Um ponto a favor do Ruanda é a própria história do país, originalmente povoado por três tribos – os Twa, menos de 1% da população, os Hutu e os Tutsi –, que esteve sob domínio alemão desde o final do século XIX até à I Guerra Mundial, quando passou a ser colonizado pela Bélgica. Com o surgimento da ONU, os belgas mantiveram a “tutela” do Ruanda, mas foi-lhes exigido que integrassem os ruandeses no processo político, levando à sua limitada representação no governo. Em 1952, com a implementação do chamado Plano de Desenvolvimento a Dez Anos, as reformas socioeconómicas para promover o progresso político e a estabilidade social imprimiram à minoria Tutsi domínio político, económico e social sobre a maioria Hutu. Isto levou muitos hutus a fugirem para os países vizinhos e conduziu a sete anos de crescente agitação civil, que levariam os belgas a declarar estado de emergência e a chamar tropas do vizinho Congo para restaurar a ordem. 

A proposta de solução do colonizador passava por integrar as repúblicas do Ruanda e do Burundi numa só, o que nunca chegou a acontecer. O país tornar-se-ia independente em junho de 1962, quando o acordo de tutela belga foi revogado pelas Nações Unidas – mas as feridas entre os diferentes grupos étnicos não foram saradas, levando ao genocídio de 1994, quando em 100 dias cerca de um milhão de tutsis, hutus moderados e twas foram mortos por milícias extremistas hutu, perante a inação da comunidade internacional e dos capacetes azuis da ONU.

“Em termos de direitos dos migrantes e refugiados, devemos lembrar-nos que, por causa da sua história, o Ruanda tem uma profunda compreensão do que significa ser refugiado, um entendimento que moldou um longo historial de garantias de segurança e oportunidades a refugiados”, defende Gaidi Faraj. “Hoje o Ruanda garante direitos de circulação e educação aos refugiados, permitindo a sua total integração na comunidade local. O país alberga 130 mil refugiados de vários países – incluindo de vizinhos como a RDC e o Burundi, bem como do Afeganistão e migrantes resgatados da Líbia.”

Um bom exemplo de integração é a Escola de Liderança do Afeganistão (SOLA), criada para garantir educação de qualidade às raparigas afegãs e dar-lhes instrumentos para “serem as líderes de amanhã” e “um dia regressarem ao Afeganistão para reconstruir tudo o que os talibãs destruíram”. Fundada na primavera de 2016 em Cabul, a escola instalou-se no Ruanda após a retirada das forças internacionais do Afeganistão e o regresso dos islamitas ao poder em agosto de 2021.

Kagame, no poder desde 2000, no último Fórum Económico Mundial, em Davos (AP)

Faraj ressalta, a par disso, o caminho que vários países africanos têm percorrido para darem cartas a nível mundial. “Como ex-diretor de uma universidade no Ruanda, e agora diretor de uma escola na Suíça, encorajo os meus alunos não-europeus a procurarem oportunidades em África para trabalharem depois de completarem os seus estudos, face às oportunidades criadas por economias em rápida expansão. O Ruanda lidera o grupo neste aspeto, está empenhado em construir uma economia de crescimento. E o recente lançamento da Iniciativa Tombuctu no Fórum Económico Mundial é um grande exemplo das iniciativas que estão a ter lugar em África, mais concretamente no Ruanda, que criam oportunidades para imigrantes e refugiados.”

Há, contudo, receios de que este tipo de acordos que Kagame está a negociar com vários países sirva apenas para “lavar a imagem do Ruanda para o exterior”, como indicava uma reportagem do New York Times publicada em outubro de 2022, meses depois de Boris Johnson ter anunciado o acordo de migrantes com Kigali. “Numa altura em que nações do Ocidente estão a adotar posturas cada vez mais duras contra migrantes, a pequena nação do Ruanda abriu as suas fronteiras a refugiados, alcançado acordos com países europeus como o Reino Unido e a Dinamarca para abrigar requerentes de asilo deportados. O presidente do Ruanda, Paul Kagame, diz que o seu governo é motivado por altruísmo e a responsabilidade moral de fornecer uma solução para ‘um problema muito complicado em todo o mundo’. Mas críticos dizem que o país está a tentar beneficiar financeira e geopoliticamente dos acordos, e está a apresentar-se como um refúgio para desviar as atenções do seu problemático histórico de direitos humanos.”

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"Se o Reino Unido não quer, não devia impedir o Ruanda de garantir refúgio"

Onde se derrama luz, iluminam-se perspetivas de futuro – mas como em todos os outros países, as sombras escondem pontos menos positivos, como os que o alto comissariado da ONU invocou na sua carta ao governo de Boris Johnson há dois anos. E do lado britânico, também há falhas a apontar, a começar pelas fracas infraestruturas de acolhimento temporário de migrantes e refugiados.

Entre setembro de 2022 e setembro de 2023, 75.340 pessoas pediram asilo no Reino Unido, um número próximo do do último pico de chegadas ao país, em 2002, quando as guerras no Afeganistão, no Iraque e na Somália conduziram a mais de 84 mil chegadas. Do total de requerentes atualmente no país, apenas cerca de 5 mil serão abrangidos pelos planos de deportação para o Ruanda – número que, para muitos, expõe o limitado impacto do programa caso avance. 

Entretanto, o governo conservador enfrenta acusações de ter perdido o rasto à maioria destas pessoas, como denunciado por Stephen Kinnock num discurso no parlamento há uma semana. “Durante o fim de semana, foi revelado que o Ministério da Administração Interna perdeu contacto com uns estrondosos 85% das 5 mil pessoas que já foram identificadas para remoção para o Ruanda”, acusou o deputado trabalhista.

Acrescem críticas ao investimento financeiro numa estratégia que, segundo a maioria dos especialistas em questões migratórias, não vai reduzir o número de travessias pelo Canal da Mancha. A política baseada no slogan “Vamos parar os barcos” já levou Londres a transferir para o governo de Paul Kagame um total de 240 milhões de libras (mais de 280 milhões de euros), sob o compromisso de enviar outros 58 milhões de euros este ano – dinheiro que, apontam organizações humanitárias, deveria estar a ser investido em reais políticas de integração e rotas seguras para os migrantes.

“O governo não deve ter dúvidas de que o seu contínuo falhanço em introduzir novas rotas seguras até ao Reino Unido vai custar vidas, já que as pessoas desesperadas sentem que não têm alternativa às perigosas viagens [pelo canal]”, destacava há duas semanas Laura Kyrke-Smith, diretora-executiva do ramo britânico do Comité Internacional de Resgate, filiado ao Conselho Europeu para Refugiados e Exilados

“A atual mistura política de esquemas inadequados de restabelecimento, medidas ineficazes de dissuasão e a remoção do direito a pedir asilo não vai parar os barcos. O Governo deveria investir o dinheiro que está a gastar com essas medidas num sistema de asilo funcional e em rotas seguras, acessíveis e adequadas para as pessoas que enfrentam maiores riscos e necessidades.”

Gaidi Faraj tem outra perspetiva. “Concordo que não deve ser permitido que ex-colonizadores como o Reino Unido – que enriqueceram à custa das terras de origem de onde muitos migrantes e refugiados estão a vir – escapem às suas responsabilidades pelo atual clima geopolítico, que leva tantas pessoas a fugirem dos seus países. Mas isso é completamente distinto da questão sobre se o Ruanda é ou não um sítio seguro para requerentes de asilo”, ressalta o empresário com longa experiência em diversos países africanos. “Se o Reino Unido não quer ser o local de abrigo [para essas pessoas], não deveria impedir que o Ruanda garanta refúgio aos que dele precisam."

Requerentes de asilo num centro temporário em Gashora, no Ruanda, inaugurado em 2019 ao abrigo de um acordo entre o governo, o alto comissariado da ONU e a União Africana para processar pedidos de asilo de migrantes e refugiados que estavam detidos na Líbia (Luke Dray/Getty Images)

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Oportunidades e riscos

Aparte as condições, ou falta delas, do Ruanda, a oposição ao tratado entre políticos e sociedade civil prende-se sobretudo com o desrespeito pelas regras humanitárias subscritas pelo Reino Unido, para acautelar os limitados direitos de migrantes e refugiados. E entre associações e organizações de direitos humanos, há também receios de um efeito de contágio para outros países.

Neste momento, a Áustria está a negociar um tratado semelhante ao do Reino Unido-Ruanda, o governo conservador de Emmanuel Macron acaba de aprovar duras leis de imigração em França e o chanceler Olaf Scholz já se comprometeu a “analisar” a hipótese de pôr outros países a analisar os pedidos de asilo de parte dos migrantes e refugiados que chegam à Alemanha. Esta foi, aliás, a estratégia seguida pela própria UE em 2016, quando fechou um acordo com a Turquia para tentar reduzir o número de chegadas irregulares ao território europeu. Sob esse acordo, a Turquia comprometeu-se a tomar todas as medidas necessárias para impedir viagens para as ilhas gregas, prevendo-se a “devolução” dessas pessoas à Turquia, sendo que por cada sírio “devolvido”, os Estados-membros comprometeram-se a aceitar um refugiado sírio a aguardar asilo na Turquia. Em troca, Ancara recebeu 6 mil milhões de euros para melhorar as suas condições humanitárias e os cidadãos turcos passaram a poder viajar para a Europa sem visto. 

Sete anos depois, o falhanço do acordo é notório, funcionando como um dos motores do Novo Pacto de Migrações e Asilo da UE, aprovado no final de 2023, que prevê um mecanismo de “solidariedade obrigatória” para os Estados-membros sob “pressão migratória” fora do normal – permitindo que os restantes escolham entre acolher parte desses requerentes de asilo para dividir responsabilidades ou, em vez disso, abrir os cordões à bolsa para garantirem “contribuições financeiras” para o sistema de asilo.

À CNN Portugal, Gaidi Faraj diz ver no esquema proposto pelo Reino Unido e por outros países uma “oportunidade” para acabar com as ideias feitas sobre o seu continente. “Apesar de discordar da maioria das motivações por trás de legislação como esta, uma vez que está enraizada numa estratégia anti-imigração de disseminação do medo, penso que pode ser uma oportunidade para o Ruanda e outras nações africanas mudarem a narrativa sobre África. A razão para tantos imigrantes fugirem dos seus países de origem para a Europa tem a ver com acreditarem na propaganda sobre África que está por trás da oposição a este projeto-lei, de que é um sítio perigoso, sem oportunidades nem sociedades livres e democráticas. Isso simplesmente não é verdade. E enviar requerentes de asilo para o Ruanda pode expor a falácia na base deste tipo de retórica.”

Mas como indica Sarah Gogan, esses voos podem nunca vir a acontecer; Kagame já garantiu que, se assim for, vai devolver todo o dinheiro recebido de Londres. (A CNN Portugal tentou obter esclarecimentos junto do governo ruandês, mas não obteve resposta oficial em tempo útil). “O Reino Unido comprometeu-se sempre em respeitar as medidas interinas da regra 39 como parte das suas obrigações sob o artigo 34 da CEDH, de não impedir o exercício do direito à petição individual”, explica a advogada. “Dado esse compromisso, pode acontecer que os voos para o Ruanda nunca cheguem a ter lugar. Mas Rishi Sunak deu a entender na semana passada que há circunstâncias sob as quais vai ignorar a regra 39.”

Se isso acontecer, refere a especialista, “pode ter um impacto significativo na reputação mundial do Reino Unido no que toca à defesa do Direito Internacional e dos nossos sistemas jurídico e parlamentar. Abriria um precedente preocupante: significa então que os direitos humanos não são direitos mas privilégios que podem ser revogados?”, questiona. E a nível interno, também poderia ter impacto no Acordo de Belfast, ou Acordo da Sexta-Feira Santa, assinado em 1998 para pôr fim ao sangrento conflito entre a Irlanda e a Irlanda do Norte. Ao longo do conflito de 30 anos, mais de 3.500 pessoas morreram, 52% delas civis, e o acordo que o solucionou veio garantir a consagração de direitos humanos na Irlanda do Norte, com a legislação aprovada pela assembleia legislativa norte-irlandesa sujeita à CEDH, ratificada pelo Reino Unido em 1953, o ano em que entrou em vigor.

“A Convenção Europeia de Direitos Humanos está fortemente consagrada nesse acordo, é a base que sustenta o Acordo da Sexta-Feira Santa”, indica Gogan. “Se Rishi Sunak ignorasse uma decisão com base na regra 39, isso poderia afetar a própria estrutura do acordo e potencialmente infringi-lo. A adesão à CEDH é uma condição do Acordo da Sexta-Feira Santa."

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