Talibãs tomaram o Afeganistão há mais de dois anos. "Não é apenas uma prisão para as mulheres. É um porto seguro para terroristas internacionais"

Talibãs tomaram o Afeganistão há mais de dois anos. "Não é apenas uma prisão para as mulheres. É um porto seguro para terroristas internacionais"

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Helena Lins

Reportagens TVI/CNN
Helena Lins
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Há dois anos caiu Cabul e com ela a democracia no Afeganistão. Imatura, inexperiente, ainda em desenvolvimento, como qualquer jovem com pouco mais de 20 anos, a democracia afegã convivia com o ocidente e trouxe reformas sociais para uma nova geração de afegãos. Com a tomada de Cabul pelos talibãs a 15 de agosto de 2021, a nova geração de afegãos tornou-se uma nova geração de refugiados. As histórias de Mohibullah Malak, o primeiro a quebrar a tradição militar dos homens da família; de Ahmad Sarmast, que criou a primeira escola de música afegã com ensino misto; e de Zarifa Ghafari, a mulher mais jovem a tornar-se autarca de uma província no Afeganistão, mostram tudo o que mudou desde agosto de 2021

Já os talibãs patrulhavam as ruas de Cabul há cerca de dez dias quando Bilal Habibi tentou chegar até ao aeroporto da capital para sair do Afeganistão. No caminho, a notícia de uma explosão num dos portões onde milhares de pessoas desesperavam por um lugar nos aviões dos aliados que retiravam os seus cidadãos e colaboradores afegãos do país. “Fiquei muito nervoso por causa do meu primo. Ele estava no meio da multidão e estava muito perto, talvez a uns 500 metros, do ataque suicida”.

Imagem de satélite mostra o Aeroporto Internacional de Cabul e o local onde ocorreu a explosão. (Imagem: AP)
Imagem de um vídeo divulgado pelo Departamento de Defesa dos EUA mostra militares norte-americanos perto do Abbey Gate, depois da explosão. (Imagem: AP)

Do outro lado do muro que separa o aeroporto da cidade, quatro militares portugueses tinham como missão trazer 116 afegãos para Portugal. O ataque reivindicado pelo Estado Islâmico matou 170 civis e 13 soldados norte-americanos. O avião espanhol que trazia os militares portugueses à boleia descolou à pressa no caos do ataque. Nesse mês, apenas cerca de metade da lista prioritária do Governo português chegou a Portugal. O primo de Bilal sobreviveu, mas os dois perderam o avião, ficaram para trás.

O último avião norte-americano partiu de Cabul a 30 de agosto de 2021, marcando o fim da guerra mais longa dos Estados Unidos e devolvendo o Afeganistão aos talibãs. Com a possibilidade de sair do país bastante reduzida, em novembro, surge uma nova oportunidade. Desta vez, Bilal Habibi tem de viajar até ao aeroporto de Mazar-e-Sharif, a cerca de 400 km a norte do Afeganistão, para apanhar um voo para Portugal.

Bilal queria ser médico ou engenheiro, hoje faz cozinhas em Braga: a história de um refugiado afegão que conseguiu fugir aos talibãs
Mohibullah Malakzai colaborou com a última missão portuguesa no Afeganistão. (Imagem: DR)
Mohibullah Malakzai colaborou com a última missão portuguesa no Afeganistão. (Imagem: DR)

No caminho, o autocarro foi mandado parar. Os talibãs entraram, “tinham a fotografia de uma pessoa”. Bilal lembra que pediram os documentos e compararam a imagem com cada um dos passageiros até deixarem o autocarro avançar. Já na fila para entrar no aeroporto, nova revista. Atrás de Bilal estava uma família com três crianças. O pai, Mohibullah Malakzai, colaborou com a última missão portuguesa no Afeganistão. Bilal e Mohibullah ficaram amigos, mas essa foi a primeira e a última vez que se viram. “Todas as pessoas passaram, mas ele foi posto de lado”, lembra Bilal.

Certificado de colaboração na última missão portuguesa no Afeganistão. (Imagem: DR)

Nessa altura, o mais importante para um colaborador afegão era a carta dos Estados Unidos a atestar que a pessoa tinha permissão para sair do Afeganistão e ser acolhido em determinado país aliado. Mohibullah tinha cinco, uma para ele, outra para a mulher e uma para cada um dos três filhos. “Quando estávamos a viajar de Cabul para Mazar-e-Sharif, o cartão de identificação da minha mulher desapareceu. Quando chegámos ao aeroporto, não permitiram que a minha mulher embarcasse porque não tinha a identificação”. Nem mesmo a carta dos Estados Unidos e a confirmação do representante da companhia aérea de que os nomes constavam na lista de passageiros ajudaram.

Mohibullah contactou as autoridades portuguesas que o aconselharam a voltar para Cabul e a fazer um novo cartão de identificação para a mulher. Mas as regras tinham mudado e agora para sair do Afeganistão não bastava um cartão e a carta, era preciso o passaporte.

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Uma sentença de morte

“Quando vamos fazer o passaporte, registam os nossos dados biométricos. Como eu servi numa unidade especial militar, se me apanham, posso não voltar para casa. Vão deter-me ou torturar-me e matar-me”. Mohibullah deixou crescer a barba. Uma saída para comprar comida bastou para ser preso e torturado pelos talibãs. Foi libertado graças à intervenção de homens mais velhos da comunidade.

Durante quase dois anos viveu escondido com a mulher e os filhos pequenos. “Tinha muitas preocupações devido ao futuro dos meus filhos… Era o meu maior problema”. Não passavam mais de umas semanas na mesma casa. Os filhos não iam à escola. “Antes de cair o governo, os meus filhos estavam na escola, eram bons alunos”. Sem trabalho, não havia dinheiro. “Ao longo da minha vida sempre tive muitas dificuldades, mas esta época no Afeganistão, sem dúvida que foi a mais complicada”. Os familiares ajudaram, mas também eles não tinham muito para oferecer. “O Afeganistão perdeu tudo”. 

Exclusivo: Mohibullah e a família estavam em lista prioritária para sair do Afeganistão. Portugal deixou-os entregues à sua sorte

Tal como Mohibullah, muitos outros pais afegãos passaram - e passam - dificuldades para alimentar os filhos. Em Herat, no oeste do país, a BBC ouviu relatos de pais que davam antidepressivos e ansiolíticos para sedar os seus bebés esfomeados. “Havia muitas famílias que o faziam porque não havia maneira de resolver o problema da fome. Eu nunca o fiz porque sabia que ia trazer problemas para os meus filhos. Se eles tinham fome, ou falta de alguma coisa, toleraram”. E enquanto os filhos toleravam, Mohibullah lutava por uma nova oportunidade de fuga. Insistia com o governo português, com os colegas na Europa, com os jornalistas. Quase dois anos depois, recebeu instruções para atravessar a fronteira com o Paquistão. De Laghman foram para Cabul, de Cabul para Paktia. Atravessaram várias aldeias, cruzaram a fronteira a pé, até chegar à cidade paquistanesa de Peshawar e, finalmente, ao consulado português em Islamabad.

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O vizinho Paquistão

O que era suposto ser uma passagem rápida, acabou por prolongar-se durante dois meses por questões burocráticas. Sem passaporte, Mohibullah tornou-se um dos cerca de 2,4 milhões de afegãos não registados no Paquistão, país que acolhe cerca de 3,7 milhões de afegãos. “Se a polícia me encontrasse, poderia achar que eu era informador”. Até hoje não sabe do paradeiro de alguns colegas que ao entrar no Paquistão sem documentos foram detidos pela polícia. Dos que sabe, estão na prisão. “Sentia muito medo porque se acontecesse alguma coisa no Afeganistão, apenas eu é que estava em risco. Mas, se fosse apanhado no Paquistão, o que ia ser da minha família?”

No consulado português recebeu um cartão de visita com o nome do Cônsul. Era a única garantia, caso o parassem na rua. Sem casa e sem dinheiro, viveu da solidariedade de um conterrâneo, antigo militar, agora imigrante registado e taxista no Paquistão. Foi ele quem os levou de Peshawar a Islamabad e quem os acolheu até março de 2023, mês em que o governo português conseguiu finalmente retirar a família. No total, Portugal retirou 119 cidadãos afegãos, entre colaboradores das Forças Armadas e respetivas famílias.

Mohibullah Malakzai e a família chegaram a Portugal em março de 2023, quase dois anos depois da data prevista
Mohibullah escapou do Afeganistão com a mulher e os três filhos. (Imagem: DR)
Mohibullah escapou do Afeganistão com a mulher e os três filhos. (Imagem: DR)

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O último militar e a primeira portuguesa

Hoje o medo é uma memória e Mariam, a filha mais nova de Mohibullah, a primeira portuguesa da família. Nasceu poucas semanas depois de chegarem a Portugal e o pai já sonha com a educação da filha. “Na religião islâmica as mulheres não são impedidas de frequentar a escola. A visão do islamismo acerca do homem e da mulher é de igualdade, mas os talibãs estão a utilizar negativamente a nossa religião. No Afeganistão não temos nenhuma escola para as mulheres. Estou feliz por ter uma menina, ela é minha filha e tem direitos como os meus filhos”. 

Os rapazes brincam agora numa casa cedida pela associação Crescer e o pai anseia pelo há muito interrompido regresso às aulas. “O meu maior objetivo é os meus filhos entrarem cá em Portugal na escola e que tenham um futuro brilhante”. Um futuro que Mohibullah não teve por ter perdido o pai, também ele militar, muito jovem e ter-lhe seguido os passos, entrando para o exército afegão para não depender dos irmãos. Gostava que os filhos fossem médicos, ou outra profissão, menos militares.

Mohibullah já tem aulas de português. Uma das primeiras etapas do programa de acolhimento que segue o aplicado a requerentes de proteção internacional apoiados pela União Europeia. Durante 18 meses, municípios e organizações civis asseguram alojamento, aprendizagem da língua, acesso à educação, saúde, formação profissional e regularização. Cada requerente recebe um apoio de 6.000 euros – 8.000 em casos mais vulneráveis - que terminam ao fim de 18 meses, altura em que é esperado que os refugiados estejam integrados no novo país.

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Dezoito meses para a independência

Ahmad Sarmast conhece os desafios de ser refugiado. Fugiu do Afeganistão durante a guerra civil dos anos 90, encontrou asilo na Austrália, formação na Rússia, mas decidiu voltar para a terra natal, para criar o Instituto Nacional da Música do Afeganistão - a única escola de música do país e a única com rapazes e raparigas a estudar juntos. Nela surgiu a Orquestra Juvenil Afegã e Zohra, a única orquestra feminina do Afeganistão. Tocaram pelo mundo até ao regresso dos talibãs que consideram a música um vício imoral e corrupto. Chegaram a Portugal no final de 2021, com a ajuda da organização sem fins lucrativos Friends of ANIM que juntou um consórcio de advogados, políticos e músicos para patrocinar a evacuação.

As expectativas eram altas e o choque cultural foi grande. Alojados no Hospital Militar da Ajuda, em Lisboa, alunos e professores queixavam-se das condições precárias. “No início, eles estavam em condições muito difíceis. Não culpo ninguém por isso”, diz Ahmad Sarmast. Lembra-se de falar com os alunos quando estavam temporariamente hospedados num luxuoso complexo em Doha, à espera de vir para Portugal, “disse-lhes em diversas ocasiões: “Esta é a vossa lua de mel. Quando chegarem à última paragem, é aí que tudo começa”.

A música salva vidas? Estas sim. Proibido no Afeganistão, o Instituto Nacional de Música renasce em Portugal

Foram transferidos para Braga em 2022, de forma a manter o grupo todo junto. O diretor da escola considera que estão muito melhor, mas das 273 pessoas que vieram para Portugal, apenas 64 alunos estudam agora no Conservatório de Braga e agrupamentos de escolas parceiros e um professor afegão conduz os ensaios e as aulas de instrumentos tradicionais afegãos. Alguns membros decidiram ficar em Lisboa, outros foram para outros países europeus. “Ouviram muitas histórias bonitas de outros países europeus, de que a sua vida poderia ser melhor noutro lugar. Mas foram muito ingénuos porque a vida de um refugiado é a vida de um refugiado em qualquer parte do mundo. Tens de a construir sozinho. Para mim, o estatuto de refugiado é segurança, proteção e oportunidade. Não há mais do que isso disponível para ti. Tens de construir a tua vida sozinho”.

Ahmad Naser Sarmast recebeu emocionado os alunos no aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa. (Imagem: Horacio Villalobos/Corbis via Getty)

Terminou há poucos meses o programa de acolhimento dos alunos e membros do Instituto. Ahmad Sarmast garante que alguns já falam português, os menores de idade ainda recebem um apoio, mas Ahmad diz não ser suficiente. “Em alguns casos temos de encontrar fontes externas para os apoiar com alojamento e custo de vida”. Os acima de 18 também têm de ser apoiados, caso contrário, têm de trabalhar. “Para nós é importante mantê-los na escola”. 

“Dezoito meses não é um período realista para estar totalmente integrado, para aprender a língua, para obter credenciais às quais és elegível, para encontrar um emprego na área em que estás qualificado. Dezoito meses definitivamente não é tempo suficiente para estar totalmente integrado.”

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Cidadãos de segunda classe

De acordo com o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), em agosto de 2023, Portugal já tinha acolhido 1.183 afegãos ao abrigo da Admissão Humanitária, entre eles 620 homens e 563 mulheres. Havia 201 inseridos no mercado de trabalho - como Bilal Habibi que trabalha numa empresa de produção de cozinhas em Braga - 397 crianças matriculadas no ensino público e 726 já tinham uma habitação autónoma. Com a guerra na Ucrânia, o ACM recebeu mais de 58 mil pedidos de Proteção Temporária de pessoas que fugiram da invasão, e os afegãos lamentam e criticam a diferença de tratamento.

“Sejamos muito francos e muito abertos, a guerra na Ucrânia demonstrou claramente a dualidade de critérios na Europa quando se trata de migrantes de países europeus ou de migrantes que vêm de países do terceiro mundo, como o Afeganistão, o Iraque ou a Síria ou outros locais. É muito óbvio que essas pessoas são consideradas cidadãos de segunda classe. Foi dado tudo aos nossos colegas, eu chamo-lhes colegas migrantes da Ucrânia. Mas não estamos a dizer que o apoio à Ucrânia deva ser interrompido. Quando falamos de igualdade e de liberdade de circulação como um direito de todos, queria que essa liberdade fosse dada a todos os seres humanos, independentemente de onde venham”, diz Ahmad Sarmast.

Já em setembro do mesmo ano, o número de afegãos admitidos em Portugal subiu para 1190, dos quais 737 ainda cá estão. O que significa que quase metade acabou por deixar o país.

Ahmad Naser Sarmast fundou o Instituto Nacional de Música do Afeganistão. (Imagem: William West/AFP via Getty Images)
Ahmad Naser Sarmast fundou o Instituto Nacional de Música do Afeganistão. (Imagem: William West/AFP via Getty Images)

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Missão incompleta

Hoje, a Orquestra Zohra, a Orquestra Juvenil Afegã e outros grupos musicais do Instituto Nacional da Música do Afeganistão estão de volta aos palcos europeus enquanto Ahmad Sarmast continua em reuniões para conseguir trazer as famílias dos alunos para Portugal. Algo que planeava ter feito até ao final do verão de 2022, mas um ano depois, apenas catorze alunos conseguiram trazer os familiares. Cerca de 60 famílias ainda estão no Afeganistão. “Sem o apoio do Governo português, era impossível”, diz o diretor. Olhando para trás acredita que até foi bom não terem vindo logo uma vez que o hospital militar não tinha as condições necessárias. Agora garante já ter a confirmação do Governo português e está a trabalhar com o Governo do Qatar para conseguir retirar as famílias até Doha e de Doha para Portugal. 

Outro sonho adiado é a reconstrução do Instituto Nacional da Música do Afeganistão em Portugal. “Os últimos dois anos que morei e trabalhei aqui em Portugal demonstraram claramente que não é uma tarefa fácil, mas estamos a caminhar nesse sentido”. Ahmad Sarmast quer criar o Centro Cultural Afegão em Braga para que a cultura e a música afegã sejam acessíveis a todos, mas, sobretudo, para realizar o objetivo pelo qual vieram para Portugal: “salvaguardar a música afegã para as gerações futuras”.

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Um país silenciado

As instalações do Instituto Nacional da Música do Afeganistão estão hoje ocupadas pelos talibãs que assim que entraram destruíram instrumentos numa demonstração clara de que a música não tem lugar no novo regime. “O Afeganistão é hoje uma nação silenciosa, mais uma vez”. Para Ahmad Sarmast pouco mudou relativamente ao antigo governo talibãs da década de 90. “Não fecharam a estação de televisão e as televisões não foram destruídas, mas a liberdade de expressão desapareceu. As especulações de que os talibãs de hoje são diferentes dos talibãs de 1996 revelaram-se erradas. Os talibãs não são capazes de ser mudados, os talibãs não mudaram e os talibãs nunca mudarão”.

Zabiullah Nuri, 45, mostra um instrumento musical partido pelos talibãs, quando o carregava da sua loja para casa, em Cabul. (Imagem: Hussein Malla/AP)

Para além da proibição da música, da repressão aos jornalistas e aos meios de comunicação, os talibãs emitiram pelo menos 40 decretos contra as mulheres. Proibiram-nas de estudar, de exercer várias profissões, de frequentar espaços públicos, de viajar mais de 75 km sem um homem. Ahmad Sarmast diz que o Afeganistão voltou à idade da pedra e fala ainda das pessoas deslocadas à força das suas casas porque os talibãs estão a entregar terras aos seus apoiantes. “O Afeganistão não é apenas uma prisão para as suas mulheres, é também um porto seguro para os terroristas internacionais”.

Apesar das Nações Unidas ter diminuído em mil milhões de dólares a ajuda humanitária para o Afeganistão (o que reduziu o orçamento de 2023 para 3,2 mil milhões de dólares) depois dos talibãs terem proibido mulheres afegãs de trabalhar em organizações não-governamentais, Ahmad Sarmast acredita “que o colapso do Governo talibã será cada vez mais rápido se o dinheiro semanal que recebem da comunidade internacional e a chamada ajuda e assistência humanitária forem interrompidos. E também todos os canais secundários, canais através dos quais os talibãs recebem ajuda financeira em segredo”. 

Zarifa Ghafari é uma das poucas mulheres afegãs na política. (Imagem: Zarifa Ghafari/Facebook)
Zarifa Ghafari é uma das poucas mulheres afegãs na política. (Imagem: Zarifa Ghafari/Facebook)

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Uma prisão para as mulheres

A maioria dos líderes da oposição, que mantém a chama da jovem democracia, têm menos de 40 anos. São a primeira geração de afegãos desde a década de 70 a ter oportunidades de educação e progresso. Entre eles, Zarifa Ghafari, uma das poucas mulheres afegãs na política e a mais jovem a ser nomeada, tinha apenas 26 anos. O Financial Times chamou-lhe “o produto da guerra mais longa dos Estados Unidos”, mas, em declarações à CNN Portugal, Zarifa discorda. “São os talibãs, são os grupos terroristas que agora controlam o Afeganistão ao receberem diretamente o poder dos países ocidentais que travaram uma guerra durante 20 anos no Afeganistão em nome da defesa dos direitos humanos ou dos valores humanos.”.

A infância de Zarifa foi marcada pelo regime talibãs da década de 90 e a juventude pela invasão dos Estados Unidos. Lutou, como diz que só o povo afegão luta, pela sua educação mesmo quando isso implicou ir contra a vontade - e as ordens - do pai. Terminou a escola, a universidade e em novembro de 2019 tornou-se autarca de Maidan Shahr, capital da província conservadora de Wardak, depois de 16 meses de atraso por protestos e ameaças. Sobreviveu a três tentativas de assassinato, mas o pai não. Militar de carreira, foi morto pelos talibãs à porta de casa um ano depois da filha assumir o cargo, por Zarifa não desistir do seu trabalho, com o sonho de um dia tornar-se embaixadora do seu país.

Eventualmente, tornou-se. Não por via diplomática, nem por indicação política, mas por via do ativismo. É uma das vozes mais proeminentes na defesa dos direitos das mulheres, da educação e do futuro do Afeganistão. Ainda em 2020, no discurso de agradecimento do Prémio Internacional Mulheres de Coragem, do Departamento de Estado dos Estados Unidos, que já negociava um acordo de paz com os talibãs, Zarifa alertou para o que aí vinha. “Eu disse diretamente a Melania Trump e depois ao secretário do Departamento de Estado, Mike Pompeo, diretamente, cara a cara, que era um grande erro, porque não era apenas o nosso esforço, mas o esforço da comunidade internacional de 20 anos que seriam vendidos aos nossos inimigos”. 

Melania Trump e Mike Pompeo entregam Prémio Internacional Mulheres de Coragem a Zarifa Ghafari, em março de 2020. (Imagem: Zarifa Ghafari/Facebook)

Ninguém pareceu ouvir. Quando os talibãs anunciaram que não iam proibir as meninas de estudar, Zarifa sabia que era bluff e por isso não ficou surpreendida quando no primeiro dia de aulas as alunas do secundário foram mandadas para casa. “Sabíamos que era apenas uma promessa falsa. Nós sabíamos disso. É apenas uma tentativa, com a ajuda da comunidade internacional, de nos impor novamente um período muito sombrio”. Este ano, as Nações Unidas declararam o Afeganistão o país mais repressivo do mundo para meninas e mulheres, a Amnistia Internacional fala em perseguição de género.

"O Afeganistão está a caminhar para um desastre humanitário": entrevista a Zarifa Ghafari, a mais jovem presidente de câmara do país

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Um país onde tudo acontece

Hoje, Zarifa tem dificuldades em encontrar palavras para descrever o seu país. “O Afeganistão está a passar por um desastre humano em todos os aspetos, desde a pobreza à falta de serviços de saúde, à segurança, à justiça, à violência doméstica, à violência internacional, até a sequestros, assassinatos, tortura, assédio, tiroteios públicos, limpezas públicas, assassinatos públicos, tudo. Tudo está a acontecer naquele país. Aquele país tornou-se uma vida selvagem onde qualquer um pode fazer qualquer coisa”. 

As Nações Unidas apontam para mais de 8,2 milhões de afegãos a viver em 103 países, 1,6 milhões fugiram depois de agosto de 2021. Dos que ficaram, dois terços precisam de assistência e de proteção humanitária. Zarifa, tal como muitos afegãos, acusa os Estados Unidos de ter entregado o Afeganistão aos talibãs de mão beijada e questiona o Acordo de Doha, também conhecido como o Acordo para a Paz no Afeganistão, assinado estre os EUA e os talibãs em 2020. “Sobre o que é realmente o acordo? Quais são os verdadeiros artigos deste acordo? O que está escrito nele? Ninguém sabe. Quando vais aos países europeus, conversas com os líderes e ninguém sabe exatamente a redação, a ocultação ou os parágrafos ou artigos exatos deste acordo”. Quatro páginas estão publicadas no site do Departamento de Estado dos EUA, mas dois anexos secretos causaram controvérsia na altura e continuam a ser motivo de desconfiança.

O representante norte-americano, Zalmay Khalilzad, e o líder da delegação dos talibãs, Abdul Ghani Baradar, apertam mãos após a assinatura do acordo de paz em Doha, no Catar, em 2020. (Imagem: Hussein Sayed/AP)

Zarifa Ghafari foi das poucas figuras públicas afegãs a regressar ao país depois da tomada de Cabul. Em fevereiro de 2022 testemunhou as consequências do fim das operações de ajuda humanitária, das sanções e do regime talibãs. Com o tempo, apercebeu-se que “infelizmente, o Afeganistão está a ser totalmente esquecido a nível internacional. As pessoas não falam do Afeganistão. Não é um tópico de discussão na mesa dos decisores políticos porque, hoje em dia, Putin é mais perigoso para o mundo do que os talibãs. Toda a gente está focada no Putin enquanto Putin não vai fazer um desastre tão grande da forma que os talibãs estão a fazer no Afeganistão, um desastre humanitário”. 

Por isso, fez da sua missão de vida o lobby internacional. Aos 29 anos e a viver na Alemanha, publicou o livro Zarifa, protagonizou o documentário na Netflix Zarifa Ghafari: Uma Afegã No Poder e não desperdiça uma oportunidade para subir a um palco mundial e falar do Afeganistão. O que dinheiro que recebe das participações utiliza para apoiar mulheres afegãs através da sua organização Assistance and Promotion for Afghan Women (APAW). O seu país e os afegãos podem ter sido abandonados, mas Zarifa não desistiu deles.

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