Não querem emigrar nem querem fazer horas extra não pagas. O que querem, afinal, os futuros médicos de Portugal?
Faculdade de Medicina (FMUP / FOTO: Joana Moser)

Não querem emigrar nem querem fazer horas extra não pagas. O que querem, afinal, os futuros médicos de Portugal?

O QUE SE OUVE NOS CORREDORES DAS UNIVERSIDADES || Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

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JOANA MOSER SOFIA MARVÃO 

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SOFIA MARVÃO 

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JOANA MOSER

“Como é que vou ter um futuro em Portugal?”. “Como me vejo a ficar?”. Estas são perguntas de dois futuros médicos da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP). É um dos cursos mais difíceis de entrar do país, com uma média de entrada de 18,3 valores (nota do último colocado na 1ª fase em 2023). Para além disso, formar um médico custa quase 100 mil euros - contas da ainda ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, seja no público ou no privado, ao longo de todo o processo de formação, que exige 11 anos no total: seis anos de licenciatura com mestrado integrado; realização da Prova Nacional de Acesso (PNA) no sexto ano; seguido do Ano Comum, onde trabalham rotativamente em várias áreas com diferentes doentes; mais quatro anos de Internato de Formação Especializada (IFE), dependendo da nota da PNA. “São 11 anos em que passamos a ser, passo a expressão, escravos da malta mais velha, por uma falta de condições e de recursos”, afirma Emília Pinho, 22 anos, estudante do 5.º ano de Medicina da FMUP. 

Mas há quem nem consiga entrar no IFE, optando por trabalhar enquanto “indeferenciados”, isto é, médicos não especialistas, ou emigrar. Em 2023, pelo menos 453 médicos pediram à Ordem dos Médicos a declaração que permite que possam emigrar para trabalhar, fazer estágios ou formações.

Este ano o problema não passou apenas pela emigração, mas sim pelo elevado número de vagas para especialidade que ficaram por preencher. Segundo o Sindicato Independente dos Médicos, foram mais de 400 vagas. “Por aqui se vê a atratividade que tem trabalhar no Serviço Nacional de Saúde”, lamentou a estrutura sindical. “Ou seja, houve pessoas que escolheram efetivamente não ingressar numa especialidade médica, mesmo após seis anos de curso”, afirma Emília num tom indignado. 

“Preocupa-me que, passados seis anos e um exame final puxadíssimo, as condições que Portugal propõe são tão baixas que as pessoas preferem não entrar para uma especialidade. Claramente não há condições”, acrescenta.

Emília Pinho, 22 anos, estudante de 5º ano de Medicina

Emília coloca a questão: “De que forma é que a própria formação médica pode ter o impacto de colmatar o problema da falta de planeamento de recursos?”. Imediatamente responde: “O tema da formação médica passa ao lado no debate político”. “Quais as perspectivas de futuro, cá em Portugal, que não me coloquem a ponderar ir para fora?”. 

Emília não está sozinha. Nuno Gonçalves, 21 anos, está no 4.º ano, também se inquieta quando pensa no seu futuro enquanto médico. “É óbvio que grande parte do estrangeiro, sobretudo na Europa, oferece condições de trabalho muito superiores com salários melhores”. E é por isso que Nuno diz que “é difícil manter a mentalidade de que vou ficar de certeza em Portugal”.

Nuno Gonçalves, 21 anos, estudante de 4º ano de Medicina

Antes de pensar em emigrar, Pedro Sousa, 21 anos, faz uma análise do problema em mãos. A solução para colmatar a falta de médicos não pode ser aumentar o número de vagas nas faculdades de medicina, entende. “Não é uma medida eficaz a partir do momento em que, com mais vagas, ficam vagas de especialidade por preencher”. Pedro sugere que se torne a profissão mais aliciante, só assim é que poderá ser colmatada a falta de médicos e a falta de adesão à formação. 

Pedro Sousa, 21 anos, estudante de 4º ano

 

Nesta faculdade cruzam-se alunos, professores, médicos, enfermeiros e técnicos. Afinal o Hospital de São João, o maior do Porto, é ali ao lado. Aliás, a faculdade está mesmo ligada àquela unidade - as passagens e escadas são as mesmas. Pelos corredores passa muita gente atarefada, caminhando com um sentido de missão. E apesar do sentimento de tristeza que um hospital traz para alguns, por ali deslocam-se médicos e estudantes sorridentes. Há uma homogeneidade entre todos que só é desfeita pela cor da bata que usam. Por exemplo, aqueles que usam batas de cor verde clara, quase fluorescentes, estão no último ano do curso, já trabalham com doentes. 

Nos diferentes espaços comuns são diárias as conversas entre alunos, médicos e profissionais de saúde. Os temas mais preponderantes, segundo Emília, são a falta de gestão de recursos futura, a ausência de planeamento para a reforma de médicos, a necessidade de consenso entre médicos e o Ministério da Saúde e as horas extra de urgência.

Há uma grande componente prática neste curso e, sobretudo, uma convivência entre a vida de um estudante e de um profissional. Ainda assim, para Emília acicata-lhe a “incapacidade e a falta de apoio que as próprias faculdades têm para a saúde”. "Há demasiados estudantes para os espaços que a FMUP tem", aponta, dando o exemplo das aulas práticas em consultórios com doentes: “Imagina ires a um consultório fazer um toque retal ou uma colonoscopia e ter cinco estudantes de medicina, o incómodo que isso não é”. Emília defende que as universidades devem fazer mais parcerias com diferentes hospitais para que este tipo de situações não aconteçam. No entanto reconhece que, em certas zonas do país, há uma “sobrelotação de parcerias entre faculdades e hospitais”. “Não dá para criar um novo hospital para a faculdade, mas dá para gerir melhor os recursos que temos”. 

O que se ouve nos corredores da Faculdade de Medicina do Porto?

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"Espero que não tenha de ser eu a queixar-me de estar a fazer quatro urgências por semana"

Um dos maiores problemas destacados por Emília são as horas extras que os médicos fazem. Trata-se de “uma falta de gestão de pessoas dentro do hospital e da área”. “Tenho colegas de cirurgia geral que por semana fazem quatro a cinco urgências”, afirma a futura médica, preocupada que daqui a três anos acabe a fazer 40 horas de urgência, como muitos médicos fazem atualmente. “O problema é que, quando acaba a urgência, há que fazer internamento”. Por isso, o “tempo” extra. 

Pedro partilha da mesma visão. “As horas são muito sobrecarregantes e os salários não são condizentes com estas horas”. Por exemplo, um interno de cirurgia, conhecido de Pedro já chegou a fazer 70 horas numa semana, porque fez dois blocos de urgência. Ambos os alunos apontam como problema as falhas que podem existir quando uma pessoa trabalha tantas horas a mais. “Deixa de ser seguro uma pessoa realizar este trabalho com aquela carga toda em cima”, frisa, considerando que seria benéfico ter em atenção um limite de horas. “Não tenho a certeza que uma pessoa que tenha acabado de fazer um turno de 24 horas esteja na sua melhor capacidade para exercer uma profissão com algum risco associado”. 

“Não queremos andar a vaguear em horas extra não pagas ou não registadas”, afirma Nuno, considerando também premente a reorganização do SNS. 

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A luta entre "oito pais divorciados"

Emília preocupa-se bastante com a crise da habitação: “Não há nenhuma perspetiva de sairmos de casa dos pais tão cedo”. Para Pedro Sousa este é o problema fulcral para a população jovem. “Mesmo com bastantes anos de formação, muitos jovens ainda vivem em casa dos pais”, afirma o também estudante da FMUP, frisando a quantidade de jovens que saem do país em busca de melhores condições de vida.

O objetivo de Pedro é ficar em Portugal. Para isso é necessário que haja medidas concretas de apoio à habitação, “que aliviem a carga que as pessoas têm com habitação”, e a subida dos salários. No entanto, não se trata apenas da subida do salário mínimo, mas também do salário médio. “Pôs-se de parte aquelas pessoas que estão na região do salário médio”, afirma o futuro médico, preocupado com o curto distanciamento entre os dois patamares. “Um estreitamento desta distância, está a empurrar a classe média para baixo, criando um problema na qualificação jovem que acaba por emigrar”. 

Exposição na faculdade

Olhando para a vida política portuguesa, Emília destaca a credibilidade que “damos às pessoas que nos governam”. A seu ver, enquanto jovem, sente que há sempre “uma luta entre oito pais divorciados”. “Não há coerência de políticas, há uma falta de liderança”.

Emília olha para a governação como “um nicho de pessoas que gerem o país com base puramente em guerrilhas”. A jovem ambiciona sentir segurança e ter uma perspetiva de futuro que não a obrigasse a ter de emigrar em busca de melhores condições de vida. 

Tal como Emília e Pedro, Nuno irá sofrer das inquietações de um médico. Não tem soluções para as resolver, acredita que “se há pessoas com assento parlamentar, elas deviam pensar nisso”. 

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Público ou privado? “As pessoas devem ter liberdade de escolher”

A valorização da carreira dos médicos é um tema preponderante nestas eleições. O Partido Socialista (PS) pondera obrigar jovens médicos a permanecer no SNS durante algum tempo, após a conclusão da especialidade. “É uma medida que não faz sentido”, afirma Pedro, lembrando que no final do curso ainda tem o internato de formação específica para fazer. “Na maior parte dos casos é feito num hospital público”. Assim, a seu ver, o ano comum “já funciona como obrigatoriedade de serviços de trabalho no SNS”. Além do mais, neste ano, “os internos produzem bastante, tendo em conta os horários sobrecarregados”. Assim, Pedro considera que o internato por si só já funciona como tempo de permanência no público. 

Nuno é da mesma opinião. “Discordo completamente dessa medida. Ninguém quer ser forçado a ficar no serviço público, quer ser incentivado a manter-se cá”. 

“As pessoas devem ter a liberdade de escolher se querem trabalhar no público ou no privado”, afirma Pedro, corroborado por Nuno, que relembra que em Portugal os salários de um médico “já não são o que eram antigamente”. “Os médicos não são uma classe superior que ganham um salário monumental”. Razão pela qual o jovem poderá vir a trabalhar no privado, onde se recebe melhor do que no público. 

O PS admite ainda a hipótese de criar “um quadro de compensações” devido pelo “investimento público do país na sua formação”, caso os jovens emigrem ou trabalhem para o setor privado. “É uma ofensa às pessoas que estiveram a estudar em Portugal durante o ano comum”, critica Nuno.

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“Grande parte do orçamento não é utilizado ano após ano”

“Preferia trabalhar no público, mas é uma decisão que não consigo fazer agora”. Pedro Sousa preocupa-se com o “pouco investimento no setor público da saúde”. Diz que há uma grande diferença na gestão da saúde pública a nível regional. “A região norte apresenta melhores resultados na saúde, do que a região sul”. Por isso, defende que “deveríamos aprender uns com os outros e tentar melhorar o sistema como um todo”.  

E sublinha: “de um ponto de vista de gestão, se conseguirmos melhorar, melhoramos as condições de trabalho dos próprios trabalhadores de saúde pública”.

Pedro ainda propõe uma solução: uma melhor gestão dos fundos alocados para o SNS. “O SNS tem levado mais orçamento, mas grande parte do orçamento não é utilizado ano após ano”. Se houvesse uma melhor gestão do orçamento, seria possível melhorar as condições de trabalho, os salários e reduzir o número de horas dos trabalhadores, defende. 

Nuno Gonçalves ainda tem esperança no SNS, acredita que bastará uma reorganização. “Se queremos que a saúde continue pública é preciso reorganizar o SNS: os médicos têm que ser valorizados, os enfermeiros têm que ser valorizados, todos os profissionais de saúde têm que ser valorizados”. A seu ver essa valorização passa por incentivos monetários que compensem o esforço que todos os dias um médico faz num hospital ou posto de saúde. 

Uma solução, proposta por Nuno, seria a “aproximação de uma gestão privada do serviço público”. “Não apoio a privatização do SNS pois o foco deixa de ser o paciente e passa a ser o dinheiro”. Contudo, uma “gestão como a privada seria essencial”.

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