De Lisboa a Madrid em três comboios, 13 horas e uma viagem no tempo até 1950

De Lisboa a Madrid em três comboios, 13 horas e uma viagem no tempo até 1950

Texto
António Guimarães

Vídeo e Fotos
Sofia Marvão

Numa altura em que se fala tanto de mobilidade, viajar entre Lisboa e Madrid de comboio, duas capitais europeias que distam apenas 500 quilómetros, é uma viagem ao passado. Em 1989, o velho serviço ferroviário Talgo Luís de Camões ligava as duas cidades em oito horas. Em 2022, fazer o mesmo percurso pode demorar mais de treze.

Esta viagem começa às 08:00 da manhã de um domingo, na estação de Santa Apolónia, em Lisboa. A meio de setembro ainda está calor, e a perspetiva de viajar é sempre boa, sobretudo se o intuito for fazer turismo, como acontece com a esmagadora maioria das pessoas que fazem este percurso, dizem-nos o maquinista e o revisor.

O comboio é bom, o melhor que há em Portugal: um alfa pendular que chega aos 220 quilómetros por hora e liga Lisboa e o Entroncamento em 54 minutos. O destino final da composição é o Porto, mas, como o nosso destino é Madrid, ficamo-nos por esta terra nascida do cruzamento das linhas ferroviárias do Norte e da Beira Baixa. É ali que, com mais de uma dezena de linhas, está o coração da ferrovia portuguesa. A importância que o comboio teve noutros tempos fez nascer e crescer esta terra.

Por aqui passam alfas, intercidades, regionais, locomotivas comerciais e todo o tipo de comboios. Incluindo Allan, uma pequenina composição de 1950 que nos vai fazer companhia durante as horas seguintes. Mas antes ainda temos que esperar uma hora e meia. Tempo suficiente para sonharmos com a viagem de comboio entre Madrid e Barcelona, cidades que ficam sensivelmente à mesma distância de Lisboa e Madrid, mas que beneficiam de uma moderna linha com um comboio de alto desempenho que permite ir de uma à outra em duas horas e meia.

Mas ainda estamos no Entroncamento, e o nosso destino é Madrid. Ainda temos muitas horas pela frente e ainda só apanhámos o primeiro de três comboios necessários para fazer esta ligação. Eis o nosso plano de viagem:

Nota: tempos de partida e chegada em Badajoz e Madrid assinalados com a hora espanhola, uma hora a mais do que a de Portugal continental

Se tudo correr como previsto, demoraremos pouco mais de 13 horas a chegar à capital espanhola, partindo de Lisboa. Se recuarmos 33 anos, até 1989, conseguimos encontrar uma ligação mais rápida entre as capitais ibéricas: nessa altura, o velho Talgo Luís de Camões fazia o percurso em 7 horas e 58 minutos.

Este serviço foi interrompido em 1995, ficando como alternativa o Lusitânia Comboio Hotel – e este já demorava 10:15 horas. Tinha a vantagem de fazer a viagem durante a noite e de ter lugares deitados em quartos privados ou em vagões com beliches. A viagem começava às 21:25 em Santa Apolónia e terminava às 08:40 (hora espanhola) em Madrid.

Primeira estação: Santa Apolónia, em Lisboa

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Uma raridade em Portugal

Allan, a pequenina composição de 1950 que nos vai fazer companhia durante as horas seguintes, aproxima-se da estação do Entroncamento. Na tranquilidade de uma manhã de domingo, qualquer barulho mais sonante faz a diferença. E o ruído carrancudo que ouvimos ao fundo não engana: anda ali um comboio menos moderno. A automotora Allan apresenta-se aos solavancos, como se baloiçando de alegria ao ver os passageiros que vai transportar.

Allan, a velha automotora que liga o Entroncamento a Badajoz

Este comboio de 1950 foi remodelado em 1990 e modernizado em 2002. "Modernizado" é um embelezamento, como nos explica o maquinista que está o está a preparar para a viagem. O homem, que não se quis identificar, enumera vários problemas: os motores sobreaquecem, o ar condicionado não funciona, o sistema de portas nem sempre está operacional e a suspensão, como iremos sentir, é má.

O comboio transporta até 94 pessoas. Está previsto alcançar uma velocidade máxima de 100 km/h. “Só se for nas descidas”, ironiza o maquinista, habituado a fazer o percurso.

“Os motores são velhos e aquecem, no verão é insuportável”, continua, explicando que, de vez em quando, o serviço falha e a CP lá tem de disponibilizar autocarros para que toda a gente chegue ao destino. É que, não sendo muitas pessoas, ao que nos conta o revisor, também há quem utilize o Allan para se deslocar para o trabalho a meio da semana.

O maquinista ainda não acabou de descrever a locomotiva que nos levará até Badajoz. “O sistema elétrico é mau. As portas às vezes não abrem. Ainda no outro dia um passageiro teve de sair com o comboio em andamento porque não abriam as portas quando estava parado.”

Mas há outras características que tornam esta automotora rara em Portugal. É uma das poucas que ainda se desloca a diesel. Todos os dias faz a Linha do Leste, apesar de já ter sido dada como abatida. “Já ultrapassou os quilómetros da validade”, resume ainda o maquinista.

O problema é que esta linha, que liga o Entroncamento a Badajoz, passando por outras 16 terras portuguesas, não está eletrificada. Este pormenor impede que ali possa ser utilizada uma outra composição, como as Unidades Triplas Elétricas que circulam na maioria das linhas acima do Tejo, mais modernas, mais confortáveis e rápidas, e que podem atingir até 120 km/h.

Um sinal claro de desinvestimento, e que vai contra as pretensões da União Europeia, e até do próprio Governo – o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, tem sublinhado por diversas vezes a vontade de modernizar a ligação entre as capitais portuguesa e espanhola.

De acordo com a promessa mais recente, a eletrificação não deve estar concluída antes de 2030, altura em que o país espera ter toda a rede eletrificada, num investimento que custará cerca de mil milhões de euros.

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Três horas a abanar

São 10:24, Allan parte do Entroncamento à hora certa em direção a Badajoz. O comboio vai meio vazio, com duas carruagens onde praticamente só entraram estrangeiros. Entre eles, está Joanne Benoit e o marido, que vieram de Otava, capital do Canadá. Ela tem 63 anos e é a segunda vez que está em Portugal. Os dois chegaram no dia há pouco mais de uma semana e já passaram por Porto e Coimbra.

“Vamos terminar a viagem em Lisboa. Em Badajoz ficamos dois dias, porque gostamos de Espanha também mas preferimos Portugal. Temos um gostinho de Espanha”, explica.

Anestesiados pelo ritmo de quem está de férias e tem tempo para passear à vontade, dizem-nos que a vista ao longo da viagem compensa as más condições do comboio. “Olhem ali”, aponta Joanne ao passarmos por um conjunto de canoístas quando atravessamos um braço do Rio Tejo, que reencontrámos em Vila Nova da Barquinha, depois de o termos perdido em Santarém.

Joanne Benoit consideram a atual viagem de comboio entre Lisboa e Madrid como “arcaica”

“As vistas são lindas. Esta é a única forma de ver o campo. Num carro nunca conseguiríamos ter esta paisagem. Mas os comboios em Espanha são mais confortáveis”, diz, referindo que já fez algumas viagens, nomeadamente entre Sevilha e Barcelona.

À vinda, dizem-nos, escolheram o autocarro. Consideram a atual viagem de comboio entre Lisboa e Madrid como “arcaica”. Joanne refere que dificilmente conseguiria tempo para visitar os dois países caso o quisesse fazer através dos carris.

Maximilian Winter e Lilly Augustin, duas jovens alemãs de 19 e 18 anos, estão a fazer o mesmo percurso que nós. Falamos com elas à chegada a Badajoz. As amigas estão a fazer o primeiro interrail e vêm desde Munique. Foram até ao Porto, passaram por Lisboa, e regressam agora ao centro da Europa. Ainda param em Madrid, Barcelona e Paris antes de voltarem a casa.

“Correu bem, mas estava muito calor lá dentro. Deu para dormir, mas não foi a viagem mais confortável”, contam-nos, encontrando, apesar de tudo, uma outra razão para gostar da viagem. “Foi o comboio com mais interrailers, porque é a única forma de vir de Portugal. Podemos conhecer outras pessoas, o que é bom, mas não foi confortável”.

As duas não escondem o desconforto de uma viagem feita aos solavancos e com algum calor, e nem mesmo a vista as convence de que vale a pena. Ainda assim, conseguiram reparar nas diferenças: “na Alemanha é tudo verde, aqui é mais seco. Também há burros e vacas”.

As duas amigas só querem chegar ao próximo destino, o que, por azar, não vão conseguir naquele dia. Terão de pernoitar em Badajoz porque o comboio que segue para Madrid já está cheio. Vão perder o hotel que tinham reservado para aquela noite na capital espanhola. Deixamo-las para trás e desejamos-lhes boa sorte.

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Um problema português e espanhol

Até à pandemia, a ligação entre Lisboa e Madrid era assegurada pelo Lusitânia Comboio Hotel, um serviço operado a meias entre a CP e a espanhola Renfe, e que acompanhava o Sud Expresso, que também liga Lisboa a Hendaia, nos Pirenéus franceses, seguindo dali para Paris. A separação dos dois comboios fazia-se em Espanha, em Medina del Campo. Um seguia até França e o outro para Madrid.

Era um comboio algo lento, nem tanto por causa da velocidade, mas porque as paragens eram muitas, sobretudo em Portugal, onde a linha que cruza a fronteira em Vilar Formoso também não é a melhor. A bordo era possível encontrar camas (o bilhete ficava um pouco mais caro), o que facilitava em muito a viagem, que era feita de noite.

À suspensão durante a pandemia juntou-se a falta de empenho dos governos português e espanhol para resolver a situação, adiando um regresso que agora parece já nem estar em cima da mesa.

A partir de outubro, as atuais ligações terão novos horários que permitirão apanhar o comboio que liga o Entroncamento e Badajoz mais tarde e assim poupar quatro horas e meia nas atuais 13 de viagem.

Ainda seria possível fazer descer mais o tempo de viagem, mas para isso seria necessário resolver outros problemas de ambos os lados da fronteira e a solução parece andar ainda mais devagar do que a velha Allan.

Em causa está a eletrificação da linha portuguesa, o que poderia reduzir o tempo da viagem entre o Entroncamento e Badajoz para metade, cerca de uma hora. Também parada está a conclusão da linha de alta velocidade da Estremadura, que há anos espera a conclusão de um troço, deixando esquecidas as localidades raianas.

Do lado espanhol, a rede ferroviária é mais avançada do que a portuguesa, nomeadamente na velocidade e qualidade dos trajetos. O AVE, comboio de alta velocidade espanhol, chega a quase todo o lado mas, entre Madrid e Badajoz, há troços que ainda não estão preparados para este serviço.

Mas a solução ótima, e que o governo de António Guterres atirou para a mesa em 2001, era a construção de uma linha de alta velocidade direta entre Lisboa e Madrid. A ideia pegou, e até foi uma das bandeiras de José Sócrates, o famoso TGV – que também seria aproveitado para ligar também a estação de Sines, onde está a plataforma de transformação petrolífera e de receção de gás natural.

A chegada da Troika a Portugal comprometeu o processo, do qual agora se volta a falar timidamente.

Não faria sentido investir numa boa ligação entre Lisboa e Madrid caso não houvesse procura. Só que ela existe: todos os dias existem cerca de sete rotas diretas entre Lisboa e Madrid de autocarro e 19 ligações aéreas.

Contactámos as diferentes operadoras que fazem a ligação Lisboa-Madrid de autocarro para saber qual o fluxo de passageiros, mas apenas a Flixbus respondeu. Aquela operadora referiu que foram efetuadas 250 ligações entre as duas capitais no mês de agosto, um acréscimo de 110% relativamente ao período homólogo do ano passado, o que a empresa justifica com o aumento da procura.

Importa ainda referir os preços: a viagem que fizemos custa 57 euros por passageiro, sendo que a última ligação, entre Badajoz e Madrid, sofre alterações de preço consoante a altura do dia. De autocarro, os preços também variam consoante a altura e a antecedência da compra do bilhete, podendo custar no mínimo 15 euros e no máximo 80 euros.

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"Slow travel"

Chegamos a Badajoz às 14:14 (hora local, mais uma hora que em Portugal). A viagem demorou um total de duas horas e 50 minutos, marcadas pela beleza da paisagem, mas também por uma truculenta tremideira, que dificilmente deixa dormir quem quer, e por algum calor. “Hoje nem vai estar muito mau”, tinha previsto o maquinista que encontrámos à chegada ao Entroncamento.

 “É um forno ali dentro", diz-nos o maquinista, apontando para a sala das máquinas, que tem um ar condicionado próximo do ineficiente.

Em Badajoz encontramos João Póvoa, que faz, com a mulher, o trajeto entre o Entroncamento e Cáceres. “Ainda vai a tempo, o comboio é daqui a 10 minutos, mas temos de ser rápidos”, graceja.

Satisfeito com o percurso já feito em Portugal, lamenta apenas que a vista lhe tenha apresentado os sinais da seca. Ao castelo de Almourol, em tempos só acessível de barco, já é possível chegar a pé, algo que se testemunha da janela do comboio. Ainda assim, o castelo do tempo dos Templários continua a ser imponente na paisagem.

O português, com 40 anos, que apanhou a Allan em Abrantes, confessa-se surpreendido por a carruagem até ter alguns passageiros, a maioria deles jovens. João sublinha a necessidade de se eletrificar a linha, o que tornará a viagem mais agradável.

“Tem potencial, é slow travel [uma viagem lenta, para aproveitar], ninguém conhece. Mas está mal divulgado e é difícil de encontrar”, acrescenta.

Mais conformado vai Horácio Correia, revisor da CP, que nos acompanha desde Lisboa mas que costuma fazer mais regularmente o percurso entre Lisboa e Tomar.

“Às vezes, lá calha. Sempre é diferente, sobretudo na primavera, quando as margens do rio estão mais cheias e os campos estão lilases. No verão, a partir do Alentejo, é só sobreiros”, diz-nos, bem-disposto.

Com ele traz o filho, a aproveitar os últimos dias de férias antes do regresso às aulas. Com 12 anos, conta-nos que “sempre é melhor do que estar em casa”, e ainda tem a oportunidade de acompanhar a viagem ao lado do maquinista.

O verão regista o pico do serviço nesta linha, garante o revisor, nomeadamente durante a semana do Festival do Crato, uma vila no Alto Alentejo. Aí “o comboio vem a abarrotar”, diz-nos Horácio Correia, que testemunhou este ano a “vaga de juventude” que o evento traz à terra.

A espera é longa antes da chegada do último comboio, mas o Intercidades da Renfe oferece mais conforto e velocidade

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“Já não falta muito”

Antes de apanharmos o último comboio, ainda temos de esperar três horas e 23 minutos mas o calor que se faz sentir nem a caramelos convida. Badajoz está quase deserta. Paramos num pequeno café, o simpático Los Pozos, onde é possível refrescar o corpo com uma sangria (sem álcool). No café, discute-se o tema dominante por estes dias: a morte da rainha Isabel II. Ficamos a saber que les encanta os príncipes Guillermo e Catalina, ou William e Kate.

De volta à estação, onde já não estão Maximilian nem Lilly (com sorte encontraram alojamento para esta noite), entramos no comboio que nos vai levar à capital espanhola. O intercidades da Renfe já tem uns aninhos, mas aproxima-se do nosso alfa pendular em conforto e velocidade – o percurso é feito em grande parte perto dos 200 km/h.

Ainda não tínhamos arracando quando tivemos um "choque sanitário”. É que, em Portugal, as máscaras já não obrigatórias nos transportes públicos, mas em Espanha sim. Isso mesmo frisa o revisor, que nos pede que as coloquemos.

De Badajoz a Madrid são quatro horas e 42 minutos. O percurso apresenta-nos um graude caudal do Guadiana, perto da estação que dá pelo mesmo nome, mas onde não paramos. Passa também por Mérida e Cáceres, cidades históricas identificadas como Património da Humanidade pela UNESCO.

Apesar da bela paisagem, há uma coisa a incomodar: uma chiadeira que nos acompanha durante toda a viagem, mas que parece não incomodar grande parte da carruagem que dorme tranquila.

Exceto Adela, que está aborrecida com a viagem. De vez em quando lá diz “papá”, ao que Jorge Manuel, com quem falámos já em Madrid, lhe responde que “já não falta muito”.

A noite já cai quando nos aproximamos de Madrid. Para trás, ficou a Serra de Gredos, onde alguns picos superam os dois mil metros, e que domina a paisagem à passagem por Cáceres. No inverno, seria possível vislumbrar alguma neve.

Chegada à estação de Chamartín, em Madrid

Já na capital espanhola, a maior parte do comboio pega nas malas para sair em Atocha, a mais famosa estação da cidade, que fica bem perto do centro e de três das principais atrações da capital espanhola – o Museu Rainha Sofia, o Museu Nacional do Prado e o Parque do Retiro.

Esperam-nos mais 10 minutos até Chamartín, o nosso destino. Numa viagem com mais de 13 horas até parecem pouco. Imagine-se só se Adela tivesse vindo de Lisboa.

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