Já fez LIKE no CNN Portugal?

A Rússia revela as suas verdadeiras intenções ao atacar o porto de Odessa horas depois de assinar o acordo sobre os cereais

Esta falta de clareza é comum nas autoridades russas - e é essa a questão

O líder das Nações Unidas, António Guterres, parecia ao mesmo tempo aliviado e apreensivo quando o acordo relativo à exportação de cereais, por ele negociado, foi assinado à sua frente em Istambul, na sexta-feira.

Imediatamente após as assinaturas da Rússia, da Ucrânia e da Turquia, a intermediária, o Secretário-Geral da ONU disse que o acordo oferecia um “sinal de esperança”, anunciando ajuda alimentar para o mundo em desenvolvimento.

PUB

Infelizmente para Guterres e para todos aqueles que contavam com o tão necessário alimento, os meses que ele passou em penoso trabalho diplomático - incluindo visitas a Moscovo e a Kiev para conseguir o acordo – apenas trouxeram à luz do dia as limitações de confiar na Rússia.

Não há um cessar-fogo explícito no acordo, mas as obrigações da Rússia estavam claramente definidas: “A Federação Russa comprometeu-se a facilitar a exportação de alimentos, de óleo de girassol e de fertilizantes”, disse o gabinete de Guterres em comunicado.

Menos de 24 horas após a assinatura, a calma pós-acordo em Odessa - o principal porto mencionado no acordo - foi quebrada quando dois mísseis cruzeiro russos Kalibr, lançados do mar, atingiram o porto.

As janelas de edifícios a 1,5 quilómetros de distância estilhaçaram-se. Os bombeiros correram para o porto para apagar os fogos em vários barcos. Segundo as autoridades, um funcionário do porto ficou ferido.

PUB

Os danos poderiam ter sido muito piores. Dois outros mísseis de precisão de 6 milhões de dólares foram abatidos pela defesa aérea da Ucrânia. As pessoas que frequentam a praia em Odessa, e que ainda no ano passado disputavam lugares na areia com os turistas russos, aplaudiram quando os mísseis foram abatidos, mesmo por cima das suas cabeças.

O aparente remate da Rússia ao acordo dos cereais que assinou foi lamentado pela Ucrânia e pelos seus aliados - e amplamente considerado como uma prova da duplicidade russa.

Falando à CNN poucas horas após o ataque, o membro do parlamento ucraniano Oleksiy Goncharenko disse que a Rússia está “a mostrar que quer continuar a ameaçar a segurança alimentar do mundo.”

“O ataque lançou sérias dúvidas sobre a credibilidade do empenho da Rússia”, disse o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, acrescentando que “prejudica o trabalho da ONU, da Turquia e da Ucrânia de fazer chegar os alimentos essenciais aos mercados mundiais.”

PUB

“Mostra que não há uma única palavra [do presidente russo Vladimir Putin] que seja de confiança”, disse Liz Truss, Ministra dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido - e potencial próxima primeira-ministra.

Foto cedida pelo gabinete de imprensa da Câmara Municipal de Odessa a 23 de julho de 2022

De forma incrível, a resposta inicial da Rússia aos relatos do ataque foi a negação.

Segundo a Turquia - cossignatária do acordo e mediadora da sua implementação segura e justa - o Kremlin disse a Ancara “em termos inequívocos” que “não tinha nada que ver com este ataque.”

No entanto, apenas 12 horas depois, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, anulou a mentira inicial. Disse que, afinal, tinham sido ataques russos, e afirmou que o ataque destruiu a “infraestrutura militar” ucraniana no porto.

PUB

A Ucrânia disse que os ataques atingiram uma estação de bombeamento no porto de Odessa.

Esta falta de clareza é comum nas autoridades russas - e é essa a questão. O acordo dos cereais não mudou nada no cálculo de Moscovo para travar a guerra, apesar de todo o difícil trabalho diplomático de Guterres.

E o dano aqui causado não serve só para lembrar ao mundo a relação ambígua de Moscovo com a verdade. A Rússia também queimou a boa-fé do intermediário no acordo, a Turquia.

Sob os termos do acordo, a Turquia está a criar um Centro de Comando Conjunto (JCC) com a ajuda da ONU para monitorizar o cumprimento do acordo. Mas a Rússia já arruinou toda a confiança ao manter a sua abordagem cínica face à guerra na Ucrânia.

A invasão russa a um dos celeiros do mundo causou a insegurança alimentar global, mas Moscovo conseguiu concessões, através do acordo, para permitir o fluxo dos cereais da Ucrânia. Isso tem um nome: extorsão.

Para conseguir que a Rússia libertasse os cereais, pondo fim aos bloqueios nos portos ucranianos, Guterres teve de fechar um acordo paralelo com a Rússia, aliviando efetivamente algumas sanções sobre os alimentos e os fertilizantes. Representantes da ONU explicaram a manobra diplomática como “baseada no princípio de que as medidas impostas à Federação Russa não se aplicam a esses produtos.”

PUB

O alívio dessas sanções levará dinheiro aos cofres de Moscovo - algo que talvez seja a lição duradoura do acordo de Guterres: Putin fará concessões limitadas em troca de dinheiro.

Mas, ao fazê-lo, Putin talvez tenha revelado, como o Smaug de Tolkien, uma vulnerabilidade potencialmente fatal das suas defesas. A fraqueza do dragão mítico era uma escama que faltava, e a de Putin parece ser a ferradela económica das sanções internacionais. Quaisquer que sejam as suas outras razões para concordar com o acordo, a necessidade de pagar a guerra deve pesar mais.

Falando em Istambul após o ataque com mísseis de sábado, o ministro-adjunto das infraestruturas da Ucrânia, Yurii Vaskov, disse que as reuniões técnicas para implementar o acordo estão em andamento.

“A Ucrânia está decidida a iniciar a exportação dos cereais o mais depressa possível”, disse ele.

O “ataque da Rússia também está na agenda”, acrescentou Vaskov.

Guterres estava certo em ter esperança. A futura eficácia do Conselho de Segurança da ONU depende da capacidade dele de impedir a Rússia de agravar a guerra por ela iniciada. Mas se Guterres já estava apreensivo na assinatura do acordo, na sexta-feira, nada do que viu até agora terá aplacado os seus receios. Muito menos as declarações do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, no domingo, a embelezar o acordo, alegando que os navios russos ajudariam a escoltar os cargueiros. Uma declaração que, tal como o ataque com mísseis, pretende apenas provocar a Ucrânia.

PUB