Já fez LIKE no CNN Portugal?

Guerras: da indiferença à polarização

"Psicologia em tempo de guerra", uma rubrica para ler no site da CNN Portugal

Aceito e compreendo que o leitor ache estranha a mistura destes dois conceitos: a indiferença e a polarização. Na verdade, não são interdependentes nem relacionados no seu significado, mas resultam de um processo semelhante, chamado simplificação. Simplificar é, está bom de ver, tornar simples. Simplifica-se uma equação quando esta é decomposta nos seus fatores. Simplifica-se um problema, quando se consegue dividi-lo em vários passos e se resolve um de cada vez. Simplificar parece, pois, uma coisa boa, até porque pode ser o contrário de complicar, um verbo já com uma conotação negativa, ou pelo menos uma mais negativa do que complexificar. As pessoas gostam de tornar simples, porque o simples exige menor esforço, é mais fácil de compreender e de relacionar. Ser humano é ser dotado na arte de tornar simples, de promover a lei do menor esforço, pois ser inteligente é resolver bem, e resolver bem é conseguir mais com menos. E isso é, quase sempre, bom.

Mas, “Ser humano” é também ser complexo. A espécie humana é a mais complexa de todas as espécies do mundo, resulta de uma longa e complexa evolução. De tal forma assim é que o indivíduo da nossa espécie demora muito anos (socialmente mais de 18) a completar o seu desenvolvimento, a constituir-se como um membro adulto da espécie e, na verdade, não termina aí a sua evolução. Esta continua enquanto existirem experiências e relações sociais, porque se o ser humano vai procurando moldar o mundo às suas necessidades, também se vai moldando ao mundo social. A ontogénese é a recapitulação resumida da filogénese, o que significa dizer que o indivíduo no seu desenvolvimento passa pelas mesmas fases, resumidamente, que a espécie passou nesse mesmo desenvolvimento. Compreende-se, pois, a complexidade do que é “Ser humano” e que faz com que cada pessoa seja um ser único, irrepetível e diferente de qualquer outro.

PUB

Isto escrito, se a simplificação é natural e uma manifestação de inteligência das pessoas, sempre que se tenta simplificar algo ou alguém, está-se a reduzir, e deste modo a perder algo. E se isso é aceitável e compreensível, porque viver é aceitar perder algo para ganhar outra coisa, também pode ser pernicioso. Simplificar as pessoas é reduzi-las. E reduzir alguém é grave, pois já toda a gente se sentiu diminuída alguma vez na vida, e seguramente, não gostou.

Simplificar a guerra é, por um lado, ganhar indiferença em relação à mesma. A exposição repetida a algo que faz sofrer pode criar perturbação. Mas também pode, mais vezes, acabar por gerar indiferença. É um processo natural e até positivo, porque protetor. Mas, também significa tornar mais indiferente e normalizar o sofrimento dos outros, o que pode diminuir a solidariedade (a fadiga da solidariedade como escreveu Tiago Pereira), bem como a motivação para agir como forma de ajudar o outro a lidar com o seu sofrimento. Uma das poucas, senão a única, consequência positiva de uma guerra como esta, é o reforço da solidariedade entre as pessoas.

Simplificar a guerra é também polarizar. É tornar preto ou branco, sim ou sopas, certo ou errado, bom ou mau. É chocante a facilidade com que se aceita a polarização numa guerra. Chamar alguém de diabo, louco, bandido é fácil e até natural. E não o fazer é criticável, porque é necessário a força de todos para que se possa acreditar mesmo a sério, uma vez que isso protege. Se houver bons e maus, todos voltam um pouco à infância e à crença de que, no fim, os bons ganham sempre aos maus, e isso é reconfortante. Porque estar do lado dos bons é estar do lado daqueles que se vão salvar. E a polarização pode estender-se a um grupo e até a um ou mais países, o que faz com que as pessoas acreditem nas coisas mais inverosímeis, desde que isso confirme a condição do outro ou dos outros. Assim se constroem teorias da conspiração e crenças irracionais, para conseguir explicar os fenómenos de acordo com as premissas estabelecidas e promotoras da segurança individual.

A indiferença e a polarização são consequências comuns de crises geradoras de grande e impactante sofrimento. São vieses que se constroem para proteger as pessoas do impacto emocional vivido, promovendo uma sensação de segurança pela pertença ao “lado certo”.  Mas, ao reduzir a complexidade do outro e do mundo, ao aumentar a indiferença perante o outro e perante o mundo, está a contrariar-se a natureza de “Ser humano”, pelo que se está também a desumanizar. Importa por isso, num caso como este da guerra da Ucrânia, fazer esforço para manter comportamentos pró-sociais de solidariedade. Importa fazer esforço para não normalizar o sofrimento do outro, importa por isso diminuir a exposição constante às imagens chocantes e agressivas que surgem a cada momento. Importa ainda fazer esforço para compreender o lado dos “outros”. Não é aprovar, concordar ou mesmo desculpar. Os atos a que se tem assistido são de facto inaceitáveis. Ainda assim, importa procurar compreender que existem visões diferentes, causadas por vivências diferentes, culturas diferentes, crenças diferentes e até defeitos diferentes. O mundo é apenas um, e não se divide. Não existe outra solução que não seja a de aprender a viver em comum. Se isso é impossível nesta altura para a maioria dos Ucranianos, a lidar com um sofrimento insuportável, não tem que o ser para todos os outros.

PUB