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Fusão entre 1.º e 2.º ciclos vai mesmo "ser adotada" mas na escola não há certezas: "Muitos países da Europa já não estão a ter os resultados que antes gostávamos de invejar"

A divisão entre "escola primária" e "segundo ciclo" pode terminar em breve se o Governo avançar, como consta do seu programa, com a integração dos dois primeiros ciclos da escolaridade obrigatória. Uma medida que divide opiniões e que levanta muitas questões, apesar de a discussão não ser de agora

A medida anunciada no programa do Governo de fundir o 1.º e o 2.º ciclos está a levantar algumas dúvidas junto da comunidade escolar, com alguns a temerem que se esteja a avançar para esta reforma por razões “economicistas” e como forma de fazer face à escassez de professores. A medida constava do programa eleitoral da Aliança Democrática (AD) e a discussão não é nova. Desde 2008 que é “objeto de reflexão” por parte do Conselho Nacional de Educação (CNE). Se há quem aponte benefícios e defende que se avance com a maior brevidade possível, outros há que temem que as intenções não visem apenas o “bem-estar dos alunos”.

“O principal receio é quererem tomar esta medida por questões economicistas, por questões de modas importadas de países com contextos muito diferentes dos nossos e não estarem a precaver o superior interesse do aluno. Ou seja, não terem falado sobre os benefícios pedagógicos desta medida. Na educação o principal beneficiado deve ser o aluno. Não tenho a certeza que nesta medida esteja precavida essa premissa!”, considera Alberto Veronesi, professor do 1.º ciclo.

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O 2.º ciclo tem entre seis e oito professores por conselho de turma. A fusão, dependendo do modo como for feita, pode levar a uma grande poupança de pessoal docente. A medida de juntar o 1.º com o 2.º ciclo poderá ter essa consequência de necessitar de menos docentes…”, sugere Paulo Guinote, professor e autor do blogue sobre Educação “O Meu Quintal”.

Esta alínea do programa do Governo lançou aliás mais dúvidas do que certezas e há quem questione o modo como essa integração de ciclos irá ser feita. “Vamos apenas alargar o 1.º ciclo ou vamos tentar que o 1.º ciclo, a partir do 4.º ano, evolua de forma diferente? Essa junção é apenas no sentido de integrar os conteúdos do 1.º e 2.º ciclos em parte e em vez de os repetirmos no 5.º e 6.º anos?”, questiona Paulo Guinote.

Debate e consenso

Filinto Lima, presidente da ANDAEP (Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas), fala em “mudança estrutural no sistema educativo”, que não pode ser levada a cabo sem “uma ampla reparação e um amplo debate nacional para perceber se o caminho é esse”. O dirigente escolar levanta também dúvidas de índole mais prática: “Temos escolas do 1.º ciclo e escolas do 2.º e 3.º ciclos. Desde logo, os alunos vão continuar seis anos na escola do 1.º ciclo? Onde é que vamos acomodar os nossos alunos?”

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Uma preocupação levantada também por Alberto Veronesi. “As estruturas escolares, ou o edificado, não me parecem, da realidade que conheço, adaptados à unificação dos dois ciclos. Muitas escolas do 1.º ciclo não tem espaços nem sequer para apoios”, observa

A passagem "brusca" do regime de monodocência para pluridocência é um dos argumentos dos defensores da medida

Filinto Lima acrescenta que não se pode “partir para o desconhecido” e avançar “sem um prévio debate, sem auscultação de quem está no terreno, das próprias autarquias”. “É uma medida difícil de implementar, com muitos anticorpos, que tem de ser explicada às pessoas como pode ser aplicada na prática. Uma legislatura não me parece suficiente. E quem vem a seguir? Estará de acordo?”, pergunta ainda Filinto Lima, também diretor do Agrupamento de escolas Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia.

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O dirigente escolar questiona mesmo o momento e o contexto que se vive na Educação em Portugal para se avançar com a medida: “Se as coisas estivessem estáveis nas escolas, se tivéssemos um número suficiente de professores… mas não estão. Esta é uma mudança que não pode ser preocupação deste Governo. E insisto: tem de merecer um amplo e um muito amplo consenso partidário. Só resultaria se houvesse um pacto de Educação.”

Filinto Lima fala mesmo em “ouvir os alunos” e “debates com pais, professores, sindicatos, com todos os atores escolares”.

“A ter lugar, nunca deverá sê-lo no curto período previsto (até cinco anos), mas fruto de uma preparação refletida profundamente por todos, que exige alterações nomeadamente ao nível da formação de professores e dos currículos vigentes. E, quando falamos em ‘todos’, falamos também dos profissionais no terreno que devem necessariamente ser auscultados, a par dos teóricos, valorizando-se o seu saber empírico. Há todo um planeamento que deve ser levado a cabo e não pode, mais uma vez e como em tantas outras medidas dos últimos anos, ser uma problemática de resolução avulsa e remediativa”, acrescenta Cristina Mota, porta-voz do movimento cívico de professores Missão Escola Pública.

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De "um professor" para "muitos professores"

A implementação da medida pode obrigar a outra que também consta do programa do Governo, que é a revisão da Lei de Bases do Sistema Educativo. Uma lei com quase 40 anos e para a qual muitos reclamam alterações de fundo. Mas não será o único documento orientador que terá de sofrer alterações.

Estaríamos a passar de um primeiro ciclo de seis anos, para um primeiro ciclo de seis anos. E não sabemos qual seria o desenho final. Tem de haver um debate e uma avaliação aprofundada das vantagens e desvantagens do atual modelo e uma projeção das vantagens e desvantagens do modelo a implementar. É uma alteração significativa, tendo em conta a realidade das últimas décadas”, sublinha Francisco Gonçalves, secretário-geral adjunto da Fenprof.

O 1.º ciclo tem vindo a perder as características da monodocência, com a introdução de disciplinas como Inglês ou Expressões, que são ministradas por outros professores que não o titular. Mas também esta questão poderá ser alterada. “O Missão Escola Pública defende que poderá ser analisada a possibilidade de fusão, não a de ‘estender’ a monodocência ao 2.º ciclo. Defende a possibilidade de, nos primeiros anos de escolaridade, os alunos contactarem com vários professores em vez de apenas um. Isto é, trazer a pluridocência do 2.º ciclo (ainda que em menor número de disciplinas) ao 1.º ciclo”, diz Cristina Mota.

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Há quem questione se os espaços escolares estão preparados para a medida

Na verdade, a transição “brusca” de um professor titular para vários professores “numa idade crucial para as aprendizagens” é uma das razões invocadas pelos defensores da integração dos dois ciclos. “Uma coisa é mudar para um modelo pluridisciplinar aos 12 ou 13 anos e outra é mudar aos 9 ou 10 anos. A maturidade é completamente diferente. Temos de colocar em primeiro lugar o superior interesse dos alunos. Se for reconhecidamente bom para os alunos, o sistema tem de se adaptar”, defende Manuel Pereira, diretor no Agrupamento de Escolas General Serpa Pinto de Cinfães e presidente da ANDE (Associação Nacional de Dirigentes Escolares), frisando que fala “em nome próprio” e não em nome da associação, que “não tem uma posição tomada”.

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“Tenho dificuldade em chamar-lhe fusão. Talvez não seja uma simples fusão. Tem de ser integrado numa visão da educação dos zero aos 12 anos. Sobretudo dos seis aos 12 anos. A proposta de uma educação integrada dos seis aos 12 anos propicia uma sequência progressiva mais adequada às formas como as crianças aprendem. Ter um ciclo mais longo, que começa aos seis anos e termina aos 12 permite ou facilita um entendimento e um conhecimento mais profundo das necessidades individuais dos alunos. Essa transição abrupta é muito referida num estudo de 2008, porque os alunos passam de um regime de monodocência para um regime de pluridocência quase de secundário. Há alunos que passam a ter mais de dez professores”, sublinha Domingos Fernandes, presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE).

Os professores

A ser implementada, a medida pode obrigar a mexer também no Estatuto da Carreira Docente e na atual divisão dos grupos disciplinares. “Pode também obrigar a mexer com a formação de professores, dependendo do desenho que venha a ser definido. Seria um professor generalista que daria todas as disciplinas, desde as línguas à matemática e às ciências, por exemplo?”, questiona Francisco Gonçalves, da Fenprof.

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A partir do momento em que se alteram os ciclos, teria de se mexer noutras áreas que não derivam necessariamente da fusão dos ciclos. Teria provavelmente de se mexer no estatuto da carreira docente. O 1.º ciclo tem um horário diferente do 2.º e do 3.º. Um professor titular do 1.º ciclo tem as cinco horas ao longo dos cinco dias da semana. São 25 horas, sem direito à redução de horário a partir dos 50 anos, como os professores do 2.º e 3.º ciclo têm”, acrescenta Paulo Guinote.

A formação dos professores que estão a entrar no sistema pode ter de ser revista, como sugere ainda Paulo Guinote: “Ou se mantém a um nível muito básico ou tem de se rever também aquilo que é dado em algumas licenciaturas de Ensino Básico. Quem pode dar que ciclos?”

Mas a formação dos docentes que estão agora no sistema de ensino também tem de ser repensada, como justifica Alberto Veronesi: “Desde os mestrados de Bolonha que os estudantes para professores podem optar por tirar em 1.º e 2.º ciclos ou pré e 1.º ciclo, ficando assim habilitados para dois grupos de recrutamento. O problema será os milhares que estão no sistema e que apenas têm formação num ou noutro grupo de recrutamento. Para esses seria necessário que houvesse formação extra.”

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"Mudar mentalidades"

De acordo com o Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), “a fusão dos 1.º e 2.º ciclos do Ensino Básico é uma medida que irá ser adotada, tal como consta do programa de Governo”. “Os serviços do Ministério estão a trabalhar em cenários possíveis, para serem devidamente estudados e avaliados, resultando posteriormente numa proposta”, avança fonte do MECI à CNN Portugal, adiantando que, “para já, não é possível avançar com informação detalhada”.

Filinto Lima antevê também a necessidade de uma “mudança de mentalidades”, já que “estamos habituados à escola primária, ao ciclo preparatório…”.  O antecessor do 2.º ciclo foi criado em Portugal nos anos 60, com o alargamento da escolaridade obrigatória de quatro para seis anos. “Foi criado o chamado então ciclo complementar. Havia o ciclo elementar e foi criado o ciclo complementar. Em 67, foi criado o ciclo preparatório do ensino secundário. O 2.º ciclo como hoje o conhecemos resulta da fusão entre o ciclo preparatório para o ensino liceal e o ciclo preparatório para o ensino técnico”, recorda Domingos Fernandes, presidente do CNE.

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Na lei de bases de 86, alargou-se a escolaridade obrigatória para nove anos e criou-se o 2.º ciclo, mas ele passou a estar formalmente integrado no Ensino Básico. Em 2009, surge o alargamento da escolaridade obrigatória para 12 anos e fica clara uma amálgama de três realidades diferentes”, acrescenta.

O CNE pronunciou-se sobre a possibilidade de eliminar o 2.º ciclo pela primeira vez em 2008, com base num estudo de investigadores de diversas universidades, coordenados por Isabel Alarcão, sobre a educação das crianças dos zero aos 12 anos. “O CNE defendeu que se deveria esbater a transição entre ciclos, referindo que havia uma transição muito brusca entre o 1.º e o 2.º ciclos”, sublinha Domingos Fernandes.

A alteração pode obrigar a alterar a Lei de Bases do Sistema Educativo e a formação de professores

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O assunto voltou a ser discutido pelo CNE em 2016 e, mais recentemente, constava também do documento sobre o Estado de Educação relativo a 2022. “Foi decidido fazer um texto reflexivo sobre o assunto. O 2.º ciclo é uma espécie de enclave no Ensino Básico. O texto acaba por fazer uma espécie de estado da arte. Uma análise do que se conhecia relativamente a esta matéria e do que se tinha feito até então”, diz o responsável do CNE.

O que se faz lá fora

Domingos Fernandes lembra que “todos os países europeus” têm um primeiro ciclo de ensino de seis anos de escolaridade e considera que a implementação da medida pode não ser tão complicada como muitos preconizam. “Isto vem a ser pensado com seriedade desde 2008. Já passaram 16 anos. Espero que não se demore mais 16 para tomar uma decisão seja ela qual for. Os dados da investigação e os dados das políticas públicas de outros países, indicam-nos que alguma coisa terá de ser feita”, defende.

“Percebemos e todos concordamos que, nos modelos educativos da maioria dos países, o 1.º ciclo tem seis anos. Percebo as razões e as vantagens de um ciclo mais alargado. O nosso 1.º ciclo não é de seis anos e todos sabemos porquê: porque a nossa escolaridade obrigatória de seis anos avançou muito depois da dos outros países”, acrescenta Manuel Pereira.

Paulo Guinote alerta, contudo, que “em muitos países da Europa já não estão a ter os resultados que antes gostávamos de invejar”, além de que "fazer porque na Europa se faz assim não é solução”. Uma opinião secundada pelo sindicalista Francisco Gonçalves: “Somos o único país da União Europeia que tem um primeiro ciclo de quatro anos, mas isso, por si só, não é razão para mudar.”

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