Já fez LIKE no CNN Portugal?

Folhetim de voto: O Costa do guterrismo e o Costa do cavaquismo

Quem ganhou o frente-a-frente? A sondagem da CNN Portugal responde que foi Rui Rio. Na coluna diária de análise e opinião da campanha, o jornalista de Política Filipe Santos Costa concorda que este foi o melhor debate de Rio e o mais fraco de Costa. Este clarificou finalmente que poderá governar como Guterres. Mas por alguns minutos só fez lembrar Cavaco

Vantagem. Pouco antes do arranque do único frente-a-frente entre António Costa e Rui Rio, ontem à noite, a RTP divulgou a sua mais recente sondagem para as legislativas. Os números sobre PS e PSD coincidem com os da sondagem lançada um dia antes pela CNN Portugal/TVI: PS com 39% e PSD com 30%, crescendo para 9 pontos percentuais a diferença entre ambos. No melhor cenário para o PS, podem faltar só 3 deputados para a maioria absoluta. E, na análise do Público, o apelo de Costa ao voto útil pode mesmo resultar, indo buscar votos ao PCP, BE e Livre.

PUB

Sim, é verdade, faltam 2 semanas para as eleições, ainda muita coisa pode acontecer. Mas também pode nada acontecer de muito relevante que mude o status quo. Como não vale a pena contar com o imprevisível, os partidos têm de trabalhar com aquilo a que os economistas chamam “cenário invariante” (ouviu-se falar disso no debate, quando Rui Rio explicou que o seu quadro macro-económico tem esse pressuposto). Nesse cenário, Rio precisa de pedalar muito se quiser aproximar-se de António Costa. Foi com essa certeza que ambos entraram para o debate no Capitólio. 

PUB

Missão. Rio não só tinha de fazer mais do que Costa. Tinha de fazer diferente. Manuela Ferreira Leite explicou-o bem na CNN Portugal após o debate: “Costa tinha de mostrar os resultados da governação de 6 anos, e porque é que depois desta governação espera que as pessoas lhe dêem o seu voto”; quanto a Rio, estava “na situação de propor um novo caminho”. Pela diferença de pontos de partida, e pela diferença de tarefas que cada um tinha, o debate exigia mais do líder da oposição do que do primeiro-ministro. E assim aconteceu. Rio mais assertivo e desenvolto, Costa mais à defesa.

Esclarecedor. Foi um debate entusiasmante? Nem de longe. Foi esclarecedor? Bastante. Focado num conjunto de temas essenciais (governabilidade, impostos, salários, serviços públicos, Saúde, justiça e TAP), ficaram bem patentes as diferenças entre dois caminhos que são distintos mas não radicalmente diferentes (são dois centristas, como escreve aqui Maria João Marques). É sobretudo uma questão de graduação e de enfoque - no fundo, o debate sobre o que separa PS e PSD nestes pontos também podia ser sobre o que os aproxima, e seria igualmente esclarecedor (hoje, em entrevista ao DN, José Miguel Júdice não duvida de que Rio vai apoiar o futuro Governo de Costa). 

PUB

“Estes dois políticos foram feitos para se entenderem”, sentencia, na mouche, António Barreto, mas “cada um sabe que só ganha se esmagar o outro”. E as campanhas são o momento de pôr a lupa sobre as diferenças - o tempo das aproximações será a partir de 31 de janeiro.

Absolut Costa. Vou já a seguir ao debate, tema a tema. Antes, vou ao que é mais importante: o pós-debate. Findo o frente-e-frente, António Costa resolveu dar uma conferência de imprensa de 15 minutos. Rio, mais modesto (e com menos perguntas dos jornalistas), falou só 7. Em compensação, Rio levou claque, o que deu à coisa um ar de comício (fraquinho, mas comício).

Findo o debate, Costa falou com mais clareza sobre o que realmente quer no dia 30: a maioria absoluta. Já não tem vergonha de a pedir, mas isso coloca-lhe um problema de coerência: desde o cavaquismo, nos anos 80/90, o PS demoniza as maiorias absolutas. Sócrates, entretanto, também teve uma, e esse não foi um governo de boa memória, conforme se constata cada vez mais - mas, por alguma razão, a má fama da maioria absoluta parece vir só do absolutismo cavaquista. 

PUB

Sem nunca aludir a Sócrates, Costa esforçou-se por convencer os portugueses de que nada têm a temer com uma maioria absoluta, pois não é Cavaco. Se dúvidas houvesse, Costa até jurou que lê jornais e não diz que nunca se engana e raramente tem dúvidas (para quem não se lembre, Cavaco gabava-se de não os ler e de não se enganar nem duvidar).

Reviver o cavaquismo no Capitólio. Foi um momento estranho, aquele no Capitólio. Sobretudo porque quanto mais Costa dizia que não era Cavaco, mais dizia coisas que o aproximavam do antigo primeiro-ministro. 

  • Na auto-suficiência, quando falou em governar na pandemia: os outros dizem o que “teriam feito, mas quem teve de fazer fomos nós”.
  • Na retórica contra “aventuras”: “Os portugueses não estão aqui para aventuras, vão-nos dar confiança para podermos ter maioria que o interesse nacional exige”.
  • Na desconsideração do processo democrático: “Não podemos é continuar a perder tempo”, declarou Costa, prometendo “arregaçar as mangas” e ficando a um passo do célebre “deixem-nos trabalhar!”. Como o PS não quer “perder mais tempo”, a maioria absoluta permite reapresentar o Orçamento chumbado em novembro, e “nem mais um dia em duodécimos”.
  • Na maioria absoluta como sinónimo de governabilidade: “maioria absoluta não é poder absoluto, é ter condições para governar”.

PUB

Marcelo como argumento. Há muito que sabemos que os políticos em campanha encontram “pessoas na rua” que lhes revelam verdades convenientes. Uma vez uma velhinha disse a Paulo Portas que tinha sido Nossa Senhora a livrar Portugal de uma maré negra; outra vez, outra velhinha disse a Fernando Nogueira que este ia ganhar as eleições (pelo menos a segunda enganou-se). Não sabemos se foi uma velhinha, mas Costa revelou ontem o que lhe “dizem na rua”: “Sabemos que não vai abusar da maioria, sabemos que temos um Presidente da República em quem podemos confiar e que está cá para garantir que não há abusos, sabemos que há imprensa livre que vai estar atenta e vigilante”. 

E insistiu em puxar Marcelo para a dança, usando-o como argumento eleitoral do PS: “Alguém acredita que com Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República podíamos ter uma maioria absoluta que pisasse o risco? Não pisava o risco dois dias. Era o primeiro e acabava.” Por absurdo, o argumento pode resultar para quem não tenha memória das maiorias absolutas de Cavaco - mas não para quem se lembra da pressão cerrada de Mário Soares sobre Cavaco, que em nada impediu os abusos dessa maioria absoluta. 

PUB

Governabilidade: vantagem Costa. Voltemos ao debate. Não era possível Costa esconder mais o jogo. Pede uma maioria absoluta, já tinha dito que sai se perder as eleições, mas não o que fará se ficar entre um caso e outro; se ganhar sem a maioria absoluta. Esclareceu ontem: estará disponível para conversar com todos, como o PS fazia no tempo dos governos de António Guterres. Como enfatizou a Ângela Silva na SIC-N, essa foi a grande notícia de ontem à noite. 

Após seis anos de porta fechada ao PSD, Costa volta a predispor-se a falar com o maior partido da oposição. Já não diz que no dia em que o Orçamento for viabilizado pelo PSD o governo cai. E convém lembrar que o primeiro Governo de Guterres - quando Costa estava nos Assuntos Parlamentares, na torre de controlo das negociações “diploma a diploma” - foi um tempo por excelência dos acordos PS-PSD.

Depois deste esclarecimento, Rio insistiu que “não se entende muito bem como pode haver estabilidade com a vitória do PS”. A resposta, por ironia, foi dada logo a seguir pelo mesmo Rio, quando disse no pós-debate: “Estou disponível para negociar a governabilidade do país (...) Na perspetiva de não haver maioria absoluta, que remédio tem um democrata, que não seja negociar com os outros, procurando uma negociação equilibrada?”, questionou o líder do PSD. Costa podia ter dito o mesmo.

PUB

Há uma alternativa que Costa colocou antes da solução de pesca à linha: se o PS ficar mesmo à beira da maioria absoluta, pode conseguir fazer acordos estáveis com parceiros que não estiveram na geringonça - citou o PAN, mas também podia ter falado do Livre. Rui Tavares parece estar bem encaminhado para a eleição, e o PAN também deverá manter alguma representação parlamentar. Resta ver se basta.

A ameaça fantasma. Quando pressionou Costa para ser claro sobre o que fará, Rui Rio levantou o risco de um PS liderado por Pedro Nuno Santos, como quem agita com o fantasma do regresso do comunismo. Foi estranho ouvir Rio dar um argumento ao eleitorado de centro para que vote em Costa, travando, com isso, a ascensão de Pedro Nuno. Para além disso, foi um tiro na água, até porque não há uma única sondagem que aponte para a hipótese de vitória do PSD, e esse é o único cenário em que Costa admite sair de cena. 

Impostos: vantagem Rio. Num debate em que Costa se apresentou prometendo continuar um caminho já bem conhecido - até levou o Orçamento chumbado há dois meses como estando pronto para voltar a entregá-lo -, Rio foi hábil a apontar o lado sombrio da governação socialista. Um país em “estagnação”, com “degradação dos rácios todos”, baixos salários, emigração e “cada vez mais a caminho da cauda da Europa”. Mensagem: “Temos de fazer diferente”, “mudar o modelo”, pois a mesma receita não dará resultados melhores. 

PUB

Rio argumentou bem o contexto em que propõe, não um aumento dos rendimentos das famílias, como Costa, mas o desagravamento do IRC, para ajudar as empresas a criar riqueza - que mais tarde chegará às famílias. É a velha teoria da trickle down economy, na qual há quem acredite, mas que não cabe aqui discutir. O ponto é que o retrato de estagnação e a defesa de um “novo modelo” pode ser apelativo para algum eleitorado de centro. Mas tem um risco, óbvio, e reconhecido pelo próprio Rio: “seria mais popular” fazer ao contrário, e desagravar primeiro os impostos sobre as famílias. “Mas isso seria persistir no erro”, respondeu o social-democrata. Este reconhecimento, e a candura calculada com que Rio o faz, acaba por funcionar também a seu favor, com a imagem do homem que diz aquilo em que acredita mesmo que isso o prejudique eleitoralmente.

Salários: vantagem Costa. O risco que Rio admitiu correr no debate sobre impostos (optar pelo caminho mais impopular, com a promessa de amanhãs que cantam) é ainda maior na discussão sobre salário mínimo. Costa não deixou que Rio fugisse do anzol: disse mesmo que era contra o aumento do salário mínimo. Enquanto o socialista põe o aumento do salário mínimo como prioridade das políticas públicas, o líder do PSD vê-o como consequência de uma série de fatores. É todo um mundo que os separa. Rio argumentou com a insustentabilidade dos aumentos prometidos, mas Costa lembrou que no passado a direita tinha avisado para várias desgraças por causa deste aumento, e nenhuma se concretizou: nem chegou o diabo, nem o desemprego disparou, nem o investimento estrangeiro fugiu do país. 

PUB

Rio prefere falar do salário médio, e apresentou a patusca teoria de que as empresas só não aumentam os salários médios porque são obrigadas a subir os vencimentos mínimos. Costa atirou-lhe com a frase que trazia preparada:  “Quem não quer aumentar o salário mínimo muito menos aumentará o salário médio e os outros salários.”

Serviços públicos: vantagem Rio. “Há mais funcionários públicos do que havia, e os serviços públicos estão muito pior” - com esta frase, Rui Rio arrumou o assunto. Apesar do exagero de alguns exemplos de Rio, é uma constatação que qualquer pessoa fará se tiver de pedir um Cartão do Cidadão ou entrar com um processo de reforma. Rio nada esclareceu sobre o que fará (“otimizar os recursos” é uma frase vazia), mas o seu diagnóstico arrumou os argumentos de Costa.

Saúde: empate. O debate sobre saúde focou-se num caso concreto, os médicos de família, que tanto PSD como PS já prometeram dar a todos os portugueses, mas nenhum cumpriu. A resposta de Costa é “continuar”, e debitou muitos números provando a melhoria das respostas de saúde. Rio apresentou-se como uma resposta pragmática, a garantia de um “médico assistente” do serviço privado enquanto não há médico de família no SNS para todos. Sem “preconceitos ideológicos”. Foi a deixa para Costa acusar Rio de querer acabar com o SNS como o conhecemos, não só desviando recursos para o setor privado, mas sobretudo ao inscrever na sua proposta de Revisão Constitucional um artigo que na prática significa o fim do SNS “tendencialmente gratuito”. “Essa bravata ideológica, por preconceito ideológico, tem consequências: as pessoas da classe média vão passar a ser tratadas de forma diferente pelo SNS. (…) O que vai acabar por acontecer é termos serviços mínimos para os remediados e o serviço bom para quem tem posses”, disparou Costa. Rio respondeu que não, mas não se conseguiu livrar da suspeita.

PUB

Justiça: vantagem Costa. É um dos temas favoritos de Rui Rio, que ontem voltou a fazer um retrato negro do setor, mas foi Costa quem capitalizou politicamente. A velha proposta de Rio para que o Conselho Superior do Ministério Público tenha uma maioria de membros indicados pelo poder político justificou a acusação de que Rio quer politizar a investigação, o Ministério Público e a Polícia Judiciária. O social-democrata negou, como tem feito há anos, mas esta é uma acusação que lhe tem sido dirigida até por gente do seu partido, como a ex-ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz. O português médio terá percebido o que estava em causa nesta discussão? Não.

TAP: vantagem Rio. O líder do PSD tem tido um discurso ambíguo sobre a TAP, que ontem resolveu com uma ideia e um escândalo. A ideia foi a de que se trata de um buraco sem fundo, onde se perdem milhões para salvar uma empresa que presta mau serviço. O escândalo foi a rota Madrid-Lisboa-São Francisco: os bilhetes a partir de Madrid não chegam aos 200€; a partir de Lisboa passam dos 600€. Foi um momento de empolgamento com o “escândalo” e a “vergonha”. Passado esse momento, Rio concordou com Costa: a empresa é para privatizar “o mais depressa possível”, sendo que o primeiro-ministro até revelou que já há interessados. Mas o que ficou para memória futura foi o preço do bilhete para São Francisco, e Costa não teve como lhe responder. 

PUB

Vitória. A pergunta que sempre é feita aos comentadores após os debates foi respondida, desta vez, numa sondagem divulgada pela CNN Portugal. Antes do debate, a maioria esperava que fosse Costa a sair por cima, depois do frente-a-frente, a maioria respondeu que foi Rio a sair-se melhor. Do que vi e li, a avaliação dos 300 entrevistados pela Pitagórica coincide com a análise da maioria dos comentadores nas televisões e jornais. 

Empate. Concordo que este foi o melhor debate de Rui Rio. E concordo que esta foi a prestação mais fraca de António Costa. Para esta avaliação, a expectativa é essencial. Tal como os inquiridos na sondagem esperavam que Costa vencesse, também eu constato que o líder socialista tem feito bons debates, ao contrário do presidente do PSD - as prestações anteriores de Rio foram, em geral, tão fracas, que um mau desempenho na noite passada podia ser a morte do artista. Rio saiu melhor que a encomenda, e Costa ficou aquém da expectativa. Quem tem memória lembra-se que já tinha sido assim em 2019 (desta vez não há segunda oportunidade para o primeiro-ministro). 

PUB

Mas foi um debate tão equilibrado que me parece fútil declarar vencedores, a não ser que se queira instituir um sistema de VAR no comentariado politico. O melhor argumento em defesa da vitória de Rui Rio, ouvi-o da Maria João Avillez, no especial de ontem à noite da CNN Portugal. “É muito interessante que [Costa] tenha necessitado de perder tanto tempo no fim [na conferência de imprensa após o frente-e-frente]. Porque perdeu o debate.” 

Cabrita. Continua a pesar, mesmo depois de ter saído do Governo. O ex-ministro Eduardo Cabrita e o seu chefe de segurança vão ser investigados pelo Ministério Público por suspeita de homicídio negligente no caso do atropelamento mortal de um trabalhador da Brisa na A6. A notícia está no Público.

Últimas. Segundo a edição impressa do Expresso de hoje, Rui Rio prepara a eventualidade de vir a apoiar um Governo de Costa: quer avançar com a sua reforma da Justiça em troca da viabilização dos Orçamentos. Entretanto, se formar Governo com o PSD, Francisco Rodrigues dos Santos quer ser ministro da Defesa.

PUB