Xi Jinping está a construir uma cidade de sonho. Mas inundações devastadoras levantam questões sobre o seu plano
Nova cidade de sonho Xiong'an e as inundações na China (ver créditos nas próprias fotos)
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Xi Jinping está a construir uma cidade de sonho. Mas inundações devastadoras levantam questões sobre o seu plano

Por Simone McCarthy e Nectar Gan, CNN

Num dia cinzento do final de fevereiro de 2017, o líder chinês Xi Jinping reuniu-se com um punhado de conselheiros próximos: iam examinar campos agrícolas e zonas húmidas poluídas a cerca de 100 quilómetros a sul da capital Pequim.

Pouco mais de um mês depois, o futuro dessas terras do interior mudaria drasticamente: a China anunciava o plano de Xi, com um “significado de mil anos”, para transformar a área num centro ecológico e de alta tecnologia que serviria como subcapital do país e um novo modelo de planeamento urbano.

Na altura, o plano para lançar a “Nova Área de Xiong'na” levantou questões - incluindo sobre a forma como a nova cidade teria de lidar com os desafios ambientais que assolavam aquela zona baixa e pantanosa, propensa a inundações e secas.

Seis anos depois, essas questões voltam à tona, numa altura em que Pequim e a província circundante de Hebei - onde se situa Xiong'na - se debatem com as consequências das chuvas e inundações recorde que mataram dezenas de pessoas e desalojaram mais de 1,5 milhões no final de julho e início de agosto.

As principais zonas urbanas de Xiong'an, onde estão a ser construídos escritórios de dezenas de empresas públicas, não registaram grandes inundações.

Mas a devastação circundante vem sublinhar as preocupações sobre a decisão de construir uma cidade de vários milhares de milhões de euros numa planície propensa a inundações.

Além disso, levantam-se questões sobre até que ponto a cidade de sonho de Xi - e a pressão política para a proteger - influenciou a forma como as autoridades tomaram decisões sobre a gestão das águas de uma tempestade que acabou por gerar a mais grave inundação na região desde a construção de Xiong'an.

Um homem passa numa plataforma motorizada perto de um slogan de propaganda com as palavras “Confiança e auto-aperfeiçoamento, integridade e inovação, trabalho árduo e coragem para avançar” em Xiong'an, na província de Hebei, no norte da China, a 1 de abril de 2023. A Nova Área de Xiong'an foi designada em abril de 2017 como uma zona económica para absorver a função não-capital de Pequim. AP Photo/Ng Han Guan

“Absolutamente seguras”

Com as fortes chuvas que se abateram sobre a região no final de julho, os principais responsáveis pelo controlo das cheias na China reuniram-se para definir um plano de resposta. Entre as suas prioridades estava a de manter as cidades de Pequim e Xiong'an “absolutamente seguras” - exigência que foi repetida inúmeras vezes nos dias que se seguiram.

Os arredores montanhosos a oeste de Pequim foram os primeiros a ser atingidos, com as cheias repentinas desencadeadas pelas chuvas mais intensas dos últimos 140 anos a arrastarem carros, pontes e estradas.

Mais a jusante, as autoridades tiveram de tomar decisões difíceis sobre a forma de gerir as águas agitadas das cheias que jorraram das montanhas para os rios que serpenteavam pelas cidades, aldeias e terras agrícolas nas planícies de Hebei.

A 30 de julho, foi tomada a primeira decisão de descarregar a água nas “zonas de armazenamento das cheias” - áreas designadas para transbordo de emergência das águas das cheias, onde vivem centenas de milhares de pessoas.

Zhuozhou, uma cidade a sul de Pequim, foi a mais afetada, com ruas, casas e bairros inundados por metros de água turva. Nas redes sociais, alguns residentes afirmaram não ter sido avisados com antecedência, outros disseram que os avisos de evacuação chegaram demasiado tarde ou não explicavam a gravidade da situação.

As águas das cheias também fizeram submergir aldeias e terrenos agrícolas em Bazhou, outra cidade de Hebei, onde dezenas de residentes protestaram em frente aos escritórios da administração municipal para exigir indemnizações, de acordo com vídeos das redes sociais.

Residentes são evacuados em barcos de borracha através das águas das cheias em Zhuozhou, na província de Hebei, no norte da China, a sul de Pequim, a 2 de agosto de 2023. Naqueles dias, a capital da China registou a maior precipitação em pelo menos 140 anos. Entre as zonas mais afetadas encontrava-se Zhuozhou, uma pequena cidade que faz fronteira com o sudoeste de Pequim. AP Photo/Andy Wong

Alguns desenrolaram uma faixa vermelha onde se lia: “Devolvam-me a minha casa. A inundação foi causada pela descarga das águas das cheias e não por chuvas fortes".

A CNN contactou os governos de Zhuozhou e Bazhou para obter comentários. De acordo com a legislação chinesa, os residentes das zonas inundáveis têm direito a uma indemnização de 70% dos danos causados nas habitações.

As sugestões das autoridades de que as decisões sobre a libertação das águas das cheias em Zhuozhou e noutros locais de Hebei foram tomadas para minimizar o impacto na capital Pequim, em Xiong'an e na cidade portuária de Tianjin, também causaram reações negativas.

Em particular, o chefe do partido de Hebei, Ni Yuefeng, irritou algumas pessoas quando chamou à província uma “fossa” de Pequim. Mais tarde, os censores apagaram os seus comentários da Internet chinesa.

As equipas de salvamento utilizam barcos de borracha para transferir os residentes de Zhuozhou que ficaram presos nas águas das cheias após dias de aguaceiros provocados pelo tufão Doksuri, a 2 de agosto. Zhai Jujia/China News Service/VCG/Getty Images

Reduzir a pressão sobre Xiong'an

Especialistas dizem que serão vários os fatores que explicam como - e para onde - as águas das cheias foram desviadas, incluindo a velocidade e intensidade das águas, os níveis dos reservatórios e as diretrizes e regulamentos existentes sobre gestão de cheias. Devido à falta de transparência das autoridades, não se sabe exatamente por que razão foram tomadas as decisões.

Mas, no caso de Zhuozhou, que se situa quase 50 quilómetros a montante de Xiong'an, ao longo do rio Baigou, os repetidos apelos de alto nível para proteger a cidade de sonho de Xi - e a preocupação com a forma como as suas defesas resistiriam às fortes cheias - podem ter desempenhado um papel importante, dizem os especialistas.

Preparando-se para as tempestades de 20 de julho, o ministro chinês dos Recursos Hídricos, Li Guoying, ordenou aos funcionários que elaborassem planos de desvio das cheias para “manter as águas das cheias fora da periferia (de Xiong'an) e reduzir a pressão de controlo das cheias sobre os diques recentemente construídos”.

Hongzhang Xu, investigador de pós-doutoramento na Universidade Nacional da Austrália, afirmou ser “possível que as autoridades tenham libertado águas em Zhuozhou para aliviar preventivamente as pressões sobre Xiong'an, tendo em conta as suas novas infraestruturas de controlo de cheias”.

Preservar as cidades maiores sacrificando as cidades mais pequenas e as zonas rurais é, desde há muito, uma estratégia importante na gestão de inundações na China e noutros países, acrescentou.

Fan Xiao, um geólogo chinês, disse que ao reter algumas das águas das cheias em Zhuozhou, as autoridades conseguiram reduzir o pico das cheias e atrasar a sua chegada a jusante. “Isso atenua o impacto em Xiong'na”, explicou.

Li Na, responsável pelos recursos hídricos em Hebei, admitiu o mesmo, dizendo aos meios de comunicação social estatais que “se não fossem as duas áreas (em Zhuozhou) a controlar as águas das cheias, a pressão sobre o controlo das cheias a jusante em Xiong'an e Tianjin seria muito forte”.

É em Tianjin, uma importante cidade portuária com cerca de 14 milhões de habitantes, que vários rios da região desaguam no mar.

Situado no interior de Xiong'an, o lago Baiyangdian é a maior zona húmida de água doce do norte da China. Zhu Xudong/Xinhua/Getty Images/File

Mais perto do centro de Xiong'an, não é claro se o desenvolvimento da cidade alterou as decisões sobre o desvio das águas das cheias para o Lago Baiyangdian. Sendo a maior massa de água doce do norte da China, o lago desempenha um papel fundamental na rede de rios e reservatórios que gerem a água - e as inundações - na região.

Nas últimas chuvas, pelo menos três reservatórios a montante libertaram as águas das cheias para os rios que correm para Baiyingdian a partir do oeste e do sul, de acordo com os meios de comunicação estatais.

Mas a norte, um canal que liga Baiyangdian ao rio Baigou - que corre de Zhuozhou para sul em direção a Xiong'an - foi encerrado antes da chegada do pico das cheias. Em vez disso, as torrentes foram conduzidas para leste através de uma zona de inundação muito mais ampla até à zona de armazenamento de inundações de Dongdian, perto de Bazhou, onde as aldeias foram inundadas.

As autoridades não disseram por que razão foi tomada esta decisão, nem se nela pesou a proteção de Xiong'an.

A zona de inundação que conduz a Dongdian pode conter dez vezes mais água do que o canal que liga o rio Baigou a Baiyangdian e serve como o principal canal de alívio das cheias do rio Baigou.

De acordo com as diretrizes governamentais, as autoridades devem tomar decisões sobre o desvio das águas das cheias do rio Baigou para Baiyangdian com base nos níveis de água do próprio lago. Dados de fontes abertas mostram que o nível das águas de Baiyangdian já era elevado no final de julho - e que aumentou ainda mais em agosto.

Xu, o investigador da Universidade Nacional da Austrália, disse que, historicamente, as águas do rio Baigou teriam provavelmente sido desviadas para as zonas de armazenamento de cheias de Baiyangdian e Dongdian.

Em agosto de 1996, quando a região foi atingida pelas maiores cheias das últimas três décadas, o lago Baiyangdian absorveu 30% das águas das cheias do rio Baigou, segundo investigadores chineses.

A CNN contactou o Ministério dos Recursos Hídricos da China e o Departamento Provincial de Recursos Hídricos de Hebei para comentários.

Um homem caminha através das águas das cheias numa rua de Zhuozhou, a 5 de agosto. Kevin Frayer/Getty Images

Coordenação do controlo de cheias

A China não é a única a depender de sistemas imperfeitos de controlo das cheias que, por vezes, se revelam dispendiosos.

Muitos países têm sistemas que envolvem a descarga, após grandes tempestades, de águas das cheias em terras secas.

Nos EUA, o rio Mississippi tem várias vias de inundação. Este facto levou, por vezes, à inundação de terrenos agrícolas, incluindo zonas com residentes. Mas, ao contrário do que acontece na China, onde a indicação de zonas de armazenamento de cheias pode não ter acompanhado a urbanização, esses sistemas normalmente não inundam áreas altamente povoadas.

Cerca de 847 mil pessoas foram evacuadas das sete zonas de armazenamento de inundações que a província de Hebei acabou por abrir para fazer face às recentes chuvas.

Há sinais de que as autoridades chinesas estavam conscientes do problema. Antes das cheias, no final de julho, um grupo de funcionários do sector da água da região reconheceu a existência de um “conflito crescente” entre a utilização das zonas de armazenamento das cheias e o rápido desenvolvimento da região, incluindo a construção de Xiong'an.

No entanto, na sequência da última catástrofe na China, os peritos entrevistados pela CNN apelaram a uma revisão dos sistemas de gestão de emergências e a uma maior coordenação entre os funcionários da região - incluindo os de Xiong'an - para garantir que, da próxima vez, os custos não sejam tão elevados.

Os peritos sugeriram que um sistema complexo de autoridade e jurisdições, no que diz respeito à tomada de decisões sobre a gestão de emergências de inundações na China, tem impacto na forma como as autoridades lidam com estas crises.

“A região de Pequim-Tianjin-Hebei é bastante grande e, na maioria das vezes, a gestão das inundações não é centralizada por uma autoridade (da região) - está dividida em diferentes departamentos e agências governamentais”, disse Meili Feng, da Escola de Ciências Geográficas da Universidade de Nottingham Ningbo, na China.

“No futuro, seria definitivamente bom começar a pensar na gestão integrada das inundações à escala das grandes bacias hidrográficas”.

Ovelhas a pastar na relva, num local de construção (que está parada) para um projeto imobiliário residencial de luxo na província de Hebei, em abril de 2017. O projeto foi suspenso depois de o governo central ter anunciado a decisão de construir a Nova Área de Xiong'an. Simon Song/South China Morning/Getty Images

“Um significado de mil anos”

Xiong'an é amplamente vista como a resposta de Xi ao movimentado centro tecnológico costeiro de Shenzhen, ligado ao antigo líder Deng Xiaoping, e ao brilhante centro financeiro da Nova Área de Pudong, em Xangai, liderado por outro antecessor, Jiang Zemin.

Mas a sua altitude relativamente baixa e as extensas zonas húmidas já tinham suscitado preocupações quanto aos riscos de inundação em 2017, quando o governo central anunciou o plano para a cidade.

Na altura, os peritos que avaliaram o ambiente da zona concluíram que, se a população atingisse os cinco milhões de habitantes, até metade das zonas urbanizadas da Nova Área de Xiong'an estaria em risco no caso de uma inundação das que ocorrem a cada 100 anos.

“A Nova Área tem uma vantagem óbvia em termos de localização, recursos terrestres ricos, embora existam alguns problemas relacionados com a escassez de recursos hídricos, poluição grave das águas superficiais e uma elevada taxa de risco de catástrofes de inundação”, escreveram os peritos numa avaliação publicada pela Academia Chinesa de Ciências.

Mas o proeminente engenheiro e político Xu Kuangdi, antigo presidente da Câmara de Xangai que liderou um grupo de especialistas num trabalho sobre o desenvolvimento de Hebei, Tianjin e Pequim, minimizou as preocupações com as inundações.

Xu apontou outras razões para a escolha do local, incluindo a filosofia tradicional chinesa e o significado nacional das zonas húmidas como local de luta de guerrilha contra as forças invasoras japonesas durante a Segunda Guerra Mundial, de acordo com comentários seus divulgados na altura pelos meios de comunicação estatais.

No entanto, a nova cidade está equipada com defesas largamente superiores às dos seus vizinhos. Entre elas, incluem-se infraestruturas para resistir a inundações de uma intensidade que só poderá ocorrer uma vez em cada 200 anos, bem como características de “cidade esponja”, como superfícies urbanas permeáveis que podem absorver a água, de acordo com relatórios e planos disponíveis online.

Alguns edifícios de escritórios em Xiong'an terminaram a construção, incluindo o Centro de Computação Urbana, que está aberto aos visitantes. Yi Haifei/Serviço de Notícias da China/VCG/Getty Images

A construção da cidade, que pretende ser mais verde do que Pequim e apoiar a restauração das zonas húmidas de Baiyangdian, tem ecos de outros ambiciosos projetos chineses - como a Barragem das Três Gargantas - que recorreram à engenharia em grande escala para contornar desafios naturais.

No que diz respeito a Xiong'an, existe na China a ideia de que “se conseguirmos construir uma cidade aqui, podemos mostrar que é possível urbanizar e melhorar o ambiente natural ao mesmo tempo”, disse Andrew Stokols, um doutorando do MIT que está a investigar o planeamento urbano na área.

Mas é provável que os riscos de inundação em Xiong'an - e talvez, por extensão, na região circundante - só aumentem à medida que a área se desenvolve para satisfazer a visão de Xi de se tornar uma “cidade moderna” até 2035.

Os especialistas afirmam que o aumento da população e o desenvolvimento económico podem agravar esse risco, tal como as alterações climáticas, que tornam as condições meteorológicas extremas mais frequentes, intensas e imprevisíveis.

Desta vez, porém, mesmo quando as aldeias a norte e a leste de Xiong'an continuavam inundadas  - com alguns residentes a enfrentar um cenário de algumas semanas antes de poderem regressar a casa -, o governo da Nova Área de Xiong'an publicou na semana passada um artigo a apregoar o regresso à normalidade.

As fotografias coloridas mostram as famílias a passear nos parques e a “chover” transpiração no ginásio, bem como trabalhadores da construção civil a voltarem a trabalhar na construção da nova cidade.

“O trabalho e a vida das pessoas estão gradualmente a recuperar”, concluía o artigo.

 

 

Vista aérea mostra uma aldeia inundada em Zhuozhou, após as fortes chuvas de 2 de agosto. Foto Jade Gao/AFP/Getty Images

 

 

 

Berry Wang, da CNN, contribuiu para esta reportagem.

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