Ali há algas penduradas, há conchas nas portas e cabeças de bacalhau a sair das paredes. Há dezenas de pessoas, as mais talentosas da sua área, a trabalharem para um bem comum numa paisagem que, para os mais despercebidos, nem parece de uma capital. Ali é o Noma.
Vira-se à direita, há três pessoas à espera quase ao pé da estrada. Chegamos àquele que muitos dizem ser o melhor restaurante de sempre, e que vai fechar portas em 2025, quando terminar a última temporada dedicada ao mar. Antes disso tivemos oportunidade de lá chegar – fomos um dos poucos sortudos que no dia 16 de outubro conseguiram arranjar lugar num dos restaurantes mais procurados do mundo.
Quem vê três pessoas à porta e não souber o que se passa também não vai perceber. Há três estufas pequenas, uma entrada decorada e um lago onde passeiam cisnes. Ao fundo a paisagem é dominada por uma central de biomassa que é vista de quase todos os sítios de Copenhaga; está frio, mesmo no final de março. Por isso mesmo a receção faz-se numa das estufas, a primeira, com um chá quente de ervas e uma lareira acolhedora onde acaba de entrar mais um tronco para aquecer algumas das 84 pessoas que por ali vão passar entre as 11:30 e as 16:30.
Somos bem-vindos, dizem-nos, sempre com um olhar que mistura humildade e consciência de que quem ali entra vai à espera de uma das melhores experiências de sempre. Vai ser sempre assim: entre a simplicidade de um restaurante que dificilmente é dos melhores à primeira vista e a boa arrogância de quem serve e sabe bem o desafio que tem.
Mergulhemos no fundo do mar.
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Sabor? YES!
Passamos uma porta feita num dia de inverno com base em conchas de ostras apanhadas em Vesterhavet (no oeste da Dinamarca) e somos recebidos por toda a equipa. O serviço já está em andamento, mas cada um pára o que está a fazer e juntam-se todos para dar as boas-vindas. Dos 76 que trabalham para o restaurante – incluindo o cão, Ponzu, que guarda o jardim – estão ali 62 funcionários.
Passamos uma sala feita com madeira dinamarquesa onde há breves toques marítimos: conchas coladas em pilares, algas a cair do teto ou quadros com alforrecas em texturas. Pelo caminho deixámos René Redzepi (o chef) e a equipa, que voltaram ao que estavam a fazer.
O restaurante já está composto – chegámos às 12:15 mas somos dos últimos (come-se cedo por aqui). À espera na mesa estão algumas das pistas do que aí vem: num prato há mexilhões, amêijoas dinamarquesas, ouriços-do-mar, um lagostim e vieiras. Ao meio há um pepino-do-mar que se contorce (ainda está vivo!) e ao fundo um prato com inúmeras algas e uma cabeça de bacalhau. Ali não é um peixe muito tradicional, conta-nos um dos empregados, que até já passou férias na Ericeira com um dos colegas com quem trabalha. Por isso só utilizam a cabeça e as ovas.
O serviço anda quase ao mesmo ritmo para todos os que estão a almoçar. Uns chegaram mais cedo, mas está praticamente tudo alinhavado para que a cozinha consiga ir preparando tudo de forma harmoniosa.
Já há pratos a sair e facilmente se notam os tais sinais despretensiosos de quem só está interessado numa coisa: servir sabor. Não há toalhas na mesa, os empregados não usam gravata e a equipa de cozinha está praticamente no meio da sala. Nos melhores restaurantes de Lisboa seria impossível este cenário. Impossível sentarmos numa mesa sem toalha na Varanda do Ritz ou no Belcanto.
Saem o marisco e o peixe para começar a dança. Do fundo ouve-se, pela primeira vez, algo que dificilmente um cliente vê num restaurante, mas que era prática há uns anos e deixa um cheiro aos tempos de Marco Pierre White. “Yes, chef!”, gritam, em uníssono, todos os cozinheiros do espaço. Olhamos à primeira, à segunda, e a partir daí já faz parte da magia. O maestro René Redzepi quer ovuir os músicos afinados. E tem-nos.
Esta quase arrogância explica-se facilmente: é que René Redzepi consegue liderar uma equipa que transporta para o prato o que quase ninguém consegue fazer. Há refeições divinais de 20 pratos que não colocam metade da intensidade de cada um dos 14 momentos que nos chegam.
Sabor é mesmo a palavra que fica da experiência em Copenhaga. É que cada dentada é como uma nota musical perfeita ou uma pincelada de um quadro. É para apreciar a cada segundo, porque uma colher traz sempre uma descoberta.
Nem é que o prato seja inevitavelmente bom, porque não o é, pelo menos para todos os paladares, mas é certamente diferente de tudo o que já provámos ou colocámos os olhos, elevando a níveis nunca vistos o sabor e a técnica ao seu serviço. É como pensar nas melhores coisas: nem todos gostamos de trufa, caviar ou champagne, mas reconhecemos a intensidade e o caráter único que demonstram, o que os torna ainda mais especiais para quem gosta.
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O sabor da técnica
Um grande molho disfarça um prato ao ponto de ele ficar muito bom. Mas é um grande produto que o torna divinal e único. É esse casamento que René Redzepi consegue fazer como poucos.
A um lagostim da Noruega junta-se molho de frutos vermelhos e bergamota para chegar ao céu e de nunca lá mais sair. É o início da refeição com um prato típico do Noma, em que vem mesmo tudo para a mesa, incluindo partes do animal que não são comestíveis.
Como um peito de pato assado que tinha as asas, o lagostim chega com a cabeça, onde vem servido o molho, e alinhado como se ainda estivesse intacto, pata por pata.
É o primeiro momento, mas percebe-se logo: cada garfada é revestida de um punch de sabor. Temos de parar para perceber, até porque há diferentes combinações: o lagostim na sua forma mais crua, o lagostim com os frutos vermelhos ou o lagostim com a bergamota. Cada um é um prato único na sua essência. Para finalizar o primeiro momento algo estranhamente bom: pedem-nos que bebamos uma taça de onde saem inúmeras algas. De lá de dentro vem uma golfada de mar inexplicável.
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Recuemos 24 séculos
Qual é o melhor prato que já comemos na vida? Será que conseguimos dizer? Os cozinhados dos pais ou dos avós são especiais, claro, mas quando estamos fora de casa, há algum que já nos tocou? Mesmo conhecendo muitos restaurantes de topo, não é tão fácil assim destacar pratos únicos. De experiências passadas havia o cherne com espuma de bolhão pato da Varanda do Ritz, o atum com ananás do Largo do Paço ou o wagyu do DiverXO. Haverá muitos mais se fizermos um esforço para recordar.
Mas do Noma há, pelo menos, três pratos que entram diretamente para o topo. É curioso, porque nenhum deles parece especialmente complexo. Não têm inúmeros elementos, mas rebentam de sabor.
Um deles vem logo a seguir ao lagostim e é tão simples como isto: quatro folhas de alga em molho francês de camarão. É mesmo “só” isto, mas é ridiculamente bom. Produto e técnica a elevarem produtos simples ao Olimpo.
Técnica há, e muita, noutro desses pratos. E nem é uma técnica recente, bem pelo contrário. Sabe o que é Koji? Poucos sabiam, incluindo entre a mais alta culinária, até há pouco tempo, quando esta técnica começou a ser cada vez mais utilizada.
A explicação está longe de ser prazerosa. Afinal o Koji é um fungo com filamentos, mas que os orientais, nomeadamente os chineses e os japoneses, utilizam desde o século III A. C. para produzir alimentos, nomeadamente soja, arroz ou outros cereais.
Os asiáticos sentiram essa necessidade porque é difícil fazer crescer alguns cereais nos seus países. O mesmo se passa na Dinamarca, país altamente dominado pelo mar, onde o cultivo é complicado, nomeadamente em Copenhaga, onde água doce é coisa que não existe.
René Redzepi pegou no Koji e aplicou-o à cevada, permitindo assim que ela crescesse de forma natural enquanto ganhava muito mais sabor do que se tivesse sido apenas comprada. Uma espécia de barra deste cereal grelhado serve como base para finas tiras de lula crua que resultam em algo do outro mundo.
À mesa, e para que não nos enganemos, trazem o tabuleiro onde foi feito este Koji. Pelo meio de uma espécie de pó esbranquiçado (literalmente bolor) há pequenos grãos a sair (a cevada que vai parar ao nosso prato).
Waffle de ovas de bacalhau. Estranho? Um bocado. É o terceiro prato dos garantidamente inolvidáveis. A base é uma folha de wasabi, por cima há ovas de bacalhau e frutos secos. Altamente simples, altamente saboroso.
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Se calhar não comia isto
Sabe o que é um SCOBY? E Kombucha? O segundo resulta do primeiro, mas é mesmo a cultura simbiótica de bactérias e leveduras (SCOBY, na sigla original), que consiste na fermentação de bactérias do ácido lático, bactérias do ácido acético e leveduras.
Normalmente fazem-se alimentos ou bebidas a partir disto, como a Kombucha, mas René Redzepi foi mais longe. Porque não fazer de um SCOBY o prato principal.
Esse foi o desafio que a vasta equipa de investigação (são oito pessoas no laboratório de fermentação e outras cinco na cozinha de testes) conseguiu alcançar.
A partir daí não podia ficar mais estranho, mas a cozinha ainda adiciona uma proteína no mínimo peculiar. Lembra-se do alimento que veio para a mesa a contorcer-se? Esse mesmo, o pepino-do-mar, com pequenos filamentos. Se alguma dúvida houvesse, o prato diz tudo: pepino-do-mar com SCOBY.
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Bacalhau? Só comemos a cabeça
"Aqui só comemos a cabeça e as ovas do bacalhau", dizem-nos, antes de apresentar um dos vários pratos com um peixe tão típico da culinária portuguesa e que abunda bem perto da Dinamarca, mas ao qual os dinamarqueses não ligam muito.
E é mesmo assim: dos dois pratos com bacalhau, os que nos serviram foi cabeça, ovas, garganta e língua.
Nas redes sociais ainda "assustam" os clientes. Dizem que é um olho de bacalhau que está no meio daquilo a que o chef decidiu chamar "tarte de olho". Afinal não, é antes um mexilhão no meio de várias ovas, mas parece mesmo um olho de bacalhau. E até tem partes do olho, mas que são apenas cozinhadas em manteiga para depois servir em molho.
Ao lado há um bacalhau de boca aberta. Dentro está uma espinha gigante com língua de bacalhau. Espetacular.
Seguem-se duas formas diferentes da garganta do bacalhau. Sim. Uma delas mais clássica, com muito molho e cebolinho, outra delas para comer precisamente a partir da espinha da garganta do peixe.
Chega com um sabor fumado, e para terminar há uma folha que cresce no meio do mato, é possível vê-la em Copenhaga nos campos, nomeadamente naqueles que rondam o Noma. É servida apenas grelhada, mas é uma ótima transição entre pratos.
Ainda no peixe, e como que a mimetizar aquilo que seria um prato de carne no fim de um menu tradicional, há uma espetada de lota-do-rio, um peixe pouco comum mas que chega com uma suculência brutal, como se de um bife se tratasse, tal a corpulência e a intensidade.
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O mar à mesa
Não, não vamos comer pedras. Mas é isso que parece. Quando o "mexilhão azul e beterrabas douradas" chega à mesa é confuso.
É um cesto feito de algas que parecem uma manjedoura a aconchegar apenas uma pedra. Dá-se um espaço para respirar e para instalar mais a confusão.
Só aí nos dizem para levantar a pedra. E de lá, a abrir-se lentamente, sai um mexilhão em tons laranja e amarelo. Trata-se de um mexilhão bem grande - cabe na palma da mão - e que vem enrolado em beterraba dourada, um dos muitos hortícolas e frutos produzidos com carinho para a cozinha do Noma.
Diretas do aquário que era visível à entrada vêm vieiras. São mantidas vivas até minutos antes de virem para o prato, apenas com uma flor de sal e um molho muito simples.
Um prato majestoso e elegante, que é literalmente uma vieira, mas no seu expoente de sabor. O nome do prato diz tudo: "vieira pescada à mão".
Bem antes disto houve espaço para um dos reis do mar quando se fala de alta cozinha. O ouriço-do-mar é um produto altamente estranho. Não cheira particularmente bem e, mesmo cozinhado, nem sempre fica bem. Não é, de todo, um paladar consensual.
Mas René Redzepi e a sua equipa conseguem transformá-lo, juntando finas raspas de avelã, em algo transcendente.
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Há ostras e caviar? Apetece-me um doce
Algas, caviar e avelã. Dificilmente isto parece uma sobremesa, mas é mesmo. E das melhores.
É uma tendência que se começa a ver na alta cozinha, colocar caviar em sobremesas. No Noma isso é elevado a outro nível, com uma combinação de sabores absurda, naturalmente no bom sentido.
Por falar em coisas estranhas, apresentam-nos uma concha de ostra. Estranho a dobrar: é que é suposto comer tudo e, afinal, não sabe a ostra. De resto, ostra, só mesmo no nome do prato (ostra doce).
É, afinal, uma massa doce com um gel que explode por dentro. Cada uma das "conchas" servidas na mesa é cuidadosa e meticulosamente pintada à mão na pastelaria do restaurante. Isto 84 vezes por refeição.
Por último chega uma espetada com um croissant (?). Não é bem. É antes um snobrød, um pão típico da culinária dinamarquesa.
Normalmente consiste num pão assado em lume de fogueira, que depois é colocado num espeto feito com o ramo de uma planta.
A massa chega em forma cilíndrica, quase como se fosse uma salsicha. Até aqui tudo igual, mas René Redzepi dá um twist doce. Afinal o snobrød é uma massa folhada e funciona quase como um croissant que se deve comer com a geleia que vem ao lado. Uma mistura entre duas especialidades da Dinamarca, que também é conhecida pela pastelaria de excelência.
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Uma viagem pelo mundo com passagem por Portugal
Camisolas autografadas por Cristiano Ronaldo, Lionel Messi e Erling Haaland, livros e mais livros, recordações de viagens de equipa ao Japão ou ao México.
Dentro da cozinha do Noma encontramos todos os anos de vida do restaurante, que completou duas décadas de existência em 2023.
Miko Klages, um sul-africano que está no restaurante desde 2022, faz-nos uma tour ao espaço, mostrando desde a cozinha até à sala onde o chef René Redzepi já prepara o próximo serviço, enquanto aproveita para comer alguma coisa na sala onde todo o staff come.
Aí chegados já passámos por Mario Fu, um cozinheiro chinês que desde 2022 lidera o laboratório de fermentação do Noma, um dos grandes projetos do restaurante e o que o torna tão distinto. Ali experimentam-se, diariamente, as mais variadas coisas.
A fermentação é um dos grandes trunfos do restaurante. Hoje já é comum nas melhores cozinhas do mundo, mas René Redzepi pensou à frente quando decidiu lançar o seu laboratório. E tudo com três objetivos: "sabores arriscados", "reduzir o desperdício alimentar" e "promover a saúde".
É a meio desta viagem, quando vamos buscar os casacos, que Myko nos conta que esteve em Portugal recentemente. Foi na altura dos Santos, e até deu para dar um salto à Ericeira.
Com ele foi Jeppe Jung, um jovem dinamarquês que serve no Noma desde 2020. Os dois contam-nos que adoraram Portugal, sobretudo a vida boémia. Das várias aventuras gastronómicas destacam uma: o Prado de António Galapito.
Vê-se de tudo neste passeio, até uma taça a premiar a melhor equipa de futebol de restaurantes fine dining. Mas há duas coisas que, curiosamente, é preciso procurar para encontrar: a placa a assinalar as três estrelas Michelin (a distinção máxima do guia) e a placa a consagrar o Noma como um melhores restaurantes de sempre para o website World's 50 Best.
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Como poucos, ou como nenhum
"É difícil imaginar o mundo da culinária sem o Noma. Quando abriu em 2003, a ideia era desafiar o Mundo Antigo da gastronomia e celebrar os ingredientes nórdicos". Isto é o que se pode ler na abertura da review feita pelo website World's 50 Best sobre o Noma.
Esta publicação, que todos os anos distingue os melhores restaurantes do mundo, colocou o Noma no topo por cinco vezes. Primeiro em 2010, 2011, 2012 e 2014 e depois, com a reabertura do projeto, em 2021.
Apesar de ser a mesma equipa, a World's 50 Best fez questão de distinguir as duas fases: "Dadas as diferenças fundamentais do Noma original, com muitos a chamarem-lhe Noma 2.0, tornou-se novamente elegível para a lista", pode ler-se. E foi aí, em 2021, que a publicação decidiu que não fazia sentido continuar a colocar o Noma, como outros restaurantes, na lista anual, que na última edição tem o Belcanto, de José Avillez, entre os 25 melhores.
Criou-se então a lista Melhores dos Melhores, mas a World's 50 Best é clara: o Noma está a um nível tal que só poderá ser comparado, eventualmente, com o El Bulli, de Ferrán Adriá.
A saber, além do Noma figuram ainda outros oito restaurantes na lista: El Bulli (entretanto fechado), The French Laundry, The Fat Dack, El Celler de Can Roca, Osteria Francescana, Eleven Madison Park, Mirazur e Geranium. A partir do ano passado o restaurante que é eleito como o melhor do mundo passa a ser incluído nesta lista.
O Noma é de tal forma popular que foi mesmo o palco de inspiração para a série "The Bear", uma das mais aclamadas dos últimos anos.
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O que se segue
O Noma como o conhecemos fecha em 2025, depois de uma última temporada de mar. René Redzepi já anunciou o Noma 3.0, mas não é claro o que vem aí, sendo apenas certo que não será um restaurante, pelo menos não na sua forma mais tradicional.
"Em 2025 o nosso restaurante vai transformar-se num laboratório gigante, uma cozinha de teste pioneira para dedicação à inovação alimentar e desenvolver novos sabores, os quais vamos partilhar ainda mais amplamente que antes", está escrito no website do restaurante, que promete novas formas de continuar a servir os clientes, mas sem esclarecer quais serão.
"Para continuarmos a ser Noma, temos de mudar", escreve a equipa.