Um "museu vivo" com "senso de comunidade" e "sem hierarquia": assim vivem os estudantes desta república em Coimbra

Um "museu vivo" com "senso de comunidade" e "sem hierarquia": assim vivem os estudantes desta república em Coimbra

REPORTAGEM 
JOANA MOSER SOFIA MARVÃO 

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JOANA MOSER

VÍDEO 
SOFIA MARVÃO 
 

Em Coimbra muitos jovens procuram as Repúblicas como solução para a crise de habitação. Outros somente pelo senso de comunidade. A CNN Portugal visitou a República dos Corsários das Ilhas, a mais emblemática de Coimbra, onde nos permitimos viajar no tempo, mas os assuntos que se discutem são do ano em que vivemos.

Sala de jantar da República dos Corsários

É uma casa irreverente, onde cada canto conta uma história. Há receitas inscritas nas paredes da cozinha - conhecida como “gaiola de ferro” por não ter rede - cartas penduradas de visitantes, um disco perdido de Carlos do Carmo e vários grafitis, como o monograma anarquista do A circulado, frequentemente associado ao caos. Este símbolo representa parte da citação de Pierre-Joseph Proudhon, filósofo francês: “A sociedade busca a ordem na anarquia”. E é assim que se vive na República dos Corsários das Ilhas: entre objetos deixados por quem ali viveu, à desarrumação de quem ainda vive. “Nós não somos uma casa hierárquica”, conta Mariana Ferreiro, 21 anos, uma das sete moradoras. Não é por acaso que são uma casa anti-praxe. “As pessoas da praxe podem entrar, mas não podem estar de batina”, afirma.

Aliás, todas as tarefas de casa e jantares são partilhadas, cada um faz um jantar por semana para todos. “Há um sentimento de comunidade”. É uma casa cheia de vida, visível pela chávena de café, o copo de cerveja, a garrafa de vinho vazia, os cinzeiros de barro e os restos de cinzas que estão em cima de uma ampla mesa de madeira onde nos sentamos. À nossa volta preservam-se memórias desde 1956, estamos na sala de jantar de uma das repúblicas mais emblemáticas de Coimbra.

Numa das paredes da sala de jantar há um painel pintado por vários estudantes que ali residiram

Só na mesma rua estão seis das 24 repúblicas ainda em funcionamento naquela cidade. Todos os que ali passam, inclusive turistas, param para admirar o muro da casa e o mural pintado na parede que é partilhada com os vizinhos, a Real República dos Galifões. Foi também esse mural que nos levou a bater à porta dos Corsários. É impossível ficar indiferente às mensagens e pinturas a vermelho, preto e cinzento que mostram os acontecimentos que decorreram durante várias crises. Destacam-se frases alusivas à revolução do 25 de Abril, como “fascismo nunca mais”. E ainda apelos à “democratização do ensino”, ao “fim das propinas, do roubo e da impunidade”, “à justiça social”, aos “direitos dos trabalhadores" e à “habitação”.

  • Mural partilhado entre a República dos Corsários e a Real República dos Galifões
    Mural partilhado entre a República dos Corsários e a Real República dos Galifões
  • A República foi fundada por "piratas", a maioria vindos dos Açores
    A República foi fundada por "piratas", a maioria vindos dos Açores
  • Parte do mural pintado pelos estudantes
    Parte do mural pintado pelos estudantes
  • Mensagens alusivas à revolução do 25 de Abril na lateral da casa
    Mensagens alusivas à revolução do 25 de Abril na lateral da casa
  • Estudantes protestam o pagamento de propinas
    Estudantes protestam o pagamento de propinas
  • Decorações do pequeno jardim no pátio da casa
    Decorações do pequeno jardim no pátio da casa
  • Fotografia de aproximação do mural
    Fotografia de aproximação do mural
  • Outra mensagem deixada pelos estudantes universitários
    Outra mensagem deixada pelos estudantes universitários
  • Mensagem à esquerda do portão de entrada da casa
    Mensagem à esquerda do portão de entrada da casa

Já desde pequena que Mariana frequentava a República, uma vez que os seus irmãos também ali viveram. Atualmente, são chamados de “antigos”. Assim, enquanto irmã de “antigos”, Mariana sonhava viver naquela casa. Agora paga 54 euros de renda numa rústica moradia com nove assoalhadas, sendo que cinco delas são quartos. Os restantes custos, de alimentação, água e eletricidade são feitos à parte, mas também são partilhados entre os sete residentes. O valor ronda, portanto, os 150 euros por pessoa, e no inverno aumenta 20 euros devido ao aquecimento. Em comparação com os restantes alunos da Universidade de Coimbra que vivem nas residências e partilham quartos com três pessoas, estes jovens têm “o melhor dos dois mundos: privacidade e convivência em comunidade”.

O residente mais novo é Roque, tem 19 anos e a mais velha, Alexandra, tem 39. Esta última, agora qualificada como “antiga”, já tinha vivido na casa em 2006. “É diferente”, suspira. “Coimbra está diferente”. Alexandra regressou à casa para fazer um mestrado em Antropologia, Globalização e Alterações Climáticas. Conta que há menos convívio entre os alunos e culpa o covid-19. Lembra que aquela rua “costumava encher-se de gente ao final do dia”. Para além dos custos reduzidos, foram as memórias dos tempos que ali viveu que a fizeram voltar. Não se arrepende, mas sente saudade dos hábitos de outrora. “As tarefas também eram definidas, mas havia uma hierarquia na casa”. Algo que agora não há, garante novamente Mariana, apontando para António, que é o membro mais recente da casa: “A opinião dele vale tanto como a minha”.

Juntamente com Mariana (à direita), foi António Soares (à esquerda), 20 anos, quem nos abriu a porta para a sua comunidade, levando-nos a conhecer todos os cantos da casa e a descobrir como vivem. O principal é que viver ali “implica um compromisso com o espírito comunitário”. “Nós ajustamos-nos aos horários uns dos outros”, diz o jovem, que sabe que de manhã o mais provável é que a casa de banho esteja ocupada, por isso prefere tomar banho mais tarde. 

“Eu sempre estive habituada a casas cheias de gente, casas com movimento”, intervém Mariana, assumida apreciadora do modo de viver na República. Nem todos conseguem viver naquele caos, por isso o primeiro mês serve de experiência, “não há um processo muito elaborado ou burocrático”, diz. “Qualquer pessoa pode entrar e conhecer a República, foi assim que o António acabou por vir viver para cá”. António visitou a República dos Corsários num dia aberto, onde acabou por se dar tão bem com quem lá vivia que lhe perguntaram se se queria mudar. “Não renovamos a geração todos os anos, é orgânico. A pessoa entra e sai”, desenvolve Mariana, contando que os quartos vão vagando. Aliás, a própria já viveu noutra república, a Real República do Espreito ao Furo. “Era um antigo bordel nos anos 30, até que o senhorio vendeu a casa a outro senhor que a alugou a estudantes”, conta a jovem, que gostou da experiência de viver naquela casa por ser mais sossegada. No entanto, a localização não é tão boa.

A Real República dos Corsários das Ilhas tem um cariz comunitário cultural de partilha e solidariedade entre jovens de todo o mundo. Agora, vive um casal estrangeiro que Mariana já oficializou enquanto corsários. Ela é italiana, ele é turco. Esta é uma casa diversificada que preserva memórias como se fosse um “museu vivo”.

  • Quarto de António Soares
    Quarto de António Soares
  • Quarto de Mariana Ferreiro
    Quarto de Mariana Ferreiro
  • Casa de banho partilhada por todos os residentes. Tem um buraco no teto por onde entra frio, e serve também de lavandaria
    Casa de banho partilhada por todos os residentes. Tem um buraco no teto por onde entra frio, e serve também de lavandaria
  • Porta do quarto de outro residente
    Porta do quarto de outro residente
  • Cartolas dos "antigos" que por ali passaram
    Cartolas dos "antigos" que por ali passaram
  • Sala de jantar e cozinha
    Sala de jantar e cozinha
  • A dispensa da "gaiola de ferro"
    A dispensa da "gaiola de ferro"
  • Pastas de antigos residentes da casa
    Pastas de antigos residentes da casa
  • Banco de roupa: qualquer pessoa que passe pela casa e precisar pode tirar peças de roupa que precise
    Banco de roupa: qualquer pessoa que passe pela casa e precisar pode tirar peças de roupa que precise
  • Casa de banho do piso de cima
    Casa de banho do piso de cima
  • Receita inscrita na parede da cozinha
    Receita inscrita na parede da cozinha

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"Um ano de vida na República equivale a 100 anos de experiência de vida"

Por trás do caos ali vivido, há uma história de 1956 que impõe respeito a todos os que por ali passaram. Mariana é uma das pessoas que vivem na república há mais tempo. “A história desta casa passa de geração em geração”, conta deslumbrada. Foi fundada por 11 estudantes, maioritariamente açorianos, daí o nome Corsários das Ilhas. “Um corsário é como um pirata contratado pelo Estado”. Começou por ser uma casa comunitária em 1956, e só quando os seus vizinhos, os “Galifões”, os “apadrinharam” em 1958 é que se tornaram República. Mariana explica que para uma casa ganhar esta qualificação é preciso “o consentimento de todas as repúblicas existentes e do reitor da universidade”. Assim que o reitor deu o sim tornaram-se oficialmente república. “E estamos aqui até hoje”, afirma, sorridente e com orgulho, a estudante de enfermagem.

Mas não basta que haja consentimento, é preciso cumprir determinados critérios reunidos “numa papelada que temos p'raí”, continua António. São os estatutos, desenvolve a colega de casa, citando alguns requisitos: “ter cozinha própria, ter habitantes, quartos suficientes”. O estatuto de república não existe na lei portuguesa, é oriundo de “uma ‘lei’ da Universidade de Coimbra”. 

Nos seus 68 anos de viagens, a “nau corsária” já acolheu diversos alunos, registados em três livros antigos, guardados no “museu” - uma divisão da casa com um armário de madeira e portas de vidro, onde estão vários objetos oferecidos e mantidos ao longo dos anos. Por esta “nau”, passou Carlos Candal, antigo eurodeputado socialista e Carlos Fraião, ex-membro do Comité Central do Partido Comunista Português (PCP). Também Germano de Sousa, ex-Bastonário da Ordem dos Médicos, e Cristóvão de Aguiar, escritor açoriano, viveram nesta República. 

Alguns objetos mais antigos são guardados numa divisão à qual chamam de "museu"

Entre os 11 fundadores da República, o único que não veio dos Açores foi José Alçada, que veio do Porto. Alçada só saiu da casa para se casar e é o único que ainda está vivo. “Todos os anos vem ao centenário e traz porco no espeto”, revela Mariana, acrescentando que se tornou oficialmente “corsária” quando José Alçada assim o determinou. O centenário é um evento que celebra o aniversário de uma república e “liga as gerações passadas às futuras”. Dizia-se que “um ano de vida na república equivale a 100 anos de experiência de vida”, e por essa razão se chama centenário. “Enviamos uma carta, mandamos email e ligamos a todos os antigos que aqui viveram para que possam estar presentes”, diz. É o evento do ano.

Cartas deixadas por visitantes da casa

Nem todos os que lá vivem se tornam imediatamente corsários, é preciso que alguém que já o seja os aprove como tal e cumpra a tradição de inscrever a pessoa no anuário. Tal como José Alçada fez por Mariana Ferreiro.

A República dos Kágados é a mais antiga, é de 1933. Mas a origem histórica das Repúblicas remonta ao séc. XIV, quando dom Dinis, por diploma régio de 1309, promoveu a construção de casas na zona Almedina, a mais alta da cidade de Coimbra, que deveriam ser habitadas por estudantes. Segundo a lei portuguesa, as Repúblicas são consideradas associações sem personalidade jurídica. A Associação Real República dos Corsários das Ilhas foi reconhecida em 2021 como “entidade de interesse histórico e cultural”.

Para além dos residentes, a República tem a tradição de acolher os comensais. Estes são jovens que também pertencem à casa, mas que apenas a utilizam. Por mês, pagam 35 euros e podem tomar banho e fazer refeições. "Só não têm um quarto", explica Mariana. Atualmente, os Corsários acolhem sete comensais. 

O teto da biblioteca é datado do séc. XVIII e tem influências ibero-muçulmanas

Uma das assoalhadas da casa, e a mais prestigiada, é a biblioteca. No último piso, esta República guarda uma relíquia do séc. XVIII. É considerado património nacional por isso, apesar de estar a deteriorar-se, os jovens não podem tentar arranjar. "Somos nós que arranjamos tudo o que se estraga na casa", conta António, explicando que o exemplar de arte mudéjar é a única exceção. É também na biblioteca que os estudantes guardam vários dos presentes dos "antigos" que lá passam. Pela casa penduram também cartas deixadas por convidados que quando precisaram de abrigo foram acolhidos pelos "corsários". 

A biblioteca da República dos Corsários é a divisão mais prestigiada da casa
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