Têm lugar na bancada, mas não têm casa para viver, como muitos portugueses. Os novos deputados também vivem em quartos e procuram "soluções em conjunto"
Hemiciclo

Têm lugar na bancada, mas não têm casa para viver, como muitos portugueses. Os novos deputados também vivem em quartos e procuram "soluções em conjunto"

REPORTAGEM 
SOFIA MARVÃO 

VÍDEO E FOTOGRAFIA
SOFIA MARVÃO 

A nova disposição da Assembleia da República foi apresentada, com 99 rostos novos no hemiciclo. No meio do "nervosismo" e dos corredores traiçoeiros, há ainda um problema que chega ao Parlamento: a crise habitacional

Faltam 15 minutos para as 10:00 e nos corredores do Palácio de São Bento faz-se sentir um frenesim semelhante ao primeiro dia de aulas. Aliás, para muitos não está longe disso, uma vez quase metade dos deputados deste novo Parlamento são estreantes, 99 para sermos mais exatos. É o caso de Jorge Pinto, 36 anos, que chega à Assembleia da República pela primeira vez à boleia do Livre.

Natural de Amarante, apresenta-se como candidato pelo círculo eleitoral do Porto e conta que vai abandonar Bruxelas após 11 anos, onde residia com a namorada e trabalhava na área do ambiente. A parceira por lá ficou, mas aguarda “luz verde” para se juntarem muito em breve, em Lisboa. E o que é que falta? “Uma casa", risos. "De preferência aqui perto e com acesso a transportes públicos. Entretanto, vai ficando hospedado em casa de uma amiga e nos fins de semana regressa ao norte.

Encontramo-lo visivelmente atarefado ao lado de Tomás Cardoso Pereira, chefe de gabinete do Livre. Acordou com “aquela ânsia que se sente antes de ingressar numa escola nova”, admite. A “casa da República” fascina-o, descreve-se como “um republicano” a viver “uma experiência bastante única”. “A primeira vez que nos sentamos no hemiciclo é uma sensação de muito peso, muita responsabilidade. Para quem já lá se sentava e para aqueles que são o futuro.”

Jorge Pinto veio de Bruxelas para se juntar ao Livre no Parlamento, mas procura casa para si e para a sua companheira

Chegou domingo à capital portuguesa, que só conhecia como turista, e passou esta segunda-feira a visitar “apartamentos de amigos ou de amigos de amigos”. Os valores, ainda que “relativamente acessíveis” nestes casos, considera-os “muito mais altos do que aquilo que eram há 10 anos”, mais até do que em Bruxelas. Outro problema apontado por si é a “quase entrevista de emprego” necessária para arrendar um espaço, por vezes a quase dois mil euros. “As diferenças salariais entre uma cidade e outra mostram um enorme problema aqui em Portugal”, observa. “Acredito que para muitos deputados que acham que não há um problema de habitação sério e que não são precisas medidas muito sérias para combater, esta procura vai fazer com que abram os olhos.”

A crise na habitação – um dos temas mais preponderantes na última legislatura – já atinge os próprios deputados, nomeadamente aqueles que acabam de chegar a Lisboa.

Rita Matias, 25 anos, que agora perde o lugar de “deputada mais nova do Chega” para a colega Madalena Cordeiro, de 20, dá conta de que algumas residências e hotéis perto da Assembleia da República acolhem deputados de todos os partidos, através de acordos, a preços mais razoáveis. “Mas alguns já estão a tentar ter soluções de habitação em conjunto, e não são só os jovens”, conta. “São mesmo as mães de família que se juntam em casas partilhadas e os valores são os que qualquer cidadão comum enfrenta.”  

É por essa mesma razão que Rodrigo Taxa, de 35 anos e recém-chegado à bancada de André Ventura, opta por viajar entre Santarém e Lisboa de carro, diariamente. Valoriza demasiado do seu distrito para abrir mão dele em troca de uma opção mais cara em Lisboa. Se a viagem fica cara? "Claro, mas comparando ao que teria de gastar numa habitação com condições, fica ela por ela", explica. Além disso, conduzir cerca de 100 quilómetros, para lá e para cá, não representa um problema para si. "Eu até gosto, por isso nada se vai alterar", afiança.

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"Viver num hotel é que não"

No segundo piso, onde se encontra a famosa sala das sessões, membros das bancadas parlamentares, dirigentes políticos, assessores, jornalistas e até museólogos que por ali conduzem as suas visitas percorrem, de trás para a frente, as passadeiras de veludo avermelhado que caracterizam aquele edifício. “Acolhimento aos deputados” lê-se à entrada da biblioteca e em sacos de tecido distribuídos pelos presentes.

Abram alas, a primeira sessão plenária da XVI legislatura vai começar. Luís Montenegro surge de rompante no corredor, rodeado pela sua comitiva. Segue-se, igualmente aparatoso, Pedro Nuno Santos, depois de Mariana Mortágua e antes de Paulo Raimundo. A bloquista Marisa Matias e o social-democrata Hugo Soares também por ali passam e os nossos intervenientes apressam-se a juntar-se ao desfile político. Sentam-se todos nos respetivos lugares do hemiciclo e, nem 30 minutos depois, regressam ao exterior.

 

A poucos metros, cruzamo-nos com o deputado liberal – e estreante - Mário Amorim Lopes, 39 anos, à entrada da sala do seu partido. “’Mal’ é o meu acrónimo. ‘Mal’ chegou”, brinca. E ‘Mal’ chegou à Assembleia da República, perdeu-se “duas ou três vezes”. “São muito simétricos os corredores e às vezes é difícil de perceber, mas vou acostumar-me”, assegura.

Antes de iniciarmos a entrevista pergunta se pode estar descontraído. “Mãos nos bolsos? Assim? É ok?”, questiona, exemplificando. Estava ligeiramente nervoso, afinal tinha acabado de se sentar pela primeira vez na bancada parlamentar da Iniciativa Liberal, a última vez que passou por aqueles históricos corredores foi “num ou dois almoços”. Pesa-lhe agora a responsabilidade de “representar o povo português e, em particular o povo de Aveiro”, distrito que o elegeu. Já tem o plano feito: parte da semana passa em Lisboa a desempenhar as suas novas funções, e nos restantes dias regressa a Vila do Conde, onde vive com a mulher e os filhos. “Não ia pegar neles e trazê-los para aqui, ainda por cima numa legislatura que ainda é muito incerta”, justifica. “Não os queria sacrificar, então faço o sacrifício por eles.” Sacrifício esse que envolve receber guarida em casa de amigos, enquanto procura um quarto que possa chamar de seu. “Viver num hotel é que não”, assume.

Em relação aos valores das rendas, diz que se já é difícil para um deputado que ganha acima da média, para um português normal “ainda pior”. “Alguém que ganhe 1200, 1300, 1500 euros, de facto já é um problema grave. É um problema que não é de agora e nada foi feito”, critica. “Para nós resolvermos os problemas da habitação temos de construir muito mais do que estamos a construir agora com iniciativas legislativas para pressionarmos essa construção.”

Promete também uma boa relação com os restantes deputados estreantes dos outros partidos, que ainda não teve oportunidade de conhecer na totalidade, defendendo que “o debate tem de ser duro e intenso, mas ao nível das ideias e não ao nível das pessoas”.

A colega de bancada, Patrícia Gilvaz, 26 anos, ouve a conversa. Lembra-se do dia em que chegou à Assembleia, em 2022, e se deparou com as mesmas adversidades depois de deixar o Porto. “Nunca tinha vindo para Lisboa por nenhum motivo, só em férias e turismo, e tive de arranjar um quarto”, conta uma das deputadas mais jovens do Parlamento. Tal como Mário, rejeita a ideia de viver num hotel. Agora vive num T1 “não muito perto da AR”, sublinha que “a relação qualidade-preço é muito escassa” e é “um grande desafio nesta legislatura”.

É um dos nove rostos que vão representar os jovens no novo Parlamento, mas considera que ainda há muito pouca representatividade. Queixa-se que “os mais novos estão muito afastados das instituições políticas”, mas garante que vai trabalhar bastante “para que cada um deles se sinta representado”, levando as preocupações e os desafios desta faixa etária para a Assembleia. “Se todos falarmos numa só voz conseguimos sair em grande.”

A liberal Patrícia Gilvaz acredita que todos podem lutar em prol dos jovens, apesar das divergências ideológicas

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Um problema que chega a todos

Já passa das 13:00 e a fome aperta. Os corredores esvaziam-se gradualmente e um silêncio quase ensurdecedor toma conta daquele amplo piso. “Já foram todos almoçar”, ouve-se o alerta. As atividades retomam às 15:00 para a eleição do novo presidente da Assembleia da República – que acabou por se alongar.

Durante a votação, vários deputados vão entrando e saindo da sala das sessões. Entre eles está Marisa Matias, de café na mão. Aproveita para fazer uma pausa, quando a interpelamos. Também ela é uma estreante nesta legislatura, também ela já se perdeu “várias vezes” durante o dia. “Já abri as portas para entrar no hemiciclo e fui dar a armários, mas acho que isto com mais dois ou três dias vai lá”, risos.

A ex-eurodeputada conta-nos que regressou de Bruxelas “com entusiasmo e muito empenho”, sobretudo no contexto político atual, para assumir o seu lugar na bancada do Bloco de Esquerda.

Tem habitação em Coimbra, e como muitos outros colegas terá de arrendar uma casa na capital. “A procura está a correr melhor agora, foi difícil, mas creio que já estou mais próxima da solução.” Por enquanto fica alojada em casa de uma amiga, mas entende que “é um problema gigante para toda a gente, principalmente para quem ganha o salário mínimo e tem rendas superiores”.

Marisa Matias está de volta a Portugal e estreia-se no novo Parlamento ao lado do BE

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Partilhar casa com deputados? "Quem sabe"

A deputada retira-se rapidamente, de volta ao plenário, e pelo caminho surgem dois jovens cujos olhares apontam para tudo quanto é sítio. São Eva Brás Pinho, 24 anos, e Martim Syder, 28, novos deputados do PSD.

Assumem estar a sentir o habitual nervosismo de quem se senta no hemiciclo pela primeira vez. “É tudo novo, uma pessoa perde-se nos corredores”, relata o social-democrata. “Onde é que é a casa de banho?”, interrompe a colega de bancada, em tom de brincadeira, e continua: “Nós vínhamos aqui a caminhar e a tentar perceber onde era o corredor das salas do PS.” Enaltecem o gesto dos deputados mais velhos, que os acolheram durante a manhã e fizeram uma visita guiada ao palácio. Acima de tudo, dizem estar a experienciar “um grande sentido de responsabilidade”.

“É uma honra fazer parte de 230 pessoas que representam o país como um todo, mas ao mesmo tempo é suposto o Parlamento representar aquilo que são várias camadas de gerações diferentes da sociedade portuguesa, géneros diferentes e, portanto, ainda que tenhamos pouca idade, a verdade é que as nossas perspetivas e a nossa forma de experienciar o mundo são importantes”, defende a jovem. “Há vários portugueses que têm exatamente as mesmas idades que nós e que passam pelas mesmas adversidades, que por sua vez são naturalmente diferentes das dos mais velhos.”

Martim Syder e Eva Brás Pinho são dois dos estreantes pelo PSD

E por falar em adversidades, Martim junta-se ao alargado grupo de deputados estreantes à procura de casa para viver. Morava em Coimbra com os pais antes de ser eleito, mas agora usufrui da ajuda de um amigo enquanto analisa outras opções, desde T0 a T2. “Quem sabe partilhar com outros colegas deputados”, sugere. “É conveniente ser aqui perto, ainda que os preços não sejam favoráveis.” Espera ter a situação resolvida no espaço de uma semana.

Somos interrompidos pelo alvoroço em torno dos resultados das votações para a presidência da Assembleia. “Ele não foi eleito”, ouve-se num dos corredores alguém referir-se a José Pedro Aguiar-Branco. Eva e Martim desaparecem no meio da agitação.

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