“Sua p*ta de m*rda. Vou expor todas as fotos e todos os vídeos que tenho teus”: imagens íntimas partilhadas por vingança - crime em curso em Portugal
Revenge porn

“Sua p*ta de m*rda. Vou expor todas as fotos e todos os vídeos que tenho teus”: imagens íntimas partilhadas por vingança - crime em curso em Portugal

Texto
Carolina Pereira

Aviso: este artigo contém linguagem violenta. Linguagem que pode ofender a suscetibilidade de quem o lê. Mas pense: que efeito é que esta linguagem teve nas vítimas desta violência verbal? E estas vítimas não foram apenas vítimas desta linguagem, foram vítimas de pior que isso, tão pior que isso. Há um crime a acontecer em Portugal, é preciso falar dele - porque nem a justiça nem a sociedade estão preparadas para isto que anda a acontecer, dizem as próprias vítimas e dizem os advogados que as defendem. Exemplo: houve multas de 180 euros para quem cometeu crimes destes. Só isso: 180 euros. “180 euros, o preço de uns pneus”: frase de uma vítima. “Eu valho o preço de uns pneus”

 

O namoro durou três meses mas deixou uma marca para sempre. Uma marca das piores. 

Era 2018: Maria e o namorado filmaram-se a ter relações sexuais. Maria é nome fictício para preservar a intimidade que lhe violaram. Entretanto Maria acabou com o namoro, os namoros acabam, mas ele ameaçou-a, disse que iria expor aquele vídeo. Ela não acreditou. Ele cumpriu a ameaça.

O ex-namorado enviou o vídeo a todos os círculos de Maria: familiares, amigos, conhecidos, colegas de trabalho. As imagens foram parar a um site pornográfico.

Maria é de um meio pequeno. Perdeu o trabalho, disseram que ela estava a prejudicar o sítio onde tinha aquele emprego. Maria ficou ansiosa. Maria ficou com vergonha de sair de casa. E ele? 

Ele recebeu uma pena suspensa, não foi considerado responsável por as imagens terem ido parar ao site pornográfico. E em vez de pagar 168 mil euros – um euro por cada visualização das imagens no site pornográfico – vai ter de indemnizar Maria em 7.500 euros

“Ele admitiu o que fez, ele pediu desculpa quando soube da queixa, mas quando ela disse que não a retirou, isto em 2019, ele voltou a cruzar-se com ela e disse que tinha mais vídeos para divulgar. Houve dolo. Cumpriu todos os elementos típicos e objetivos do crime: sabia o que estava a fazer e fê-lo com toda a intenção. Vingança, magoar, ferir, repudiar, isso tudo ele conseguiu”, diz a advogada Rita Rosário Duarte. “Sua puta de merda (...). Sua sem vergonha rodada do caralho, toda arrebentada! Juro por tudo o que seja mais sagrado vou fazer a tua vida num inferno prepara-te!!! Vou expor todas as fotos e vídeos que tenho teus. Vais ser ainda mais conhecida que já és! (...) Até as tuas colegas de trabalho vão saber das tuas coisas! Prepara-te!!!”: retirado do processo. Frases dele.

Este é a primeira decisão judicial conhecida a qualificar como violência doméstica a partilha de imagens íntimas obtidas no âmbito de uma relação de namoro e, de acordo com o “Diário de Notícias”, para o Tribunal de Almada não existiram dúvidas de que as imagens e vídeos dizem respeito à intimidade da vida privada da vítima, de que houve ausência de consentimento da mesma, de que o arguido foi movido pelo sentimento de vingança relativamente à ofendida e que através das redes sociais Facebook, WhatsApp e Instagram partilhou  vídeos e fotografias de Maria com a cara perfeitamente reconhecível a praticar atos sexuais. 

Mas o Tribunal não considerou que ficou provada a responsabilidade pelos conteúdos publicados no site de pornografia porque “não há prova cabal de que tenha sido o arguido a publicar o vídeo no site”. “Após a divulgação por parte do arguido diretamente remetendo para determinadas pessoas, tal como relatado pela ofendida e admitido pelo arguido nos emails (pelo menos para uma pessoa), fica impossível ao Tribunal determinar com a certeza que se impõe quem publicou tais vídeos, pois que após a partilha por parte do arguido com alguém sai da sua esfera de controlo, podendo qualquer pessoa que recebeu o vídeo, provavelmente em evento em cadeia, utilizá-lo e publicar o mesmo em tal site criando um perfil falso." Foi com estes argumentos que o Tribunal decidiu não punir o arguido com o dever de pagar uma indemnização de 168 mil euros.

Mas Maria não queria dinheiro. O dinheiro seria um símbolo de justiça. E quanto maior o valor maior o simbolismo dessa justiça. E quanto menor… isso, quanto menor o valor menor o resto, menor a justiça. A justiça. Sobrou a injustiça. Injustiça como esta:

“Cinco anos depois ainda há quem a reconheça por causa daquele vídeo. A intimidade dela foi vista por amigos e família. Mas sobretudo ela não sabe o que é que o filho quando crescer pode ver ou o que lhe pode ser enviado por maldade. Ela está a tentar arrancar com a vida mas terá sempre esta inquietação: ‘O que será que o meu filho vai ver?’”, explica a advogada.

Neste caso foi possível qualificar o crime como violência doméstica por ter existido uma relação amorosa entre os dois, o que contribuiu para levar a queixa a tribunal. Mas a qualificação não é completamente adequada ao caso nem facilitou o processo. 

“A autonomia do crime é uma situação a explorar, começa a ser discutida na Assembleia, já há projetos nesse sentido. Uma coisa é a violência doméstica com agressões, isolamento social, económico, e outra é a agravada pela internet. Ele não foi responsabilizado e isso é grave. Se houvesse um crime autonomizado seria mais fácil tratar este tipo de conduta com os contornos que merece”, conclui Rita Rosário Duarte.

“Eu valho o preço de uns pneus”

Era 2019: Nuria Silva, 21 anos naquele ano, estava num relacionamento não assumido com um rapaz, um amigo que mantém até aos dias de hoje, e tudo ia bem. Divertiam-se juntos. Mas em outubro daquele 2021 a diversão desfigurou-se: viu momentos que tinha partilhado exclusivamente com aquele rapaz – a quem hoje não culpa - fora das conversas onde guardavam os registos.

“Eu consegui perceber mais ou menos o que estava a acontecer numa semana, foi tudo muito rápido. Muita gente já estava a par e alertava-me para o que estava a acontecer. Eu entrei num grupo do Telegram, por exemplo, e vi lá as minhas fotos e os meus vídeos, tal como de outras miúdas. A partilha e comentários continuaram durante um ano e tal.“

Dois dias depois Nuria dirigiu-se à polícia. Sentiu o seu caso desvalorizado e só quando referiu a existência de chantagens é que algo mudou. “A chantagem já é crime. Existiam pessoas específicas que eles podiam apanhar por causa da chantagem porque houve pessoas a ameaçar-me com consequências caso não lhes mandasse fotos ou vídeos meus. Dessas pessoas eu podia apresentar uma queixa direta.”

Durante um ano não teve novidades da polícia. E então chega uma carta da Judiciária a informar que o caso tinha sido fechado. Das centenas de participantes deste crime,  chamaram “umas cinco ou seis pessoas lá e essas pessoas pagaram uma multa até 180 euros - era isso ou faziam X horas de trabalho comunitário”. “Era simplesmente isso, eu valho o preço de uns pneus.”

180 euros para eles, uma volta de 180 graus na vida dela. Nuria teve muito apoio da família e dos amigos mas o mundo deixou de ser o que ela pensava. “Durante aquele tempo eu mudei imenso. Fiquei muito mais introvertida, não saía à rua com tanta facilidade ou não falava com os meus amigos com tanta facilidade, não tive uma relação durante muito tempo porque eu achava que os rapazes só falavam comigo  porque sabiam o que tinha acontecido.”

Na rua deixou de sentir segurança, sentia-se perseguida, tinha medo. Na universidade a história tornou-se conhecida, era vítima de bullying e desistiu da licenciatura. “Eu estudava Direito e deixei de me rever naquilo. Porque eu deixei de acreditar no que eu estava a fazer. Não há empatia suficiente nos cargos jurídicos para avaliar estes casos com seriedade. Agora a lei diz que quem praticar este crime pode levar até cinco anos de prisão mas não vai fazer muita diferença porque a pena é normalmente suspensa e a multa é baixa.  Aqueles rapazes que levaram uma multa até 180 euros, por exemplo: o meu ano de sofrimento vale 180 euros?  Ninguém me veio perguntar nada.”

Nuria tomou entretanto a iniciativa de gravar um vídeo a expor a sua história. Trouxe-lhe alguma paz. “Estar constantemente a tomar conta da vida dos outros para ver se não estragam a tua  é muito cansativo, desgasta-te mentalmente. Partilhei um vídeo no Instagram que teve mais de 60 mil visualizações a contar tudo o que me aconteceu. E foi só a partir daí que eu me comecei a sentir bem. Porque a partir daí comecei a receber o apoio de várias meninas que estavam a passar pelo mesmo. Foi a melhor coisa que me aconteceu, foi a motivação de que eu precisava.”

“Bora estuprar a Guida”

Margarida Fernandes, 21 anos, foi uma das vozes amigas que apoiaram Nuria . Não é por acaso porque o caso de Margarida começou quando um rapaz que não conhecia lhe enviou um print de um grupo chamado “pussylga” – junção entre uma palavra do calão Inglês referente ao órgão sexual feminino e pocilga. Aquele grupo tinha uma fotografia de Margarida e comentários sobre o corpo dela.
 
Era uma foto de biquíni. “Guida” tinha apenas publicado uma fotografia no seu Instagram e não esperava que causasse tanta atenção. “Eu tinha poucos seguidores e eram maioritariamente amigos e família. Não estava à espera. Depois comecei a ganhar muitos seguidores masculinos.”

Ao ver a quantidade súbita de homens na sua conta e os comentários que lhe dirigiam sentiu aquilo que muitas outras descrevem sentir: vergonha, culpa, medo. Para se proteger, apagou as suas fotos do Instagram para que mais ninguém “as tirasse do contexto”. Não foi suficiente. A insegurança persistia, tal como os comentários sexistas e perturbadores.

“Foi complicado porque li muitas coisas más sobre mim, muitas mentiras e uma coisa que me marcou muito que foi ‘bora estuprar a Guida’. Não percebia como diziam aquelas coisas de forma tão leve. Comecei a pedir aos meus amigos para andarem sempre comigo, não conseguia andar sozinha.”

A certa altura, Guida, que não pretendia condicionar a sua vida por mentalidades daquelas, quis alterar o sentido da narrativa. Quis trocar de lugar. Quis ser ela a apontar o dedo.

Guida sabia que não era caso isolado e partiu à procura de outras raparigas, como Nuria, que estivessem a passar pelo mesmo e que a ajudassem a encontrar o maior número de provas. Conseguiu. Em poucos dias o grupo já contava com mais de 30 elementos e até com o apoio de advogados.

Chegaram-lhe histórias sobre todo o tipo de violação da intimidade: nudez, pornografia, até miúdas a dormir. “Ali vale tudo.” Mas quase ninguém é criminalizado. “Ninguém sabe quem são porque escondem-se no anonimato. Pela justiça não tive apoio nenhum e ainda gozaram comigo. Mas até mudar a lei mas enquanto a mentalidade não mudar vão sempre julgar a mulher. Os polícias também precisam de educação.”

Mas nem tudo foi em vão. “Pelo menos encontrei pessoas a passar pelo mesmo e isso deu-me força. Há muitas meninas que depois de serem vítimas disto não conseguem ultrapassar este tipo de situação, eu consegui e ainda fui ajudando outras.”

“Era até cheirar a borracha queimada”

Um mês depois de ter publicado uma foto no Instagram, Beatriz Borracha, 24 anos, foi adicionada a um chat privado chamado “borracheiras”. Foi perceber do que se tratava: no grupo estava a sua foto, tal como as de outras raparigas, seguidas de inúmeros comentários brejeiros e de cariz sexual.

“Eu li certas coisas como ‘era até cheirar a borracha queimada’ e automaticamente fui vomitar. Tive um ataque de pânico horrível porque não sabia reagir. Só conseguia chorar.”

Além do “nojo”, sentiu culpa. O irmão mais velho acalmou-a, “não fizeste nada de mal”. Beatriz respirou. Beatriz refletiu. Beatriz agiu: tirou prints a todas as conversas e partilhou-as numa story do Instagram em que relatava aquilo de que estava a ser vítima.

“Choveram críticas, disseram-me que eu tinha culpa, que eu não era vítima nenhuma e que eles só estavam a elogiar-me. Mas eles não têm o direito de estar a fazer esse tipo de comentários sobre mim, sobre o meu corpo. E não merecemos essa normalização da forma como somos tratadas. Não é normal. Na altura eu trabalhava no atendimento ao público e quando voltei para a loja onde trabalhava, depois do confinamento, tive várias situações de rapazes que me reconheceram.”

Eram dezenas de intervenientes, talvez mais, naquele grupo - gente dos 18 aos 30 anos, de várias origens.  Para Beatriz foi assustadora a dimensão que ganhou uma simples foto em que se achou bonita. “As pessoas não têm ideia do impacto que isto tem sobre alguém. Durante algum tempo deixei de vestir biquínis, receava que me observassem. Ganhei uma mania de perseguição, nem conseguia ir do trabalho a casa e eu nunca fui uma pessoa de ter medo de andar na rua. Mas fiquei defensiva, qualquer coisa que me dissessem lá estava eu de faca na mão, por assim dizer. Fiquei destruída psicologicamente e até a licenciatura meti em pausa.”

Beatriz recolheu os nomes e prints das conversas de quem colocou a sua imagem em espaços que ela não consentiu mas para as autoridades não havia matéria para ser apresentada queixa.

Como é que as vítimas se podem defender? (e atenção ao Stop NCII)

Dados da Associação de Apoio à Vítima (APAV) mostram que casos como este aumentaram desde 2019. E porque há cada vez mais vítimas é preciso haver cada vez maior proteção delas. 

Ricardo Estrela, responsável pela Linha Internet Segura da Associação de Apoio à Vítima, explica que foi criado em janeiro de 2019 o serviço Linha Internet Segura (800 21 90 90), onde as vítimas de cibercrime podem fazer as denúncias. “Podem denunciar todo o tipo de coisas negativas que se passem online. O passo seguinte será fazer queixa às autoridades competentes, onde a vítima também pode ser referenciada para apoio jurídico e psicológico.”

Existem também outros mecanismos a que as vítimas podem recorrer. Ricardo Estrela dá o exemplo de um projeto chamado Stop NCII: “É uma ferramenta muito útil que permite que a vítima, se tiver no seu dispositivo acesso ao conteúdo íntimo que foi partilhado, por exemplo, pode pegar nessa imagem, fazer o upload neste site e o que é que acontece? O hash da imagem, que é um conjunto de caracteres alfanuméricos que identificam uma imagem em específico, vai ser guardado na nossa blacklist de conteúdo ilegal. Aquela pessoa que está a tentar extorquir dinheiro, quando quiser fazer o upload daquelas fotos íntimas numa plataforma que seja aderente do Stop NCII (Facebook, Instagram ou Messenger), além de a plataforma alertar de que estão a tentar partilhar uma fotografia, o infrator, quando tenta fazer o upload, não consegue - a imagem fica bloqueada”.

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