"Portugal teve dificuldade em tornar-se o centro das atenções mundiais." A Revolução dos Cravos aos olhos de correspondentes estrangeiros
Manifestação 1 de Maio de 1974 em Lisboa (Foto de Henri Bureau/Sygma/Corbis/VCG via Getty Images)

"Portugal teve dificuldade em tornar-se o centro das atenções mundiais." A Revolução dos Cravos aos olhos de correspondentes estrangeiros

🌹 50 ANOS DO 25 DE ABRIL

REPORTAGEM 🌹
Joana Azevedo Viana

FOTOS
Getty Images, Ruy Castro, Dennis Redmont, Mário Dujisin, AP

Quando estalou o 25 de Abril de 1974, o brasileiro Ruy Castro foi dos poucos jornalistas estrangeiros que, em Lisboa, tiveram o "privilégio" de cobrir "aquele dia glorioso". Em meados da década anterior, quando tinha 23 anos, o norte-americano Dennis Redmont já tinha sido enviado pela Associated Press para Portugal, onde lançou pedrada após pedrada ao charco que Salazar queria manter sem ondas. Assim que o MFA reabriu as fronteiras, a 28 de abril, outros jornalistas estrangeiros vieram cobrir o Processo Revolucionário Em Curso (PREC), como o chileno Mário Dujisin, que viria a cofundar a Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal, e o alemão Thomas Fischer, então estudante de jornalismo na RFA. Estas são as suas histórias, recordadas meio século depois da revolta militar que pôs fim à mais longa ditadura do século XX na Europa

“Bem cedo, antes das 7:00 da manhã”, uma amiga de Ruy Castro, a arquiteta brasileira Norma Taulois, também a viver em Lisboa, telefonou-lhe. “Mandou-me ligar o rádio e só estavam a tocar marchas militares, o que no Brasil era sinónimo de golpe de Estado”, conta a rir.

Ao ligar o rádio, constatou que “era isso mesmo, só podia ser um golpe”. Mas de onde? “Por aqueles tempos havia uma ameaça de golpe da extrema-direita, comandado por um general chamado Kaúlza de Arriaga”, fiel colaborador de Salazar e de Marcello Caetano e figura decisiva no abortar da tentativa de golpe de Estado de abril de 1961. “Era muito cedo para ligar para alguém e confirmar o que estava a acontecer, por isso tomei o pequeno-almoço e saí para trabalhar.”

Ruy Castro tinha trocado o Rio de Janeiro por Lisboa em janeiro de 1973, para ser editor-executivo da Seleções do Reader’s Digest, “revista brasileira que, por motivos fiscais, passara a ser editada em Portugal”. Tinha 26 anos quando chegou à capital portuguesa, trazendo consigo a mulher e a filha de dois anos, Pilar. “Fomos morar para Campo de Ourique, então um bairro quase de periferia [risos]. A Seleções ficava perto, na Rua Manuel António de Aguiar, em frente ao Ritz e, na galeria do Ritz, bem em frente à nossa porta, ficava o escritório comercial da Manchete”, revista que abandonara no Rio para vir trabalhar para Lisboa.

Ruy Castro com a mulher e a filha, Pilar, num comício em Lisboa em 1974 (Arquivo pessoal/Direitos Reservados)

Quando saiu de casa para trabalhar, na manhã daquele 25 de Abril de 1974, “as ruas estavam desertas”, recorda Ruy Castro. “Não havia táxis, então fui a pé até à [redação da] Seleções, que também estava deserta. Ao longe vi passar um tanque, creio que às Amoreiras. Quando cheguei ao escritório, quase ao pé do Marquês de Pombal, o prédio estava fechado. Fui então para o Marquês de Pombal, onde já havia uma grande concentração.”

Pelas 9:00 da manhã “já se sabia que os capitães e majores estavam a depor o Governo”. Pelas 10:00, “no máximo, saiu uma edição do República, vespertino do socialista Raul Rêgo, grande vítima do Salazarismo”, já com uma marca impressa da revolução. “Trazia no rodapé da primeira página o tradicional quadrinho da censura, só que desta vez tinha escrito ‘Este jornal NÃO FOI visado pela censura’. Em seguida, alguém me espetou um cravo na lapela. De repente, havia muita gente com cravos. Era emocionante. Passei o resto do dia na rua, no Camões, no Carmo, onde fosse, para ver a reação do povo. Foi glorioso.”

 A uma mesa de distância dos conspiradores

Ruy Castro era um dos poucos jornalistas estrangeiros a trabalhar em Portugal quando, há 50 anos, o Movimento das Forças Armadas (MFA) tomou as rédeas do país em mãos, numa revolução quase sem sangue que ficaria conhecida em todo o mundo como Revolução dos Cravos. Assim caía, 48 anos depois, a mais longa ditadura da Europa ocidental do século XX. Como jornalista, o brasileiro queria escrever sobre o que estava a acontecer, mas o contrato de exclusividade com a Seleções – “que devido à sua linha editorial não iria tocar no assunto” – não lhe permitia. 

“Não podia escrever sobre a cena política, muito menos assinando. Mas não me podia limitar a ver a revolução pela janela, ao lado de um pé de alecrim.” Assim, no dia seguinte decidiu deslocar-se à redação da revista Manchete para pedir à então diretora, Maria do Amparo, que oferecesse aos seus “velhos amigos na revista artigos assinados ‘Da Sucursal de Lisboa’, que não existia”.

A resposta do Rio chegou de imediato. “Comecei naquele mesmo número, com um relato intitulado ‘O dia mais longo de Lisboa’, de quem já estava na cidade naquele dia. No 25 de Abril, era o único jornalista brasileiro presente. E, com as fronteiras fechadas pelo MFA, não entrou ninguém até ao dia 28. Eu e os poucos correspondentes estrangeiros que já morávamos na cidade e que tínhamos como ponto de encontro o Pabe, na rua Duque de Palmela, em frente ao Expresso, fomos privilegiados por isso.” Só a partir do 28 de abril é que “entrou toda a gente”, incluindo Mário Soares, o primeiro exilado político a regressar a Portugal.

Três dias depois do 25 de Abril, soldados e civis saíram à rua em Lisboa para acolherem Mário Soares, o primeiro exilado político a regressar ao país. Reza a história que, assim que chegou à estação de Santa Apolónia, os correspondentes estrangeiros acorreram todos à única cabine telefónica disponível para fazerem chegar a notícia às suas chefias (Henri Bureau/Sygma/Corbis/VCG via Getty Images)

“Um ou dois meses depois", Ruy Castro enviava para o Brasil "o primeiro trabalho sobre Otelo [Saraiva de Carvalho] que, até então, estava meio oculto", recorda o jornalista. Anos depois, ao ler as memórias de Otelo, ‘Alvorada em Abril’, o jornalista ficou a saber que um dos pontos de conspiração do futuro MFA, desde finais de 1973, era o snack-bar do Apolo 70, aos sábados à noite – exatamente o snack-bar que frequentava antes das sessões de cinema, à meia-noite de sábado, com festivais de filmes clássicos americanos. "Chegava cedo e ia tomar um uísque ao snack-bar à espera do filme. Ou seja, posso ter estado várias vezes a uma mesa do Otelo e dos seus companheiros que conspiravam!”

Ao longo dos seis meses que se seguiram, Ruy Castro mandou trabalhos semanais "todos empolgados" para a Manchete, até que o proprietário da revista, Adolpho Bloch, descobriu que "o novo regime [democrático] estava a fazer mal aos seus negócios em Portugal”. O seu trabalho, para os leitores sempre anónimo, foi dispensado ali, altura em que a revista brasileira “começou uma campanha sórdida contra o MFA”, diz. 

“Tudo bem, era da Seleções e na Seleções continuei. E em agosto de 1975 voltámos para o Rio, porque a minha ideia, desde o começo, era a de que passaria no máximo três anos fora do Brasil.” Entretanto, a filha Pilar já tinha uma irmã mais nova, Bianca, nascida em Lisboa em agosto de 1974 – segundo o pai, “uma autêntica filha do 25 de Abril” que, décadas depois, na viragem do milénio, “após se formar em arquitetura, se mudou para Lisboa, onde está muito bem até hoje e onde já me deu dois netos portugueses, João Ruy e Teresa”.

O major Otelo Saraiva de Carvalho, um dos líderes do MFA, de cravo na mão (STF/AFP via Getty Images)

 

Atestar a morte do “general sem medo”

Dennis Redmont tinha 31 anos quando se deu o 25 de Abril, era então correspondente da Associated Press no Brasil. Quase uma década antes, com apenas 23 anos e em pleno Estado Novo, tinha sido enviado para Lisboa, o seu primeiro cargo no estrangeiro depois da dura “recruta” na casa-mãe da agência norte-americana.

“Lisboa foi escolhida por mim. Tinha duas opções – Cuba ou Portugal – e estava com pressa para deixar Nova Iorque, onde trabalhava da meia-noite às 8h da manhã. A primeira vaga a surgir, em janeiro de 1965, foi Portugal e deram-me três semanas para aprender português. E eu perguntei-lhes: ‘Quando é suposto aprender português se estou a trabalhar a noite toda e depois vou dormir?’ Passei a ter aulas de português quatro horas por dia, todos os dias, com uma professora brasileira na praça Rockefeller, onde ficava a sede da AP.”

Dennis Redmont chegou a Lisboa com 23 anos para cobrir o Portugal do Estado Novo para a Associated Press (Arquivo pessoal/Direitos Reservados)

Quando chegou a Lisboa, pôs logo mãos ao trabalho, “a cobrir tudo”, conta a partir da capital portuguesa, onde vive há vários anos. “Uma das coisas que mais me fascinou foram os problemas com os estudantes”, numa altura de turbulência estudantil também em países como França e Itália, pelo que começou “a ir diariamente para o Tribunal da Boa Hora”. Foi aí que conheceu o jovem advogado Mário Soares, que menos de um mês depois da sua chegada a Lisboa o convidaria “para ir com ele à fronteira com Espanha, quando o general Humberto Delgado foi morto – achou que seria bom fazer-se acompanhar de jornalistas estrangeiros”.

Juntamente com o correspondente do New York Times, Redmont foi com Soares até ao local do atentado de 13 de fevereiro de 1965, que vitimou o então líder da oposição à ditadura e a sua secretária brasileira, Arajaryr Campos, que entrara clandestinamente em Portugal no final de 1961, para se juntar à tentativa de revolta armada contra o regime salazarista. “As pessoas esquecem-se de que havia censura, exceto através dos jornais estrangeiros, esses normalmente não eram retirados de circulação. Então, umas semanas depois de cá chegar, fomos com ele até Badajoz ver os restos mortais do general Delgado, que obviamente foi morto numa operação à paisana [da PIDE].”

“A partir dali fiquei viciado em fazer histórias de investigação e então comecei a estudar o número de soldados mortos na Guerra Colonial” – superior às mortes na Guerra do Vietname, mas com cobertura mediática quase nula – “e, no contexto das lutas estudantis, noticiei as detenções de Ruy D’Espiney e de uma outra estudante, que teriam sido torturados pela polícia – a mulher tinha tentado suicidar-se engolindo vidro partido dos óculos.” Redmont escreveu a notícia citando “fontes incontestáveis” (a informação vinha do hospital onde ambos tinham recebido tratamento). “Foi assim que o governo português ficou chateado e decidiu enviar agentes da polícia política ao escritório da AP para me interrogarem.”

Dennis Redmont com Mário Soares (Arquivo pessoal/Direitos Reservados)

Oito PIDE à espera na Praça da Alegria

Um dia, em fevereiro de 1966, ao regressar do almoço, tinha oito agentes da PIDE à sua espera na Praça da Alegria. Os colegas ajudaram-no a escapulir-se e, naquele primeiro dia, conseguiu evitá-los. Passou a noite na residência do então embaixador norte-americano, George W. Anderson, que na manhã seguinte falou com o ministro dos Negócios Estrangeiros. Franco Nogueira garantiu-lhe que Dennis nada tinha a temer e que a PIDE só lhe queria fazer “umas perguntas”, o que não impediu Anderson de se insurgir com o número de agentes que tinham ido à procura do repórter no dia anterior.

Redmont seguiu para a sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, acompanhado do cônsul americano, para prestar declarações. “Eles queriam que eu confirmasse quem era a minha fonte, mas só lhes disse: ‘Se é mentira e quiserem um desmentido, a AP publica-o já amanhã. Caso contrário, não há razão para eu estar aqui’.”

Quando lhe perguntamos se sentiu medo, Dennis responde no seu tom desprendido e jovial. “Tinha 23 anos, com essa idade é claro que fazes as coisas com uma certa coragem e uma certa bravata. Sabia o que a PIDE fazia, sabia que estavam a observar-me, a ver todas as minhas histórias… Portugal estava preocupado com a imagem que passava para o exterior e sabia que não podia controlar as coisas a nível internacional como outros regimes, mas estava numa batalha pela opinião pública lá fora, sob a teoria de que estava a defender a civilização ocidental cristã, que [com aquelas notícias] ficaria em perigo.”

Redmont foi interrogado durante algumas horas até o próprio Silva Pais, diretor-geral da PIDE, entrar de rompante na sala. “Percebi que não me iam expulsar quando ele entra e diz: ‘Não percebo porque é que os jornalistas estrangeiros dizem tão mal do nosso país quando somos tão hospitaleiros’.” Na verdade, apontará mais à frente na conversa, entre os estrangeiros que visitaram Portugal ou que cá estavam instalados na década de 1960, houve alguns que não tiveram a mesma sorte que ele. 

“Eles queriam expulsar-me, mas tive sorte e cumpri os meus três anos de trabalho aqui. Mas houve outros estrangeiros expulsos pelas autoridades portuguesas", diz, recordando "músicos de jazz que deram um espetáculo em Cascais e que foram escoltados até à fronteira" e o caso do dançarino e coreógrafo Maurice Béjar, que no final de um espetáculo na Gulbenkian, a 6 de junho de 1968, anunciou o assassinato de JFK e pediu um minuto de silêncio "contra as ditaduras e o fascismo". Segundo Dennis, "nunca houve repressão direta de estrangeiros, porque isso seria dar um passo longe demais, mas muitos foram convidados a sair..."

As outras histórias do Portugal salazarista

Em Lisboa, Dennis Redmont era presença habitual na casa de Snu Abecassis, a dinamarquesa que fundou a D. Quixote em plena ditadura no mesmo ano em que o norte-americano aterrou em Portugal. Cinquenta anos depois, em 2015, teve acesso ao dossier que a PIDE havia compilado sobre ele, altura em que, recorda hoje, "descobriu a intensidade da vigilância" de que fora alvo.

“Quando desclassifiquei o meu dossier da PIDE na Torre do Tombo, percebi que eles sabiam exatamente o que eu andava a fazer. Descobri várias coisas, incluindo algumas cartas que me tinham sido enviadas 50 anos antes e que nunca recebera. A Torre do Tombo fez um trabalho muito bom a categorizar tudo. Consegui finalmente juntar algumas peças do que eram, até então, mistérios para mim, sobre algumas cartas que amigos me tinham enviado de Paris e que eles achavam que eram da oposição. Eram amigos da universidade que me tinham escrito usando iniciais e a PIDE achou que era algum tipo de código, fizeram círculos à volta de algumas expressões, como ‘kuddos’" – ‘parabéns’ em inglês. 

Dennis Redmont durante a construção da ponte sobre o Tejo (Arquivo pessoal/Direitos Reservados)

Entre 1965 e 1967, houve vários artigos da AP com chancela Redmont que incomodaram o regime. “Ficaram zangados com a história da guerra do Ultramar, com a história do D’Espiney e também descobri que ficaram zangados com a história que escrevi sobre as enchentes de 1967 em Vila Franca de Xira, em que morreram muitas pessoas".

Internamente, "a censura disse aos jornalistas que não podiam noticiar mais de 200 mortes, mas o número exato era próximo das 700. Neste momento, há uma exposição na Cordoaria Nacional com fotografias do Eduardo Gageiro que mostram a devastação impressionante desta espécie de tsunami que atingiu a população enquanto dormia. Nós fomos para lá contar corpos da mesma forma que a AP conta votos em noite de eleições nos Estados Unidos.”

Dennis não cobriu apenas histórias políticas, como a dos estudantes torturados, que por ter saído no “Le Monde” chegou às mãos de alguns estudantes por via clandestina e que fez brotar protestos que a PIDE quase não conseguiu controlar. Durante os três anos que cá passou, noticiou eventos marcantes da história portuguesa, incluindo a construção da Ponte Oliveira Salazar, hoje Ponte 25 de Abril.

Em 1966, acompanhou a seleção das quinas a Inglaterra para a conquista do terceiro lugar no Mundial de Futebol – durante 50 anos a melhor classificação de Portugal num campeonato de futebol (até 2016, quando se tornou campeão europeu). E cobriu a visita do Papa Paulo VI a Fátima, em maio de 1967 – que Snu Abecassis aproveitou, dada a distração da PIDE com toda a operação logística, para trazer a Lisboa o poeta russo “vermelho” Yevgeny Yevtuchenko, que foi fazer um recital ao Parque Mayer.

Papa Paulo VI em Fátima, nos 50 anos das aparições, a 13 de maio de 1967 (AP)

Ao longo desses anos, conheceu e travou amizade com outros correspondentes estrangeiros enviados para Portugal em plena ditadura, muitos deles hoje já falecidos, como a fotojornalista Ingeborg Lippmann, cujo trabalho está agora exposto na Fundação Oriente, com patrocínio da Fundação Mário Soares e Maria Barroso. “Muito do trabalho [dos jornalistas estrangeiros] é desconhecido da maioria dos portugueses, nós correspondentes estávamos cientes do que era feito, mas cá eram poucos os que sabiam”, partilha. 

“As nossas sedes eram todas no mesmo sítio e é engraçado pensar como as coisas eram há 50 anos, agora que a sede da PIDE na António Maria Cardoso foi transformada num condomínio de habitação de luxo. As sedes da AP, da Reuters, do New York Times, da revista Time, eram no edifício do cabaret Maxime, perto do Parque Mayer. Porquê? Porque a maioria das agências precisa de acesso aos seus edifícios 24 sobre 24 horas e o cabaret funcionava até às 5:00 da manhã, altura em que chegavam as senhoras da limpeza.”

Redmont com Eusébio, que atingiu o verdadeiro estrelato em 1966 com os nove golos que marcou no Mundial de Futebol em Inglaterra (Arquivo pessoal/Direitos Reservados)

A “vingança” servida a bordo de um avião

Quando se dá o 25 de Abril, muitos dos correspondentes que tinham vivido em Portugal durante o Estado Novo, como Redmont, estavam agora no Brasil – “como falávamos português, era o cargo lógico seguinte” – e continuavam “a ser ferozmente competitivos”, embora se tivessem “tornado amigos”. Ao saberem da revolução, foram dizer às chefias: “Ouçam, nós cobrimos a era pré-25 de Abril, deixem-nos ir, conhecemos muitas destas pessoas…” A resposta foi um redondo não – no caso da AP, disseram a Dennis que “agora estava a cobrir outras ditaduras, no Brasil, na Argentina, no Uruguai, o golpe de Pinochet no Chile”.

Redmont e os colegas tinham “sabido de antemão da famosa tentativa de golpe de 11 de março [de 1975], um bocado como agora sabemos dos drones lançados contra Israel pelo Irão, em que só não se sabe onde vão cair”. Quando a operação da fação militar que apoiava António de Spínola saiu gorada, e o ex-presidente é obrigado a exilar-se, Redmont encontrou a sua oportunidade para se vingar por não o terem deixado vir cobrir uma revolução que, em parte, também era sua.

António de Spínola foi Presidente da República entre 15 de maio e 30 de setembro de 1974. Em março de 1975, após o falhanço do golpe que orquestrou, fugiria para Espanha e depois para o Brasil. Foi a partir do exílio que fundou o Movimento Democrático de Libertação de Portugal (Alain Dejean/Sygma via Getty Images)

“Spínola foi posto num avião pelos espanhóis, um voo da Iberia Airlines que ia para o Brasil e depois para a Argentina, e toda a gente estava à espera dele no aeroporto do Rio de Janeiro. Mas eu decidi fazer algo diferente.” Comprou um bilhete em executiva para o mesmo voo, do Rio para Buenos Aires, “sem saber se ele iria sair no Brasil ou seguir viagem para a Argentina”. E fez uma aposta consigo mesmo de que ele iria continuar a viagem, porque ainda não tinha obtido asilo formal do governo brasileiro. 

“Foi a aposta certa”, partilha a sorrir. “Embarquei, esperei que o avião levantasse voo, sentei-me no meu lugar, à esquerda de Spínola, e apresentei-me. E ele, depois de verificar as minhas credenciais, passou-me uns documentos onde era alegado que os comunistas estavam a planear a Matança da Páscoa e disse-me que não tinha mais a quem passá-los, e que não queria ficar na posse deles porque não sabia quais seriam os termos do asilo.”

Dennis foi o único repórter a conseguir uma entrevista com Spínola até os ditos termos terem sido definidos à chegada a Buenos Aires, quando o embaixador brasileiro na Argentina foi ao avião conceder-lhe formalmente asilo político sob a condição de não falar com qualquer jornalista. “Escrevi a minha história no aeroporto e fiquei à espera de que lhe concedessem asilo. Só houve essa história da AP. O comunicado só seria oficialmente publicado nos media um ano depois, quando as restrições foram relaxadas e Spínola até passou a poder fazer algumas viagens.”

Portugal "entre Marx e uma mulher nua"

Meses depois de Ruy Castro se passear por Lisboa no “glorioso” 25 de Abril e de Dennis ter visto negada a hipótese de voltar para testemunhar e noticiar a Revolução dos Cravos, o chileno Mário Dujisin foi enviado como correspondente estrangeiro para cobrir aquela “mudança histórica única”. Tinha 31 anos quando aterrou em Lisboa, vindo de Buenos Aires, onde vivia naquele ano, e onde “tinha lido que o nome Revolução dos Cravos nasceu na própria manhã de 25 de Abril de 1974, quando uma criança colocou um cravo vermelho no cano da espingarda de um soldado insurgente”.

Portugal estava então prestes a entrar no Verão Quente de 1975, quando “um quadro de instabilidade começava a perfilar-se, onde a última palavra coube ao Conselho da Revolução, formado pelos militares mais destacados dos três ramos das Forças Armadas, [mas] quando as três principais tendências dos fardados ainda coexistiam em sintonia aceitável”, recorda, enumerando “os que defendiam uma aliança privilegiada com os comunistas, os que afinavam com os socialistas e outros setores da esquerda dita ‘moderada’ e os simpatizantes da extrema-esquerda, designados de ‘verdadeiros M-L’” – marxistas-leninistas.

Nesses tempos a seguir à revolução, em pleno Processo Revolucionário Em Curso (PREC), “a festa era total, não havia nenhum muro sem slogans, todo o tipo de organizações de base discutia acaloradamente nas principais praças das cidades e vilas”. Depois de 48 anos de ditadura, “livros e revistas proibidos enchiam os quiosques, os espaços nas vitrines das livrarias e os programas nas salas de cinema eram disputados entre o marxismo e a pornografia. Portugal movia-se entre Marx e uma mulher nua.”

Dujisin, que mais tarde viria a fundar a Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal, à qual presidiu por duas vezes, recorda como “Portugal era, naquela época, um país pouco ou nada conhecido do mundo”, o que se revelou um desafio para os correspondentes que cobriram a revolução e o seu rescaldo. “Para nós, explicar o processo, que incluía uma complicada descolonização em África, não era uma tarefa fácil. E, entretanto, a população de Portugal, habituada ao seu estatuto de país periférico, teve dificuldade em tornar-se subitamente o centro das atenções mundiais.”

Antes e logo após o 25 de Abril, “todos sabiam da guerra do Vietname, mas só os mais esclarecidos sabiam que, nas chamadas províncias do Ultramar lusitano, existiam sangrentos teatros de guerra” – aqueles que motivaram uma das peças de Redmont que mais incómodo tinham causado ao regime salazarista uma década antes.

Dujisin em Angola, em 1975, durante o processo de descolonização (Arquivo pessoal/Direitos Reservados)

O peso da guerra colonial

A uma semana dos 50 anos do 25 de Abril, o correspondente norte-americano partilhava como, dias antes da nossa conversa, tinha ficado “chocado” durante um evento no Grémio Literário em que se debateu a disputa entre Henry Kissinger e o embaixador Frank Carlucci e a divisão entre os americanos sobre se Portugal estava ou não prestes a tornar-se comunista. O choque adveio de “ver que o foco não foi nas causas que levaram ao 25 de Abril, o peso físico e intelectual da guerra colonial, porque os capitães não concordavam com aquelas aventuras em África.” Redmont tenta encontrar uma resposta. “Talvez por causa da censura, o 25 de Abril se calhar não é bem recordado no que toca às suas causas, ao porquê de os capitães se terem revoltado…”

Também Ruy Castro destaca o peso da guerra colonial no Portugal de Salazar, que tinha conhecido até antes de vir para Lisboa trabalhar como jornalista. “Eu não vivi apenas em Lisboa durante um ano e quatro meses antes do 25 de Abril e um ano e meio depois dele, já conhecia Portugal desde 1967, quando, aos 19 anos, ganhei um concurso literário no Rio, cujo prémio era um curso de língua e literatura portuguesa em Coimbra.”

Essa primeira visita chocou o brasileiro. “O grau de atraso e de terror era indescritível e, mesmo sob Marcello Caetano, não era muito melhor. E havia a guerra colonial, que fazia com que os únicos jovens que eu via nas ruas estivessem de farda e tivessem um braço ou perna a menos.” A emoção de ter experienciado o 25 de Abril cá deve-se também a isso. “Naquele dia, esses jovens saíram de toda a parte. A cidade ferveu de pessoas da minha idade. A guerra acabou, o terror acabou e ali nasceu outro país, com liberdade, dinamismo e progresso. E o país que se formou nesses 50 anos também já é outro. Os adeptos do Chega têm saudade de um país que eles não conheceram e que nunca existiu.”

De volta a Spínola – e “aquela” medalha

Já em 1975 e nos anos seguintes, quando Mário Dujisin foi correspondente em Portugal, várias histórias marcaram o país e não apenas as querelas internas do processo revolucionário, incluindo “a sangrenta invasão indonésia de Timor, que deixou um saldo trágico de 210 mil mortos, um terço da sua população em 1975, o maior genocídio do século XX em proporção de habitantes de um país”.

O chileno também recorda o “desfecho ocorrido a 11 de março de 1975, quando Spínola fugiu para Espanha num helicóptero após o fracasso do seu projeto de levar a cabo um clássico golpe de Estado de direita contra o MFA”. Inaugurou-se então uma nova fase da política portuguesa que foi alvo de uma cobertura ainda mais intensa pelos correspondentes estrangeiros, como demonstra a investigação dos jornalistas Joaquim Vieira e Reto Monico no livro “Nas Bocas do Mundo – O 25 de Abril e o PREC na Imprensa Internacional”, com chancela Tinta-da-China, que desde 2010 edita os livros de Ruy Castro em Portugal.

Capas de jornais e revistas estrangeiros dedicadas ao 25 de Abril e ao PREC (Direitos Reservados)

Para Dujisin, “o acompanhamento jornalístico na época das ações do grupo de oficiais leais ao ex-presidente Spínola, que passou a atuar na sombra”, é um dado que merece destaque, incluindo as “ações de uma rede de militares de extrema-direita que se juntaram a Spínola na colocação de explosivos nas sedes dos partidos de esquerda, que causaram os únicos mortos do período revolucionário” entre 1975 e 76.

“Vasco Lourenço sempre advertiu que, para Spínola, o 25 de Abril foi um projeto de poder pessoal que tentou impor a todo o custo”, ressalta o chileno. “A sucessão de tentativas de golpe provocou reações entre os militares democratas que quase levaram ao fracasso da criação de um regime democrático, ao ponto de quase estalar uma guerra civil.” 

Lourenço foi “um dos Vascos” que Dujisin teve “a grande sorte de entrevistar” durante os anos em que foi correspondente em Portugal, a juntar a Vasco Gonçalves e a outras importantes figuras, como Mário Soares, Francisco de Sá Carneiro e Álvaro Cunhal.

Álvaro Cunhal e Mário Soares no 1.º de maio de 1974 (Henri Bureau/Sygma/Corbis/VCG via Getty Images)

Entre essas “entrevistas do Verão Quente” contou-se uma com Durão Barroso, então responsável universitário do MRPP/PCP-ML, que recorda como “um estalinista convencido que agitava as massas estudantis sob o pseudónimo 'camarada Abel'". "E veja onde chegou na vida: uma das mais destacadas figuras conservadoras do mundo, que começou a ganhar notoriedade pelo seu apoio a [George W.] Bush na invasão do Iraque, que chegou à presidência da Comissão Europeia e que é agora um alto executivo da Goldman Sachs”.

Até hoje, Dujisin mantém "uma estreita relação de amizade com Vasco Lourenço, um coronel que conserva intacta a sua alma de capitão, com o almirante Martins Guerreiro e, até aos seus respetivos falecimentos, com os majores Otelo, Vítor Alves e Melo Antunes, cujos conhecidos dotes intelectuais fizeram deles os guardiães da preparação do programa do MFA baseado nos chamados três D: democratizar, desenvolver e descolonizar."

Nesses anos em Portugal, “os correspondentes tiveram de cobrir os acontecimentos de um modelo típico de transição por rutura, muito diferente da de Espanha, onde houve uma transição por evolução, já que se realizou com os próprios dirigentes que vinham da ditadura do generalíssimo Franco (1939-1975)”, destaca Dujisin. “Todos os historiadores concordam que o 25 de Abril de 1974 perdurará como uma revolução, porque não podemos esquecer-nos do essencial: a derrota da política da guerra colonial, pelos soldados e pelos capitães, dispostos a tudo para acabar com ela e dar as mãos aos movimentos de libertação das então colónias africanas.”

Ao recordar a história da entrevista exclusiva que conseguiu com Spínola em 1975, no ano em que Dujisin chegou a Portugal, Dennis Redmont admite que “as pessoas poderão perguntar-se porque é que estou a falar sobre ele”, para logo a seguir responder: “Porque isto continua a ser um tema controverso, como vimos recentemente ao saber que Marcelo Rebelo de Sousa lhe concedeu uma medalha secretamente. Marcelo diz que foi má gestão da sua equipa de comunicação, mas eu não acredito numa palavra. Essa medalha é indicativa de que o 25 de Abril não está totalmente enterrado enquanto espécie de campo de batalha.”

Acordar depois de uma noite de pesadelo

Thomas Fischer era um jovem estudante de jornalismo de Frankfurt, na República Federal da Alemanha, quando soube da Revolução dos Cravos. Tinha 20 anos e “vivia numa comunidade, uma espécie de república, de rapazes e raparigas que estavam no início de uma aventura cheia de sonhos de vida pessoal e política”, conta.

“Já íamos às manifestações contra a Guerra do Vietname e estávamos à procura de um exemplo de que os nossos sonhos se concretizariam. No Chile, a deposição de Salvador Allende no golpe de 11 de setembro de 1973 foi para nós uma desilusão e um choque, numa altura em que havia três ditaduras no sul da Europa – Grécia, Espanha e Portugal. Espanha tinha o general Franco, a Grécia tinha os coronéis e Portugal tinha os capitães, que menos de um ano depois daquele 11 de setembro puseram fim à mais antiga das três ditaduras – e sem sangue! Aquilo para nós foi uma coisa fantástica.”

Manifestação de apoio ao 25 de Abril em Dortmund, na RFA, a 5 de maio de 1974 (Klaus Rose\ullstein bild via Getty Images)

Com a namorada e um grupo de amigos decidiram vir conhecer o Portugal da revolução, terra de todos os sonhos, onde Fischer acabaria, anos depois, por se casar, ter dois filhos e divorciar-se, vivendo cá até hoje, com nacionalidade portuguesa desde 2020. “Queríamos apoiar aquela revolução, então numa noite de julho de 1975 pegámos na tenda, metemo-nos no carocha e seguimos para Portugal. As empresas e os bancos já tinham sido nacionalizados, estava em curso a reforma agrária, mas já com divisões dentro do governo de Vasco Gonçalves.”

Como país fundador da NATO, cuja base aérea na ilha Terceira, nos Açores, “tinha uma importância enorme”, o jornalista lembra-se de já haver “medo” quanto ao que o futuro tinha reservado para Portugal. “Uma certa esquerda tinha medo de que os americanos optassem por uma solução chilena cá também. E víamos a Alemanha federal muito mais preocupada com a democracia em Portugal do que tinha estado no tempo da ditadura.”

Apesar dessas tensões, o alemão recorda “quatro semanas maravilhosas” a viajar de carro pelo país, às quais dedica alguns capítulos do seu recém-publicado “Entre Cravos e Cardos – Portugal aos Olhos de um Estrangeiro que se Tornou Português” (Edições 70), evitando sempre que possível as poucas autoestradas que então existiam.

“Entrámos pela Guarda, passámos por várias cidades, Porto, Guimarães, Lisboa, Grândola, claro, e Vila Viçosa, na fronteira com Espanha… Parecia que o ar que se respirava era diferente. Encontrámos pessoas abertas, fomos muito bem recebidos. Foram semanas fantásticas. Era um país a acordar depois de uma noite de pesadelo, cheio de pessoas com esperança… Acho que nunca vi Portugal com tanta esperança como na altura. Mas claro que havia imensa ilusão também. Alguma falsa fé em facilidades… Era como agitar uma garrafa de champanhe e abri-la.”

Entre as coisas que mais o surpreenderam destaca os grandes cartazes de Marx e Mao à venda nas papelarias da Baixa lisboeta, a facilidade de comunicação com uma população em que “20 e tal por cento das pessoas ainda eram analfabetas”, e também a forma como os portugueses conseguiam viver com os salários da altura – algo que o espanta até hoje. “O primeiro salário mínimo [a seguir ao 25 de Abril] tinha sido de 3.330 escudos, creio que, quando viemos, em 1975, já estava nos 4.000, que ainda assim era menos do que o que um estudante alemão podia receber a título de bolsa de estudo… É um mistério que eu, até hoje, não consegui desvendar, como é que se vive com os salários de cá…”

Quando voltaram para a Alemanha, Fischer guardou a vontade de regressar – e voltou, logo no ano seguinte, já a fazer uns trabalhos como jornalista, mas ainda a estudar. “Depois tive de voltar para fazer 26 meses de serviço civil como alternativa ao serviço militar, então obrigatório, mas sempre com a ideia de fazer alguma coisa cá. Não sabia o quê, só sabia que queria voltar.” Ao longo dos anos seguintes foi e veio, até se instalar de vez em Portugal, em 1983.

Questionado sobre o que falta cumprir, meio século depois do 25 de Abril, diz que não sabe se deve olhar para o copo meio cheio ou meio vazio. “O que desejávamos era que esse país pobre encontrasse o seu caminho, mas evitando os nossos erros. Mas claro que isso foi uma ilusão.”

Where have all the flowers gone?

Hoje, diz o alemão, Portugal continua com desigualdades sociais que considera inadmissíveis. “Vais ao centro comercial, que está a abarrotar, mas não vês as pessoas que ficam em casa porque nem dinheiro têm para se deslocar. No meu bairro há uma clínica que promete dentes para um sorriso de Hollywood, mas no supermercado ainda vejo idosos desdentados porque não têm condições para pagar uma consulta. Portugal é capaz de tudo, e quando está em causa o prestígio organiza tudo na perfeição. Foi assim na presidência europeia, na Expo 98, no Euro 2004, na Web Summit. Mas ano após ano é incapaz de organizar o início do ano escolar, por exemplo. É uma estranha mistura de mediocridade e excelência. No campo das tecnologias da informação, por exemplo, vejo coisas em Portugal que fazem a Alemanha parecer jurássica. Sou capaz de não ter rede de internet na costa alemã do Báltico, mas depois ter a melhor internet na ilha do Corvo…” 

Num país “ainda cheio de contrastes”, com “tudo para ser um país fantástico, mas com imensos bloqueios e travões”, Thomas Fischer destaca também “partes de uma elite política que quer o melhor de dois mundos – quer as vantagens da economia de mercado, mas ao mesmo tempo quer continuar a fazer negócios à mesa do almoço como antigamente”, no que considera ser o principal de três fatores que explicam a recente eleição de 50 deputados de um partido abertamente xenófobo e antidemocrático.

“Um é a saudade do passado e o nacionalismo, uma coisa que creio que pesa muito em Espanha, onde ainda há muita gente do franquismo, e onde há questões como o separatismo basco, o independentismo catalão. Depois há a xenofobia, que pode ser a principal razão que leva as pessoas a votar neste tipo de escumalha em França ou na Alemanha. Mas creio que, em Portugal, a preocupação é sobretudo com a corrupção, o compadrio e a ineficiência do sistema político.”

Soldados com cravos nas lapelas no 25 de Abril de 1974 (Getty Images)

No dia da conversa com a CNN, horas antes da apresentação do seu livro no Saldanha, Fischer contou-nos como andara à procura de cravos vermelhos para levar consigo, sem os conseguir encontrar – os mesmos que, dizia-nos Mário Dujisin dias antes, os autarcas de cidades, vilas e aldeias portuguesas mandaram plantar nos viveiros municipais nos anos a seguir ao 25 de Abril, para serem oferecidos como “símbolos da revolução” a toda a gente. 

“Hoje vivi uma coisa um bocado anedótica, que me deixou a pensar, como diz a canção, ‘Where have all the flowers gone?’ Fui a uma florista na Av. 5 de Outubro, que não tinha cravos vermelhos. ‘Só temos estes cor-de-rosa’, disse-me a senhora. ‘É que, sabe, há pessoas que não gostam dos vermelhos, porque o cravo vermelho tem uma conotação política…’"

Cicatrizes desaparecidas e as que estão por sarar

Desde o 25 de Abril, Ruy Castro também foi voltando esporadicamente a Portugal, até que em 1999, “por mero acaso”, calhou estar em Lisboa nas celebrações do 25 de Abril. “Eram os 25 anos da revolução e ninguém parecia dar muita importância à efeméride – acho que as cicatrizes da luta política daqueles anos ainda doíam.” Nesse dia, juntou-se a “uma pequena passeata na Avenida da Liberdade, formada por uns poucos veteranos que sabiam muito bem o que o 25 de Abril significara”. 

O brasileiro traça uma diferença com a atualidade, agora que vem a Portugal quase todos os anos desde que os seus livros começaram a ser publicados cá, inclusive para ver a filha mais nova e os netos. "Estive aí outro dia e fiquei maravilhado com as celebrações dos 50 anos. É natural – as cicatrizes desapareceram, quase todo o mundo daquele tempo já morreu e, hoje, o 25 de Abril está nos livros de História.”

“Depois de todos estes anos, os ‘capitães de Abril’ convertidos agora em generais, almirantes e coronéis, a maioria deles na reserva, entendem que, no essencial, o seu programa foi cumprido”, considera Mário Dujisin. “Portugal é hoje uma democracia parlamentar inserida na UE, o que significou um desenvolvimento imenso em relação ao que existia há cinco décadas, e Lisboa já não é uma odiada metrópole colonial.”

Ainda assim, destaca o chileno, a grande marca deixada pela revolução é uma “profunda saudade", um vocábulo português "impossível de traduzir noutras línguas, porque segundo o poeta Fernando Pessoa, ‘não é uma palavra, mas sim um estado de alma’.” Em castelhano, sua língua materna, “apenas se pode interpretar recorrendo a uma explicação que abarca a melancolia, a nostalgia e o anseio, esta sensação de que ‘todo o tempo passado foi melhor’.”

Falando de saudade, invoca um momento emocionante que deu corpo a essa palavra única, durante o funeral de Melo Antunes, em agosto de 1999, em Sintra, eternizado por António Lobo Antunes, que servira com ele na guerra em Angola.

Mário Dujisin com Melo Antunes, em 1975 (Arquivo pessoal/Direitos Reservados)

"Quando Melo Antunes morreu, vivi no seu funeral uma das situações mais comoventes e emocionantes da minha vida", escreveu Lobo Antunes, citado por Dujisin. "Estavam ali os meninos que fizeram a revolução, aqueles bravos capitães, companheiros de Ernesto, meninos agora com 60 anos, que choravam como crianças. Homens duros, que haviam provado a sua enorme coragem, mas que choravam inconsolavelmente, porque não perderam apenas um amigo e um grande homem. Perderam, acima de tudo, um camarada. Foi muito comovente vê-los tão devastados. Lamentaram a morte do Ernesto, mas também lamentaram muitas outras coisas, aquelas que tinham acabado por não acontecer."

Questionado sobre o que falta cumprir, 50 anos depois do 25 de Abril, Dennis convida todos a consultar o mais recente Índice de Democracia da revista Economist, “obviamente liderado pelos países escandinavos e que, estranhamente, classifica Portugal e Itália como ‘democracias imperfeitas ou com defeitos’, sem incluir na mesma classificação os seus vizinhos, Espanha e Grécia”.

Todos ultrapassaram várias falhas e lacunas, em termos de liberdade de imprensa, de eleições livres, de não-interferência do governo nos processos democráticos, enumera o norte-americano. Mas no caso português, a perfeição ainda não foi alcançada, como o demonstra “o exemplo da medalha para Spínola” atribuída em segredo pelo Presidente da República. “Muitos estrangeiros pensam em Portugal como um país lindo para onde podem imigrar, para viverem num lindo palácio, com segurança, sem grandes problemas, mas ainda há problemas por resolver.”

Há 50 anos, “a revolução quase sem sangue muito admirada permitiu transitar para uma democracia, mas o país continua dividido, as pessoas de esquerda estão insatisfeitas com os 18% de votos no Chega nas últimas eleições e o facto é que o país passou de uma maioria absoluta para um governo minoritário de geometria variável”, destaca Redmont, para quem as recentes legislativas de março são a prova de que “o espectro político em Portugal, tal como em Itália, continua com feridas por sarar”.

“Estou muito interessado em ver que pessoas vão marchar Avenida da Liberdade abaixo neste 25 de Abril. Como vão marchar? O que vão dizer os cartazes? Quantas pessoas, quantos partidos políticos? E quem vai preferir ir à praia? ‘Revolução dos Cravos’ sempre foi um título cativante, toda a gente se lembra dessa revolução, tem uma atratividade simpática e muitos jornalistas estão a preparar histórias para este aniversário. Claro que, com as guerras que estamos a viver, na Ucrânia, no Médio Oriente e com outra a aquecer na Ásia, com a China e tudo o mais, as pessoas podem estar algo distraídas. Mas a nível internacional vão estar atentas. O mundo está atento."

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