"Parecia um filme de guerra", mas era uma das batalhas do século. A Rússia invadiu a Ucrânia há dois anos e João está lá desde o início
João Azov (CNN)

"Parecia um filme de guerra", mas era uma das batalhas do século. A Rússia invadiu a Ucrânia há dois anos e João está lá desde o início

Quando a Ucrânia chamou, João decidiu responder. Para trás, deixou a família, uma vida estável e mais de oito anos de serviço às forças armadas portuguesas. À CNN Portugal, o voluntário português que é conhecido como "Tuga" relata as operações militares, as dificuldades e as necessidades que se sentem na linha da frente no combate à invasão russa. A guerra começou há dois anos, ele está lá quase desde o início

Era suposto ser só uma troca de cadáveres. Ainda Bakhmut resistia e, algures nos seus arredores, um grupo de voluntários que defendiam uma colina no flanco da cidade industrial recebeu uma proposta de cessar-fogo de duas horas, para que ambas as partes recolhessem os seus mortos. Dez minutos depois, um misto de gritos, tiros e explosões abalou o topo da colina. As forças russas, juntamente com mercenários do grupo Wagner, tinham aproveitado a pausa para tentar conquistar aquela posição fundamental para a defesa da região. Estavam a atacar com tudo o que tinham.

“Eles [soldados russos] utilizaram esse tempo para começar a subir a colina com veículos blindados. Dispararam com tudo. Nós começámos a correr pela colina acima para a nossa posição defensiva. Quando chegámos, eles estavam a menos de 15 metros de nós”, conta à CNN Portugal João, de 35 anos, antigo militar do exército português que combate voluntariamente no exército ucraniano desde abril de 2022, quase tanto tempo como o que a guerra tem - faz este sábado dois anos que começou o conflito.

A diferença de meios era gigantesca. O grupo de voluntários, apoiado por militares ucranianos, tinha apenas algumas metralhadores, morteiros, alguns lança-granadas e as trincheiras que ocupavam. Os russos tinham tudo, mais homens, blindados de infantaria, carros de combate e até mesmo a aviação. Os combates foram intensos e duraram mais de três horas. Quando as armas pararam, a colina estava repleta de muitos mais cadáveres do que era suposto recolher. Pelas contas do voluntário português, o exército russo perdeu apenas neste ataque um pelotão – mais de 30 homens.

No entanto, também houve baixas entre os militares ucranianos que os apoiavam. E, para quem está no terreno a combater “ombro a ombro”, essas perdas são sempre difíceis de ultrapassar. “Vi camaradas meus serem atingidos por tiros diretos de morteiro à minha frente. Não resta nada dessas pessoas”, recorda João.

Blindado de artilharia ucraniano dispara contra as posições russas na região de Donetsk, na Ucrânia (Roman Chop / AP)

Esta foi a primeira experiência com “botas no terreno” que o voluntário português teve na Ucrânia. Durante três longos meses, juntamente com voluntários de outras nacionalidades, defendeu a vila de Zaiteseve, a poucos quilómetros de Bakhmut, que na altura ainda se encontrava sob controlo do exército ucraniano. Quando lá chegaram, no final do verão, os bombardeamentos pesados já tinham começado. A pequena localidade já se encontrava completamente em ruínas. Tudo o que restava eram as caves de algumas casas, que lhes serviam de abrigo.

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Viagem ao "triturador de carne"

Apesar de mais de oito anos de experiência no exército português, que incluem destacamentos no estrangeiro, João admite que os primeiros dias foram difíceis. “Ao início, senti medo, agora sinto respeito”, conta. Era preciso fazer uma longa marcha a pé até às posições na linha da frente, onde ficavam durante três ou quatro dias até outra unidade vir ocupar as suas posições. Nas trincheiras a vida era dura e as bombas russas pareciam ser inesgotáveis.

“Foi um choque para mim ver que, afinal, o cenário era muito pior do que aquilo que eu estava a pensar. O primeiro impacto não foi muito bom, admito. Nem quando íamos dormir podíamos descansar. Eu não sabia se ia acordar no dia a seguir. A intensidade desta guerra é brutalíssima”, lembra o português que antes de se voluntariar trabalhava como personal trainer.

"Nunca pensei que fosse viver um filme de guerra". João é português e ajudou a defender Bakhmut

O militar português acabou por passar três meses a defender o flanco do bastião do Donbass. Em outubro, Zaitseve acabou por cair nas mãos do exército russo. A sua experiência no terreno faz com que não tenha ilusões sobre contra quem está a combater. “Eles não estão aqui para matar um ou dois”, garante num tom de aviso de quem já viu mais do que gostaria de partilhar.

Nesta altura, João ainda não o sabia, mas tinha acabado de fazer parte de uma das maiores batalhas deste século e a mais sangrenta de toda a guerra. A Rússia atirava tudo o que tinha para conquistar a cidade de Bakhmut, depois de um primeiro ano de guerra marcado por sucessivos falhanços e alguns desaires militares. De olhos postos na cidade, Moscovo traçou-lhe o destino. Veio a ficar conhecida como “o triturador de carne” devido ao elevado número de vítimas.  As estimativas variam, mas, de acordo com o líder dos mercenários do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, só nesta batalha grupo morreram 22 mil pessoas e aproximadamente 40 mil ficaram feridos.

Soldados ucranianos tentam proteger os ouvidos de rebentamentos das bombas russas dentro de um abrigo na linha da frente, na região de Zaporizhzhia (AP Photo/Libkos)

Depois de umas semanas de descanso, havia de voltar para combater mas desta vez no que restava da cidade. Meses de intensos combates e alguns dos mais fortes bombardeamentos de todo o conflito reduziram a Bakhmut um amontoado de entulho, ruínas e de corpos em decomposição a céu aberto. Ali, cada casa foi uma fortaleza e cada rua, um campo de batalha. Dois exércitos, armados com as mais recentes inovações militares, lançaram tudo o que tinham durante dez meses pelo controlo de uma pequena cidade, esquecida na linha da frente, no coração do Donbass.

“Parecia um filme de guerra”, conta João. A sua unidade voltou a ser chamada para defender Bakhmut, depois de algumas semanas de descanso. Quando chegaram, pouco ou nada havia para defender. Nesta fase, os mercenários do grupo Wagner atiraram tudo o que tinham contra as forças ucranianas. Foram dias muito difíceis “debaixo de fogo direto” a todas as horas. A diferença material entre a Rússia e a Ucrânia fazia-se sentir e não havia prédio ou cave que parecesse seguro. Tudo estremecia à sua volta. Quando tentavam recuar entre edifícios, uma nova ameaça estava sempre à espreita.

“Durante a retirada, recordo-me de o nosso chefe de equipa gritar ‘drone, drone, drone’. Corremos dois ou três quilómetros sempre a olhar para o céu e sem parar. É absolutamente assustador estar a ser perseguido por drones”, afirma o português numa conversa na base militar onde se encontra atualmente, perto da linha da frente, na região de Donetsk.

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"Aguentar a linha”

João, conhecido pelos ucranianos pela alcunha “Tuga”, serviu em diferentes unidades ao longo da guerra. Atualmente, o antigo personal trainer está a servir na polémica 12ª Brigada de Forças Especiais da Brigada Azov, uma unidade criada por voluntários em 2014 para lutar contra as milícias pró-russas na região do Donbass e que ganhou notoriedade ao defender durante dois meses a cidade de Mariupol. Mas são as ligações neo-nazis de alguns dos membros originais desta brigada que lhe atraem atenção negativa. O Kremlin recorrentemente utiliza o nome da brigada para justificar a necessidade de invadir a Ucrânia para “a desnazificar”.

Antes de vir para a Ucrânia, João nunca tinha ouvido falar da unidade. Só descobriu quem era a Brigada Azov quando o comandante Denys Prokopenko e os seus homens ganharam fama ao aguentar onda após onda de ataques em Mariupol, nos primeiros dias da guerra. Centenas de militares acabariam por ser feitos prisioneiros com a queda da cidade em mãos russas. Logo depois ouviu falar dessas ligações à extrema-direita, mas garante que desde que faz parte do grupo não viu qualquer manifestação de simpatia pela ideologia nazi. Muito pelo contrário.

“Desde 2014, a unidade está a fazer um esforço para expulsar todos aqueles que tinham esses ideais. No entanto, essa imagem ainda nos afeta hoje em dia. Infelizmente, temos pessoas e países que não nos querem ajudar diretamente por causa disso”, refere, acrescentando que ele próprio é “150% contra esses ideais e tudo o que eles simbolizam” e adianta que se a unidade fosse tal e qual “como diz a propaganda russa” ele não estaria disposto a ajudá-los.

Grupo de soldados da 12ª Brigada de Forças Especiais da Brigada Azov posam para uma fotografia junto a um blindado de artilharia na linha da frente, perto de Kreminna, na região de Lugansk (AP Photo/Efrem Lukatsky)
Grupo de soldados da 12ª Brigada de Forças Especiais da Brigada Azov posam para uma fotografia junto a um blindado de artilharia na linha da frente, perto de Kreminna, na região de Lugansk (AP Photo/Efrem Lukatsky)

Juntamente com outros voluntários estrangeiros, faz parte de uma equipa de reconhecimento, para trabalhar “na zona cinzenta” do campo de batalha para descobrir unidades, veículos ou checkpoints inimigos. O objetivo destas equipas pequenas é recolher o máximo de informação possível para que os comandantes possam tomar decisões. No passado dia 19 de fevereiro, a 12ª Brigada de Forças Especiais da Brigada Azov publicou um vídeo que mostra um grupo de reconhecimento a atacar posições russas na retaguarda, infligindo várias baixas.

Depois de várias missões na linha da frente, na região do Donbass, a unidade de João foi enviada para a retaguarda para descansar e os militares ucranianos decidiram utilizar as competências do antigo militar português para formar novos militares. A intensidade da guerra leva a que a Ucrânia tenha uma forte necessidade de repor soldados e criar novas unidades. Mas isso requer treino e, na brigada Azov, a exigência é muito mais elevada do que noutras unidades. “O pessoal de outras unidades às vezes chega aqui e fica espantado, porque a exigência é completamente diferente”, insiste.

Mas é essa exigência que faz com que a Brigada esteja a ser capaz de aguentar o mesmo ponto na linha da frente desde junho, sem qualquer tipo de rotação. Normalmente, as brigadas duram apenas um mês e meio na linha da frente, até serem substituídas. No entanto, admite que esta luta “tem sido muito complicada”, mas que apesar de tudo estão “a aguentar a linha”. Mesmo sentido na pele a crescente falta de munições, fruto da indecisão política ocidental.

“É uma guerra muito cansativa, intensa e desgastante. Nós temos muita falta de tudo. A falta de munições de artilharia - e até de armas ligeiras - já se está a fazer sentir e isso faz aumentar as baixas. A falta de armas paga-se com vidas. Menos um carregador pode matar”, alerta o veterano português.

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A decisão

Mas já passaram quase dois anos desde que entrou no país decidido a defendê-lo da agressão russa. A Ucrânia chamou e ele decidiu responder. Como muitas outras pessoas, seguiu atentamente tudo o que se passava na Ucrânia desde o primeiro momento. Passava horas a olhar para o telemóvel e com a televisão ligada em casa a tentar perceber como estavam os ucranianos a aguentar. Até mesmo no trabalho, não conseguia tirar o pensamento da Ucrânia.

Foi nesse momento, que “começou a luta” na sua cabeça. Poucos dias depois de tudo ter começado, João sentia-se chamado pela causa ucraniana. Mas haviam contas para pagar e uma família a ter em conta. Quando começou a desabafar com colegas do trabalho acerca daquilo que lhe ia na cabeça diziam-lhe que tinha uma boa vida e que era maluco em sequer pensar em ir para lá. Só que João não estava satisfeito. Sentia que “tinha a experiência e conseguia ajudar” o povo que via a ser massacrado. Em abril de 2022, decidiu dar o passo em frente.

“Era uma luta eu desde que deitava a minha cabeça na almofada. Tive uma enorme luta até ao momento em que decidi dar o passo em frente. Sem dizer nada a ninguém, comprei o bilhete. Dei uma semana a mim mesmo para me despedir do emprego e despedir-me da minha família”, explica João. Chegou mesmo a temer a reação da sua mãe e das irmãs, mas elas conhecem-no e já suspeitavam que era inevitável. “Não reagiram muito bem, mas apoiaram-me. Sabiam que mais tarde ou mais cedo eu ia dar esse passo”, acrescenta. De lágrimas na cara, despediu-se da família mais próxima e foi para a Ucrânia.

A fotografia de um soldado ucraniano junto à seu túmulo, numa secção do cemitério de Kharkiv, chamada Beco da Glória (AP Photo/Vadim Ghirda)

Dois anos depois do início da guerra, para João o cenário continua claro, a defesa da Europa e a luta pela soberania ucraniana são a mesma batalha. E, como em todas as batalhas, o tempo e a morte corroem a vontade de lutar. Mas não na Ucrânia. Para os ucranianos, a fadiga de guerra é um luxo que só é permitido aos estrangeiros. “Eles lutam pelo país e a família deles” e, por isso, só pedem duas coisas: munições e, mais importante, que não permitam deixar o país cair no esquecimento.

“Se vencerem, os russos não vão querer ficar por aqui. A proteção da Europa defende-se aqui. Não é por estarem a quatro mil quilómetros que estão a salvo. Se fecharmos os olhos, quando dermos por isso eles estão a 2.500 quilómetros. Não se esqueçam de nós”, apela.

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