Os jovens médicos que há 50 anos iniciaram uma revolução em Portugal. A da Saúde
Hospital pré 25 de Abril (Vasco Trancoso/Direitos Reservados)

Os jovens médicos que há 50 anos iniciaram uma revolução em Portugal. A da Saúde

🌹 50 ANOS DO 25 DE ABRIL

REPORTAGEM 🌹
Joana Azevedo Viana

FOTOS
Vasco Trancoso, Ana Jorge, Leonor Duarte de Almeida

Num tempo em que por cada 1.000 recém-nascidos morriam 45 bebés em Portugal e em que por cada 100 mil partos havia 59 mães que perdiam a vida, num tempo em que os maridos temiam que as suas mulheres se tornassem “desobedientes” por se relacionarem com médicas, num tempo em que a contraceção era discutida na clandestinidade ou com recurso a dois bonecos e uma melancia, num tempo em que os médicos faziam desenhos porque os doentes não sabiam ler os guias de tratamento, num tempo em que o analfabetismo nem sequer permitia a devida utilização de um mero supositório, num tempo desses, que era o nosso tempo há 50 anos, grupos de jovens médicos de Lisboa, Porto e Coimbra lançaram a "semente" que faria brotar a raiz do Serviço Nacional de Saúde. "Fomos funcionários do SNS antes do tempo"

Vasco Trancoso estava escalado para trabalhar nas urgências do Hospital de São José, em Lisboa, às 8h da manhã. Saiu de casa, em Campolide, rumo ao trabalho quando, em frente ao Rádio Clube Português, foi intercetado pelos militares que tinham levado a cabo o golpe. Era 25 de Abril de 1974. "Acabei por ser escoltado até ao hospital por um jipe do Movimento das Forças Armadas (MFA)."

Naquela manhã, ninguém sabia qual seria o desfecho da revolução em marcha, que no caso de Trancoso e de outros jovens médicos envolveria uma outra revolução. "Nesse ano, os médicos do meu curso tiveram de fazer o serviço militar obrigatório. Eu calhei ir para Mafra, éramos 400 cadetes, e isto coincidiu com o início das campanhas de dinamização cultural do MFA em outubro. Íamos em camionetes e outros veículos militares por aldeias e, no caso dos médicos, focámo-nos em inspeções sanitárias em fábricas e em educação sanitária à população – explicar um simples lavar de mãos, que uma simples gripe não deveria ir procurar logo uma urgência..."

Foi durante essas campanhas que médicos como Trancoso, José Gameiro, Eduardo Barroso e outros, ficaram cientes da "injustiça" que grassava em Portugal em termos de cuidados de saúde. "Apercebemo-nos de que as populações das aldeias e da periferia tinham todas muito menos condições", conta à distância de cinco décadas. "Tínhamos 75% da população que pertencia aos hospitais ditos distritais com apenas um quarto dos recursos de saúde. E depois Lisboa, Porto e Coimbra tinham 75% dos recursos humanos e materiais – médicos, enfermeiros, camas – para apenas um quarto da população."

Foi a "semente que faria surgir a raiz" do Serviço Médico à Periferia (SMP), conta o gastroenterologista, referindo "uma das coisas mais fantásticas e mais belas que aconteceram" na sua vida de médico. "Tem havido uma narrativa de que o Ministério da Saúde entendeu que havia necessidades de saúde a nível periférico e insistiu para que houvesse o SMP, mas não é verdade", assegura. "Foram os próprios médicos, já com esta semente, já com aquele espírito de generosidade que Abril fez nascer, que acharam que havia necessidade disso e que tiveram de negociar com o Ministério."

Enfermaria do Hospital dos Capuchos, em Lisboa, em 1976 (Vasco Trancoso/Direitos Reservados)

 

O quebra-cabeças

Ana Jorge não integrou a primeira leva de médicos que, após a Revolução dos Cravos, partiu para a periferia para fazer chegar cuidados de saúde a todos, assalariados e camponeses, do litoral e do interior – mas foi na sua casa em Lisboa que algumas bases do SMP começaram a ser delineadas. “O primeiro grupo partiu a 13 de julho de 1975 e eu era casada com um colega que fez parte desse grupo, então metade das coisas passava-se na minha casa, pequenas reuniões preparatórias” entre os jovens médicos acabados de se formar nas universidades de Lisboa, Porto e Coimbra, conta a atual provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. 

Apesar de só ter integrado o segundo ano do SMP, passou algum tempo em Mértola com o então marido, Álvaro Carvalho, durante os primeiros meses de uma experiência que se provaria o embrião do Serviço Nacional de Saúde (SNS), no mesmo ano em que Trancoso foi cumprir o seu SMP nos concelhos de Tomar, Ferreira do Zêzere e Vila Nova de Ourém. Ainda nesse ano, recorda o gastroenterologista, o governo provisório tentaria extinguir o serviço à periferia, depois do 25 de novembro. "Mas o curso que veio a seguir bateu-se pela continuidade e felizmente venceu."

Era o curso de Ana Jorge, que a 1 de fevereiro de 1976 partia para Alcácer do Sal com outros seis médicos, todos homens. “Eu tinha 25 anos e levei uma criança de três meses, uma loucura.” Sorri.

Alcácer não era das zonas mais distantes para onde as centenas de médicos foram cumprir um ano obrigatório de serviço à periferia, entre 1975 e 1982, que por iniciativa do "núcleo duro" integrado por Trancoso, e graças às negociações lideradas por Constantino Sakellarides, se tornou condição para o acesso à especialidade. Partiam quase sempre em grupos de amigos de curso que concorriam em conjunto a este ou àquele local.

“Não era assim tão longe, mas na altura parecia longe”, recorda a antiga ministra da Saúde. “A autoestrada acabava no Fogueteiro, portanto para chegar a Alcácer íamos pelo meio de Setúbal e levávamos umas duas horas e tal a lá chegar.”

(Cedida por Ana Jorge/Direitos Reservados)

O grupo de Ana Jorge acabou por se dividir em dois, embora a casa onde a médica se instalou funcionasse como ponto de apoio para todos: três médicos optaram por ir viver para a estalagem da Barrosinha, os outros quatro ficaram numa casa que “seria da Câmara, não me lembro bem, só me lembro de que não pagávamos renda” – Ana Jorge com o filho recém-nascido; um médico cuja mulher, engenheira agrónoma, “foi trabalhar na reforma agrária”, e o filho de ambos, de três anos; um terceiro médico, José Alberto, e a mulher, a enfermeira Fátima, que o grupo convenceu a juntar-se à aventura “porque precisávamos de enfermeiros”; e um quarto colega, que viajou sozinho.

Uma das experiências que Ana Jorge recorda até hoje foi a de um parto que até nem foi difícil, mas em que a criança nasceu sem respirar. “A criança nasceu mal. Eu reanimei-a, dentro daquilo que era possível fazer na altura, quer dizer, aos dias de hoje eram quase barbaridades, não se faz... Mas na altura não havia mais nada. Havia mãos e pouco mais. Consegui pôr a criança a respirar e no dia seguinte estava viva. De vez em quando lembro-me desse bebé porque ainda por cima fui para Pediatria. Aquilo marcou-me.”

Três anos antes, em 1973, as elevadas taxas de mortalidade infantil e materna em Portugal chocavam com os números no resto da Europa – por cada 1.000 recém-nascidos morriam em média 44,8 bebés em Portugal, por cada 100 mil partos 59 mães perdiam a vida.

Leonor Duarte de Almeida, que cumpriria o SMP no final da década no interior alentejano, também guarda na memória um parto que a fez “levar as mãos à cabeça”. 

Leonor Duarte de Almeida (primeira mulher a contar da esquerda) com colegas e habitantes em dia de consultas médicas numa fábrica, "uma espécie de embrião da medicina do trabalho" (Arquivo Pessoal/Direitos Reservados)

“Chamaram-me de urgência para fazer um parto em Ferreira do Alentejo e lá fui, claro, a pretender mostrar confiança. Estavam lá umas freiras da Misericórdia, habituadas a fazer partos, e acabou por correr tudo bem. No fim foram buscar uma garrafinha de amêndoa amarga para bebermos atrás do biombo para comemorar num cúmplice pecadilho a vida, todas a rir e felizes por ter corrido tudo bem. Mas eu não sabia se ia correr tudo bem. Tinha assistido a uns partos na Magalhães Coutinho [maternidade de Lisboa inaugurada em 1931] e tentei fazer igual. Mas se fosse uma coisa complicada…”

“Os partos eram o nosso grande quebra-cabeças”, recorda Ana Jorge. “Sempre que chegava uma mulher em trabalho de parto, a primeira coisa era tentar perceber se dava para chegar a Setúbal. Se não dava, lá tínhamos de ser nós a fazê-lo.”

O homem debicado pelas galinhas

António Leuschner tinha a mesma idade de Ana Jorge quando cumpriu o SMP em Vila Real, Trás-os-Montes, também em 1976. Fala numa “espécie de antecâmara do SNS” porque, apesar de o direito à saúde ter sido inscrito na Constituição redigida e aprovada nesse ano, dois anos depois do 25 de Abril, o diploma que constituiria o SNS só seria aprovado mais tarde, em 1979. “Nós fomos em março e a Constituição foi aprovada em abril, portanto tivemos uma experiência na altura inédita - fomos os primeiros funcionários do SNS antes do tempo”, recorda o psiquiatra. 

“Antes de haver o SNS já havia médicos e serviços médicos na periferia que eram, de alguma forma, a guarda avançada do SNS.” E foi com alguns desses profissionais, os mais antigos, com consultórios privados, que os jovens enfrentaram um dos primeiros e poucos entraves à experiência sem precedentes, que democratizou o acesso a cuidados de saúde e que em três décadas ajudou a catapultar Portugal da cauda da Europa para o 12.º melhor sistema de saúde do mundo.

Com outros 13 médicos, o grupo de Leuschner foi o segundo a chegar a Vila Real para cumprir o SMP, pelo que já havia uma certa estrutura instalada no terreno pelo grupo mais pequeno que foram substituir. “Mas o grupo anterior tinha tido atividade fundamentalmente no hospital e não chegou a estar um ano, porque foi em julho e veio embora no fim de fevereiro. Nós trabalhávamos em Vila Real, Santa Marta de Penaguião, Vila Pouca de Aguiar, Ribeira de Pena, Murça, Alijó e Sabrosa”, enumera de memória. 

Todos faziam horas no hospital de Vila Real e depois, “em cada dia, íamos em grupos de dois fazer consultas, domicílios e outros serviços a um destes sítios – e os acessos não eram como hoje, não havia estradas, não havia sequer jipes ou desses veículos para percorrer alguns daqueles caminhos. Havia situações, por exemplo em Ribeira de Pena, em que só conseguíamos chegar a casa das pessoas de burro.”

Ao início, as relações com alguns dos médicos locais, “mais velhos” e que olhavam para os jovens recém-chegados “com alguma desconfiança”, foram difíceis, recorda Leuschner. Leonor Duarte de Almeida também se lembra de “uma certa retração inicial” dos médicos locais, “que estavam instalados há imensos anos e que de repente viram aparecer ali uma data de miúdos, todos divertidos e simpáticos e alegres e motivados para trabalhar”. 

“Achavam que éramos, enfim, agentes do 25 de Abril e, portanto, que íamos pôr em causa… Repare que os médicos eram tradicionalmente pessoas bem instaladas na sociedade, proprietários também, alguns tentavam criar dúvidas na população, que depois nos contava…”, acrescenta José Manuel Boavida, atual presidente da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal, que cumpriu o SMP em Reguengos de Monsaraz e depois no sotavento algarvio, entre 1978 e 1979.

(Vasco Trancoso/Direitos Reservados)

O endocrinologista recorda que “o SMP veio abalar um pouco uma estrutura que estava lá, pronta a ser desenvolvida, mas que precisava de sangue novo”, na sequência do que classifica como “pedra basilar” dos cuidados de saúde que foi “o lançamento dos centros de saúde nos últimos anos do Marcelismo, pela equipa da Escola Nacional de Saúde, no Instituto Ricardo Jorge – que dirigiu muita dessa reforma, permitindo uma dinamização desses centros de saúde, que estavam muito acomodados e dependentes de médicos que valorizavam mais a sua prática privada do que a prática pública”.

Os jovens médicos que chegaram à periferia tinham “uma dedicação e uma motivação enormes”, acrescenta, era um tempo de cumplicidade, “tanto mais que muitos deles nunca tinham sequer estado na província, aquilo era uma novidade para eles”. Foi esse o caso de Leonor Duarte de Almeida, que recorda “um ano que fez bem” a todos os jovens médicos, “o nosso Erasmus” antes de haver Erasmus.

“Saímos dos hospitais, do litoral, saímos da vida comum, da família… Éramos jovens, a viver um momento político de liberdade, tínhamos acabado o curso e tivemos oportunidade de ser autónomos - nas nossas vidas, na medicina e também no sentido de conhecer outras realidades que eram completamente estranhas para muitos de nós.”

A médica, que viria a especializar-se em Oftalmologia, tinha 25 anos quando partiu para o Alentejo, primeiro para Aljustrel, onde fez o estágio de saúde pública, depois para Ferreira do Alentejo, onde cumpriu o SMP, entre 1979 e 80. Entre as tarefas que lhe foram atribuídas estavam incluídos os domicílios na aldeia de Figueira de Cavaleiros. “Lembro-me de uma vez ter ido a uma chamada de um doente acamado e, quando lá cheguei, encontrei o homem sozinho, com umas galinhas em cima dele a debicarem uns bocados de pão, que a família provavelmente lhe tinha deixado antes de ir para o campo trabalhar, para o homem comer. Mas ele não comeu e então estavam lá três galinhas em cima dele, na cama, a debicar… Nunca tinha visto uma coisa daquelas.”

Anos antes, no arranque do SMP, Vasco Trancoso, então com 31 anos, deparara-se com outras situações impressionantes. "Lembro-me de um caso de um doente que andava aflito com dores abdominais. É preciso recordar que as pessoas tinham de se deslocar longas distâncias quando precisavam de ser vistas. Lembro-me de que lhe tinham feito radiografias ao estômago, aos intestinos, à vesícula biliar, e ninguém dava com a origem das dores."

Quando o médico lhe pediu que se despisse, "para lhe pôr a mão na barriga e fazer a apalpação do abdómen, vejo que tinha uma enorme hérnia abdominal. Ter-se-iam evitado todos aqueles exames se o tivessem observado, mas nunca tinha sido observado, nunca ninguém lhe tinha posto a mão na barriga... Até porque, na altura, havia pudor, as pessoas não queriam despir-se em frente ao médico, não gostavam de ser auscultadas nem que lhes tocássemos, esperavam que as observássemos por cima da roupa."

Urgênia pediátrica do Hospital D. Estefânia em 1976 (Vasco Trancoso/Direitos Reservados)

“Recebi um telefonema do Leuschner a dizer que o padre tinha sofrido um atentado”

José Manuel Boavida tinha 26 anos quando foi cumprir o SMP, primeiro durante oito meses em Reguengos de Monsaraz, depois durante um ano no Algarve, concretamente em Castro Marim e Vila Real de Santo António. Fez parte da quarta leva do SMP, quando “muito do caminho já estava percorrido”, após ter “perdido dois anos de curso – um por ter estado preso, o outro porque aconteceu o 25 de Abril e tive de ir fazer política”, partilha a sorrir.

No 1.º de Maio de 1973 foi apanhado com dois amigos a distribuir panfletos em Lisboa contra a guerra colonial, quando cometeram a imprudência de passar em frente a uma esquadra – “jovens naif que éramos”. Esteve preso e acabou por ser o golpe militar que depôs a mais longa ditadura europeia do século XX a resgatá-lo. “O 25 de Abril salvou-me de ser um desertor, de ser um emigrante à força, porque à guerra não iria com certeza. Não sei o que teria sido de mim sem o 25 de Abril.”

No Portugal profundo – numa época em que, como recorda Raquel Varela no livro “Uma Revolução na Saúde. História do Serviço Médico à Periferia” (editora Húmus), a periferia ficava por vezes a escassos 15 quilómetros das cidades – também a maioria da população nunca teria sabido o que era ser assistida por um médico não fosse o 25 de Abril de 1974. Para Jorge Seabra, um dos vários médicos cujos testemunhos foram recolhidos pela historiadora, “o SMP foi o 25 de Abril na Saúde”, numa altura em que muitas pessoas nunca tinham visto um médico na vida. “Muitas nunca tinham medido a tensão, não tinham sido auscultadas”, destaca Ana Jorge, recordando uma fotografia tirada quando o marido estava a dar uma consulta “com as pessoas à espreita à janela para verem a novidade”.

(Arquivo pessoal de Ana Jorge/Direitos Reservados)

Ana Jorge e António Leuschner recordam um momento de grande ebulição política no pós-Verão Quente de 1975, nos meses que precederam a aprovação da Constituição da República Portuguesa, quando ambos cumpriram o SMP. No caso da antiga ministra da Saúde, o seu grupo focou-se, a par das urgências hospitalares, consultas e domicílios, em campanhas de vacinação fora do centro de Alcácer, “nas herdades” e cooperativas agrícolas, e numa dessas idas às herdades foram apanhados numa rixa política.

“Não me lembro exatamente o que aconteceu, sei que meteu a GNR e nós estávamos lá, de maneira que aquilo foi um bocadinho tenso… Naquele momento reunimo-nos todos e dissemos ‘estamos aqui, somos uma equipa de saúde, não tomamos partido, nem daqui nem de lá’, isso foi ponto assente. Era essa a nossa missão principal e tivemos de ficar lá mais tempo do que era preciso. Mas pronto, não houve grandes problemas, apenas uns feridos ligeiros.”

Leuschner destaca um “episódio muito marcante” em 1976, que acabaria por fazer manchete de jornais e do noticiário – vivido em primeira mão, no primeiro dia de abril daquele ano, pela sua mulher, médica hematologista que integrou o mesmo grupo de jovens médicos no SMP em Vila Real (e que partiria demasiado cedo, meses antes de completar 43 anos). “Como lhe disse, nós íamos às localidades e fazíamos urgências em grupos de dois e calhou estar ela e uma colega no hospital [de Vila Real] na noite em que o padre Max foi morto”, recorda o psiquiatra.

Chamada de capa da edição de 3 de abril de 1976 do Diário de Notícias sobre o atentado sofrido pelo padre Max e uma sua estudante, em Santa Marta de Penaguião (Direitos Reservados)

O atentado em Santa Marta de Penaguião foi relatado pelo médico Raul César de Sá, à data militante maoísta, do mesmo grupo de jovens médicos, no livro de Raquel Varela.

“Em 1976 passavam-se os anos agitados depois do 25 de Abril. Havia ataques às sedes de partidos de esquerda, precedidas sempre por procissões de desagravo a Nossa Senhora. No Norte do país, isso acontecia com uma enorme frequência. A sede do PCP em Vila Real não foi atacada, apesar de ter havido procissão. Corria a história de que o cónego Sarmento teve medo dos dois ou três veteranos do PCP que tinham fama de duros (dizem que do tempo do Militão Ribeiro, que era de Murça). O cónego Sarmento era o chefe da ‘reação’ local. Modelo típico de padre miguelista, foi uma das primeiras pessoas que conhecemos em Vila Real. Batemos-lhe à porta à procura de alojamento e encontrámos o homem rodeado de propaganda de extrema-direita e a gabar-se de que era ‘progressista’ do Partido do Progresso. Arranjou-nos alojamento numa quinta, mas eu acabei por ter de sair. Era candidato da UDP [União Democrática Popular] e os meus colegas tiveram medo.” 

César de Sá conheceu o padre Max porque também ele “era candidato convidado [a deputado] pela UDP” e lembra “um homem hiperativo, popular, que não mandava dizer nada por ninguém, por isso era odiado pela direita toda”. Mais do que ativista político, Maximino Barbosa de Sousa “era militantemente padre”, escreve o médico. “Eu casei-me nessa altura e ele ficou muito impressionado por eu não me casar pela Igreja, ‘vou casar-te, isso assim não está bem’.”

Poucos dias depois do casamento, “colocaram-lhe uma bomba no carro", a 1 de abril de 1976. “Ele levava uma amiga, a Maria de Lurdes, com a qual tinha ido dar umas aulas à Cumeeira, que morreu imediatamente. Eu estava no Hotel Cabanelas e recebi um telefonema do Leuschner a dizer que o padre tinha sofrido um atentado. Saí a correr, sem saber o que fazer, ainda espreitei debaixo do carro, não fosse haver uma bomba para mim. Depois foi uma noite a pé. Fizemos tudo o que podíamos, com o apoio do dr. Campos, que era um ótimo cirurgião do hospital. Tentámos transferi-lo de helicóptero, não conseguimos. Por terra, não tínhamos a certeza de que sobreviveria. O padre sobreviveu até às 7 horas da manhã [de 2 de abril], quando tínhamos decidido finalmente enviá-lo por ambulância, por termos percebido que ninguém nos mandaria helicóptero nenhum. [...] Nunca foram presos os culpados da morte desse homem bom e generoso. Nunca mais me esqueci disso e a recordação do SMP estará sempre a ele ligada.”

O padre Max e a estudante Maria de Lurdes, da UDP, assassinados num atentado à bomba em Santa Marta de Penaguião (Direitos Reservados)

Contraceção: as sessões clandestinas

Também militante da UDP era a enfermeira Graciete, que Ana Jorge já conhecia dos tempos em que foi médica tarefeira nas urgências do hospital de Setúbal, logo após o 25 de Abril, quando “os hospitais precisavam de gente”.

“Eu conhecia-a bem e ela estava lá quando chegámos a Alcácer, o que foi muito bom porque era uma pessoa local e facilitou algum trabalho”, recorda a pediatra, evocando uma “ativista política da esquerda mais à esquerda, que entretanto até foi presidente da Câmara”. Hoje já falecida, a médica diz que era “fundamentalmente  uma mulher de trabalho, com uma relação muito grande com a população” e que se tornou essencial para desenvolver laços de confiança com as mulheres locais.

Foi com a ajuda da enfermeira Graciete que conseguiram encetar uma pequena grande revolução nos cuidados materno-infantis e na saúde das mulheres de Alcácer e arredores. “Na caixa de previdência, quando fazíamos consultas, atendíamos todos, crianças, grávidas, os mais velhos, mas tínhamos um dispensário que não funcionava. Os centros de saúde já tinham sido criados, os primeiros da reforma de Gonçalves Pereira em 1973, e tentámos fazer um ali, fizemos um esquisso para fazer umas obras e tentámos arranjar instalações, mas não havia. O que havia era um espaço do Montepio, uma associação onde havia consultas para as pessoas que eram sócias e que, portanto, tinham benefícios. E nós conseguimos convencer a direção do Montepio a ceder-nos aquelas instalações para montarmos um centro de saúde – e conseguimos que todas as crianças e mulheres fossem atendidas no mesmo espaço.”

A partir de então, “tudo o que era saúde da mãe, da mulher, das grávidas, das crianças, era ali. Fizemos um precursor de um centro materno-infantil, onde as pessoas eram todas atendidas da mesma maneira, ninguém pagava nada. Quem não tinha caixa tinha o mesmo tipo de assistência, sendo que eu dizia à direção-geral ‘façam as contas atrás do balcão’ [risos]. Funcionou, acho que foi muito bom – e foi uma mudança grande.”

O grupo de jovens médicos convenceu a caixa a abrir uma consulta inédita de planeamento familiar e aí Ana Jorge, que ficou responsável pela consulta com a ajuda de uma colega obstetra de Lisboa, teve “alguns problemas” quando começou a colocar dispositivos intrauterinos (DIU). “Foi muito complicado porque aquilo não foi bem entendido, quase me disseram que nós fazíamos abortos. Foi de tal maneira que tive de me passear aos fins de semana em Alcácer com o marido e com o filho.” Sorri com alguma melancolia.

“Isto hoje é quase ridículo, mas lembro que isto foi feito exatamente para as pessoas perceberem que a pessoa tem família, que é igual aos outros, que está ali a tentar defender as mulheres e a saúde das mulheres. Foram uns primeiros tempos tensos, foi a parte mais dura. Estas sessões de esclarecimento sobre contraceptivos e planeamento familiar não eram uma imposição, eram para as pessoas terem conhecimento do que podiam fazer. Mas pronto, depois a coisa apaziguou.”

O grupo de Leonor Duarte de Almeida (à esquerda) numa das inúmeras sessões de convívio que faziam nas folgas (Direitos Reservados)

No Alentejo profundo, a situação não era muito diferente. Tal como Ana Jorge recorda “sessões ditas clandestinas” com as mulheres – “que a própria enfermeira Graciete convocava, em que às vezes era um bocadinho ver como é que elas saíam de casa à noite para poderem ir falar de problemas de mulheres” –, também Leonor Duarte de Almeida se lembra das “mulheres inteligentíssimas” que conheceu em Aljustrel e Ferreira do Alentejo, “vítimas” da sociedade retrógrada que agora aprendia a reinventar-se depois de 48 anos em ditadura, “mas também dos maridos”.

“Por acaso foi uma coisa interessante porque criámos estas reuniões de literacia em saúde, uma coisa que não era habitual, e as mulheres diziam-nos que queriam ir mas que nem sempre podiam, porque os maridos não queriam. ‘Mas nós vamos’, garantiam. Eles até eram todos lá das cooperativas, progressistas a nível político, todos pela liberdade, muito democráticos, mas depois, na verdade, nas casas deles alguns eram uns autênticos tiranos, opunham-se a que elas fossem às reuniões, diziam que não era coisa para mulheres, que elas tinham era de estar em casa.”

Nas sessões de esclarecimento, as mulheres partilhavam estes diálogos com o grupo de sete médicas – e também o que era o seu dia-a-dia, para Leonor mais um motivo para a mudança de mentalidades. “O que era extraordinário era aquelas mulheres a contarem-nos que iam para o campo trabalhar, iam tratar dos animais, tinham bebés em casa, davam de mamar às crianças, e depois, no fim do dia, ainda tinham de ir fazer o jantar. Às vezes dava discussão porque os maridos achavam que íamos para ali criar abertura nelas."

É o que define como "uma contradição", em que viam "mulheres médicas a estimular as mulheres deles a 'serem desobedientes', a não seguirem o padrão". "E havia lá mulheres muito inteligentes, uma coisa impressionante, como é que elas pensavam estas coisas tão à frente sem terem acesso à educação… Algumas eram analfabetas, não tinham estudado e queriam aprender. Acho que fomos uma lufada de ar fresco nas vidas delas, assim como elas foram nas nossas.”

"Sala de brincar" do Hospital D. Estefânia no início da década de 1970 (Vasco Trancoso/Direitos Reservados)

 

Dois bonequinhos e uma melancia

Toda a experiência do SMP “foi como entrar num filme”, recorda Leonor Duarte de Almeida. “Eu acho que o cinema, como os livros, nos abre a cabeça para outras ideias e isto foi uma espécie de filme só nosso.” E foi durante a rodagem desse filme da vida real na periferia que muitos jovens médicos aproveitaram para abrir também as portas à cultura a uma população durante décadas presa ao trabalho no campo, em minas, em fábricas, e largamente sem acesso a educação de qualidade.

“Fora do horário comum, começámos a apresentar filmes que rebobinávamos numas máquinas enormes, que aprendemos a manusear, hoje obsoletas, mas que nos faziam acreditar que éramos os promotores do Cinema Paraíso”, conta Leonor Duarte de Almeida a rir, recordando um dos filmes didáticos do dr. António Cardoso Ferreira, um “visionário” que dinamizou a saúde pública em Aljustrel, da mesma forma que Francisco George o fez em Cuba do Alentejo.

“Era um filme tipo desenho animado – hoje em dia contraproducente, agora que queremos mais nascimentos, não é? – com dois bonequinhos e uma melancia, em que de repente começavam a aparecer mais bonequinhos – os filhos – e então inicialmente o pai dividia a melancia e todos comiam e sobrava, mas à medida que iam aparecendo mais bonequinhos as fatias iam ficando mais fininhas. Era uma maneira de falar de planeamento familiar.”

Junjeiros, uma aldeia em Aljustrel onde Leonor Duarte de Almeida fazia consultas e vacinação de crianças (Arquivo pessoal/Direitos Reservados)

A médica recorda outros momentos de ouro do SMP, como quando Zeca Afonso foi tocar e cantar para a população local ou quando o padre Fanhais acabou a confraternizar com o grupo de médicos na casa onde viviam – ou quando a própria convenceu o “fantástico e discreto” Vasco Granja a ir à pequena aldeia de Figueira dos Cavaleiros para o Dia Mundial da Criança, comentar uma exposição que a jovem médica montou com imagens trazidas de Lisboa a mostrar a fome no mundo. “Ele levou alguns dos seus excecionais desenhos animados e lembro-me de o ver, com um brilhozinho nos olhos, rodeado de crianças, quase como se fosse também ele outra vez criança.”

Entre as médicas com quem Leonor cumpriu o SMP em Ferreira do Alentejo contava-se Isabel Bernardes, “bastante mais velha, teria 39 ou 40 anos, às vezes era quase como nossa mãe”, recorda a oftalmologista. Enfermeira, casada com Fernando Miguel Bernardes, um engenheiro tornado escritor, Isabel tinha decidido tirar o curso de Medicina e juntara-se ao grupo para cumprir o seu ano de SMP obrigatório. “Um dia, perguntou-me se ela e o marido podiam trazer lá um amigo para jantar connosco.” Só mais tarde é que Leonor percebeu quem era aquele amigo “muito tímido” – Francisco Miguel Duarte, um dos presos políticos que mais tempo passou atrás das grades durante o Estado Novo, num total de 21 anos, com duas passagens pelo campo de concentração do Tarrafal. “Tirei-lhes uma foto lindíssima, com o casal Bernardes a passear pelo campo de mãos dadas e o Francisco à frente, com aquele ar discreto.”

O casal Bernardes a passear-se pelo campo no Alentejo com Francisco Miguel Duarte, um dos presos políticos que mais tempo passou encarcerado, fotografados por Leonor Duarte de Almeida (Arquivo pessoal/Direitos Reservados)

O supositório

Explicar, explicar e explicar – e ouvir. Foi esta uma das grandes lições que os jovens médicos aprenderam durante o SMP, recordado por todos como uma experiência valiosa de “proximidade e humanismo”, que os ajudou a lembrarem-se sempre, nas palavras de Ana Jorge, que "não tratamos doenças, tratamos pessoas, há uma diferença substancial".

“Houve muitos casos que nos ajudaram a perceber como é importante explicar tudo”, lembra António Leuschner. “Na altura davam-se antiácidos, que eram umas pastilhas para a indigestão, e eu receitei umas a um doente e ele trocou a posologia e engoliu-as todas, ficou com aquilo entalado na garganta. Também havia gente que não percebia o que era um supositório e que os usava de maneira inapropriada… Uma coisa era trabalhar no hospital aqui [no Porto], outra era atender estes doentes. Havia muitos analfabetos, algumas pessoas a quem era impossível dar coisas escritas, por exemplo, porque não conseguiam sequer ler, famílias inteiras que não sabiam ler… Era preciso ter isso em atenção, às vezes fazer uns desenhos... Essas coisas uma pessoa só percebe fazendo, não se aprende na escola. É claro que o bom senso é um bom mestre, mas de qualquer maneira há coisas que uma pessoa nem se lembra que podem ser dúvida para alguém.”

A par do analfabetismo, que em 1970 atingia uma em cada quatro pessoas, Portugal estava também atrasado nas infraestruturas e saneamento, fora de Lisboa, Porto e Coimbra – incluindo nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, onde vários médicos do continente cumpriram o seu ano de SMP. Ana Jorge lembra-se de fazer domicílios em casas ainda com telhados de colmo “no caminho de Alcácer para a Comporta”, onde havia “situações de saúde muito graves” e onde “grassava a tuberculose”.

José Manuel Boavida recorda o elevado número de doenças infeciosas como a febre tifoide, a brucelose e as hepatites. “Lembro-me de a autarca de Portel estar a discutir a inclinação dos esgotos que se iam criar e de nós nos rirmos muito porque, para nós, os problemas eram outros, digamos que tínhamos preocupações mais imediatas”.

Leonor Duarte de Almeida destaca os níveis elevados de hipertensão e diabetes porque muitas pessoas não tinham uma alimentação equilibrada. “Até vim fazer um curso sobre diabetes a Lisboa e lembro-me de um doente a quem eu dizia ‘só pode comer um pão por dia’ e ele voltava à consulta sempre com os níveis descontroladíssimos e garantia, ‘mas eu só como um pãozinho por dia, como disse a doutora’. E afinal venho a descobrir que o ‘pãozinho’ que ele comia por dia era um pão enorme, daqueles pães alentejanos”, conta com uma gargalhada.

Fotografia tirada da janela da casa onde Leonor Duarte de Almeida viveu durante o SMP, em Ferreira do Alentejo (Direitos Reservados)

Uma situação “absolutamente caricata”

Cinquenta anos depois, os médicos são unânimes na defesa de uma espécie de novo serviço à periferia, “nem que seja por menos tempo”, diz Leonor Duarte de Almeida. “Hoje há uma espécie de individualismo exacerbado [dos médicos] e se calhar perdem um bocadinho esse lado do contacto humano. Acho que era importante reinstalarem o SMP, uma espécie de ano sabático, ou seis meses que fosse, para irem a um sítio diferente e perceberem que há outras realidades e perceberem que a vida não é só andar ali a marrar e depois fazer o serviço todo num hospital ou ficar um grande professor. A periferia fez-me perceber que as pessoas são únicas e ensinou-me a olhar para o outro, a ouvir o outro com outros olhos, como dizia o professor dr. João Lobo Antunes.”

Essa foi, aliás, uma proposta feita pela Ordem dos Médicos há um ano, destaca Vasco Trancoso, ainda que "obviamente modificado", dadas todas as transformações que aconteceram em Portugal ao longo destas cinco décadas. "Acho que o mais importante que há a retirar do SMP, sobretudo nesta altura em que se aprende muito pouco com o passado, é a autonomia que tínhamos. O SMP estabeleceu uma cultura organizacional de liberdade e responsabilidade. E essa autonomia é fundamental para sanar a atual crise do SNS. Com as Unidades de Saúde Familiar e as Unidades Locais de Saúde poderá haver mais autonomia, mas ainda não percebi até onde vai."

“Aquilo que os médicos à periferia tinham”, concorda Boavida, “era uma autonomia extremamente grande”, de tal forma que eram eles que geriam o dinheiro que os hospitais locais recebiam. “Era o voluntarismo e a boa vontade das pessoas que ia a esse ponto. Os dinheiros que o hospital recebia dos seguros não iam para os bolsos dos médicos, os médicos levavam esse dinheiro para comprar aparelhos. Lembro-me que no Alentejo se comprou um eletrocardiógrafo e que no Algarve se compraram vários aparelhos novos para medir a tensão arterial. Os médicos tinham orientações e depois eram capazes de se auto-organizar e desenvolver.”

É o que o endocrinologista classifica como “energia criativa”, que na sua opinião se “perdeu com uma burocratização imensa, principalmente depois dos anos 1980”, quando também acabou “a descentralização e se iniciou uma política de liberalização que quebrou os principais alicerces do SNS e que começou a estimular os privados.”

António Leuschner também destaca o “boom das forças privadas” como um dos desafios ao SNS. “Quando se tenta identificar os problemas do Serviço Nacional de Saúde, temos de olhar à volta e perceber porque é que as coisas chegaram onde chegaram. É bom não esquecer o que se conquistou, do ponto de vista da qualidade – em termos de indicadores de saúde estamos muito bem situados. E já nem falo da saúde materno-infantil ou da mortalidade infantil, que foram as maiores conquistas. Alteraram-se direitos, alteraram-se acessos. Mas falamos de saúde e as pessoas vão sempre precisar de cuidados de saúde. Pela saúde, as pessoas são capazes de dar tudo. E, olhe, vão-se os anéis, ficam os dedos...”

(Vasco Trancoso/Direitos Reservados)

 

Hoje há uma grande “insatisfação profissional”, pelos baixos salários que não permitem ao público competir com o privado e também pelo facto de “os profissionais não participarem na vida dos hospitais”, diz Boavida. “No meu tempo elegia-se o diretor clínico, mas isso acabou e depois os hospitais começaram a ser guiados não por resultados em saúde, mas por métricas de produtividade, número de atos, de consumos disto e daquilo. E quando não se avaliam os resultados em saúde, quando se desvalorizam os pontos que queremos atingir e se valorizam os pontos intermédios, obviamente que isso deixa de fazer sentido.”

O endocrinologista critica a “situação absolutamente caricata” que se vive, em que “de um lado há a redução do pedido de exames, de receituário, de tudo isso, e depois do outro lado, no privado, é o bodo aos pobres”. “As pessoas são exploradas com milhares de exames e de consultas, um consumismo médico completamente desnecessário – é viver em dois mundos, entre a ultraeficiência, que chega a cortar naquilo que é o mais necessário, e o consumismo. Por isso há grandes riscos de o SNS passar a ser um serviço para os pobres.”

"Há toda uma teia burocrática que impede as instituições do SNS de agilizarem a gestão dos hospitais, a prevenção e o tratamento dos doentes", acrescenta Trancoso. "Dependem das ARS, da autorização do Tribunal de Contas, do Ministério, têm de esperar pelo Orçamento do Estado para serem aprovadas verbas... Por vezes há situações que precisam de resposta imediata e só se resolvem um ano ou dois depois, porque os hospitais públicos não têm a capacidade das instituições privadas."

Para Leuschner, a extinção do SMP foi “um ato pouco pensado” em relação a um serviço que teve e podia continuar a ter vantagens para todos. “A periferia deu-nos a oportunidade de sair dos hospitais, de conhecer zonas muito carenciadas, famílias e populações muito carenciadas, níveis de pobreza significativos, muito más condições de vida. Para quem não estivesse já sensibilizado para esse tipo de problemas, era um bocado conhecer um outro Portugal. Além disso permitiu a muitos médicos criarem as suas próprias raízes fora das grandes cidades, instalando-se nesses locais periféricos.”

Assim foi, por exemplo, com Vasco Trancoso, que mais tarde viria a ser diretor do Hospital das Caldas da Rainha durante 10 anos. "Os médicos que fizeram o SMP ficaram, digamos, com a vontade de mais tarde voltarem para o nível distrital e concelhio e muitos fizeram-no, como eu, que vim parar às Caldas por vontade própria." É ali que vive até hoje, agora que, diz a brincar, já sofre de "oitentose".

(Vasco Trancoso/Direitos Reservados)

 

“Ser velho não é nenhum defeito”

“A riqueza do Serviço Médico à Periferia, que é sempre aquilo que nos perguntam, era o trabalho em equipa e o contacto com a realidade, era um confronto e uma dispersão de conhecimentos e de experiências completamente diferente”, destaca Ana Jorge.

“Não deixou de ter marca mesmo naqueles que até nem queriam ir ou que depois seguiram uma carreira mais académica. Aliás, uns anos depois, quando eu estava no Ministério da Saúde, fomos inaugurar o centro de saúde, aquele tal cujo esquisso tínhamos feito. Não ficou exatamente como o que tínhamos desenhado, mas era o mesmo espaço e eu convidei todo o meu grupo de médicos do serviço à periferia para a inauguração. Aquilo foi, de facto, assim uma coisa… emocionante”, recorda a antiga ministra. Os olhos brilham. “Emocionante exatamente por isso, porque nos marcou muito – emocionalmente e do ponto de vista profissional e dos ensinamentos.”

Hoje, agora que se celebram os 50 anos do 25 de Abril, é preciso repensar o SNS e a forma como se olha para a saúde, defendem todos os médicos entrevistados. Para Boavida, seria necessário “descentralizar muitas especialidades dos hospitais” – uma solução passaria por se criarem associações intermédias como aquela que dirige desde 1983, um ano depois da extinção do SMP: “Unidades em que se avaliem as patologias, unidades de gastroenterologia, de oftalmologia, de dermatologia, de urologia, mais próximas dos cuidados primários, em que as especialidades só mandam para os hospitais quem precise de internamento ou de cirurgias complexas.”

É a mesma ideia invocada por Vasco Trancoso, que no Oeste acabou por criar um "núcleo de gastroenterologia dos hospitais distritais, que hoje em dia continua a funcionar, englobando todos eles, e que faz investigação sobre onde há mais cancro, que tipos de cancro e porquê. Há todo um país por investigar e, nesse sentido, são essas associações que têm a faca e o queijo na mão, porque são elas que estão no terreno".

Para Leonor Duarte de Almeida, “o que falta cumprir são questões de organização e melhores ordenados” e aproveitar as ferramentas de Inteligência Artificial à disposição para reformular a operacionalidade do SNS. Leuschner e Ana Jorge lembram ainda a necessidade de adaptar o serviço às necessidades atuais, numa altura em que Portugal é um dos países mais envelhecidos do mundo, com necessidades diferentes do pós-25 de Abril – até porque, nas palavras do psiquiatra, “ser velho não é nenhum defeito” e há que apostar numa abordagem mais multidisciplinar. 

Hospital dos Capuchos, em Lisboa, na década de 1970 (Vasco Trancoso/Direitos Reservados)

“Não há saúde humana sem saúde animal, sem saúde ambiental, e, portanto, é preciso olhar para os problemas na saúde nesta perspetiva global, é fundamental. E aqui também era importante haver uma maior integração dos cuidados, para as pessoas deixarem de andar de guichê em guichê quando têm uma dor para descobrirem o que se passa, incluindo dos cuidados continuados, agora que temos muita gente mais velha”, refere António Leuschner. 

O psiquiatra abre um parêntesis para criticar a postura da lusofonia quando a ONU decidiu redefinir o conceito de idoso. “Dito em inglês, da designação ‘elderly’ passou-se para ‘older persons’ e nós cá em Portugal, infelizmente, como no Brasil, fizemos isto à nossa moda e então passámos de falar de ‘idosos’ para falar de ‘pessoas idosas’. Ora o problema com ser idoso é que, num paralelismo com a saúde, que palavras é que acabam em ‘oso’? O canceroso, o sidoso… Há um estigma com a idade e se queremos acabar com ele, temos de repensar a forma como olhamos para os mais velhos. Ser velho não é nenhuma doença, é uma coisa bestial. Ou pode ser.”

Na Saúde, “hoje falta continuar o que se iniciou”, defende a antiga ministra da tutela. “O que é que o serviço médico à periferia fez? É que os médicos não vão sozinhos, constituem equipas, e isso mudou um bocado.” Uns anos antes do SMP, recorda, “tinha saído o Relatório das Carreiras Médicas, que não teve nada que ver com as carreiras, foi fundamentalmente um grito de alerta sobre as condições de saúde em Portugal. E, 50 anos depois, conquistámos saneamento, vacinas, médico para todos, vigilância, prevenção… Nesta fase, as conquistas estão feitas, estabilizadas” – e muito graças ao SMP.

“Quando fui para a periferia, não fui abrir os olhos porque já estava com eles abertos, felizmente, mas deu-me um bom ensinamento para olhar para as coisas de uma perspetiva mais global”, partilha Leuschner. “Aquilo de que as pessoas falam hoje em dia, das determinantes em saúde e tudo o mais, é isto. Não resulta apenas de ter ou não ter infeções, resulta de ter ou não ter alimentação saudável, resulta das condições de vida, das casas que se têm, se têm aquecimento ou se não têm, todas estas coisas têm impacto na saúde. Não podemos medir as coisas só por se ter ou não ter dinheiro para comprar os medicamentos, que, apesar de tudo, até são na sua maioria comparticipados – como, aliás, na altura do 25 de Abril e durante o serviço à periferia, em que o acesso foi alargado.”

A experiência deixou marcas nos jovens médicos, mas também – sobretudo – nos portugueses que, graças a ela, passaram a ter acesso a cuidados de saúde. Um dia antes da entrevista com Leonor Duarte de Almeida, um “rapaz” que tinha a mesma idade que a médica durante o seu SMP no Alentejo enviou-lhe uma mensagem inesperada. “Já viu a coincidência? Não falávamos há imensos anos.” E o que lhe dizia na mensagem, perguntámos. “Que falta nos faz aqui o serviço médico à periferia.”

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