Guterres "disse o que judeus dizem há décadas". Mas também há judeus "profundamente desapontados"

Guterres "disse o que judeus dizem há décadas". Mas também há judeus "profundamente desapontados"

Israel reagiu rapidamente a pedir a demissão do secretário-geral da ONU, mas há quem veja nessa reação uma clara precipitação. António Guterres, de parcial a humanista

De uma “intervenção infeliz” à “contextualização do conflito”, são muitas as perspetivas sobre as declarações do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, que motivaram uma dura reação do governo israelita e dos seus mais altos representantes em todo o mundo.

Apesar de ser a visão oficial do Estado israelita, essa não é a posição de todos os judeus. O escritor Richard Zimler é exemplo disso. Em conversa com a CNN Portugal, o norte-americano naturalizado português diz que, na sua opinião, António Guterres estava “simplesmente a tentar dar um contexto a este conflito”, quando disse que “é importante reconhecer também que os ataques do Hamas não surgiram do nada”.

“Não vejo mal em contextualizar um conflito com 75 anos. Estes ataques terroristas do Hamas não aconteceram num vácuo”, defende Richard Zimler, reforçando que “é correto dar um contexto” ao conflito, lembrando guerras anteriores, como a do Yom Kippur, em que Egito e Síria coordenaram um ataque a Israel no dia da celebração de um importante feriado judaico, em 1973.

Uma visão bem diferente dos diferentes representantes do Estado de Israel e até das comunidades judaicas espalhadas pelo mundo, a começar em Portugal. O embaixador de Israel no nosso país foi dos primeiros a atacar António Guterres.

"Faz hoje 78 anos que a Carta das Nações Unidas entrou em vigor com um objetivo: tornar o 'nunca mais' uma realidade. Hoje, 78 anos depois, o Secretário-Geral provou que este organismo perdeu a sua credibilidade ao trair o mundo livre", lê-se na conta oficial de Dor Shapira.

Judeu de nacionalidade brasileira exibe cartaz a favor da Palestina (Imagem: Tuane Fernandes/AP)

Declarações proferidas já depois de o representante israelita na ONU ter vindo defender a demissão “imediata” de António Guterres, a quem acusou de demonstrar “compreensão pela campanha de homicídio em massa de crianças, mulheres e idosos”.

“Não está apto para liderar a ONU. Peço-lhe que renuncie imediatamente”, reiterou, dizendo que “não há qualquer justificação ou sentido em falar com aqueles que demonstram compaixão pelas mais terríveis atrocidades cometidas contra os cidadãos de Israel e o povo judeu.

As comunidades judaicas em Portugal vão no mesmo sentido. Numa reação enviada à CNN Portugal, a Comunidade Israelita de Lisboa (CIL) diz que acompanha o texto do Congresso Judaico Mundial (WJC), que expressou o seu “profundo desapontamento” pelas palavras de António Guterres.

“Com efeito, os atos de terrorismo praticados em Israel pelo Hamas resultam de um ato bárbaro, cruel e desumano que não pode ser enquadrado por nenhum antecedente e por nenhuma circunstância ou situação anterior”, justifica a instituição, que destaca que o território da Faixa de Gaza não tem qualquer presença israelita desde 2005.

“É com grande tristeza que vejo a sua posição parcial e factualmente incorreta. Encontrar alguma equivalência moral para um ataque que matou 1.400 civis, realizou violações, decapitações, queimas de pessoas vivas é assustador”, diz o comunicado da WJC, assinado pelo presidente, Ronald S. Lauder.

Preparação de jantar na Sinagoga de Lisboa no âmbito da Campanha Mundial pela libertação dos reféns do Hamas (Imagem: Comunidade Israelita de Lisboa)

Já a Comunidade Israelita do Porto (CIP) compara o ataque do Hamas àquele que foi o maior massacre de judeus em Portugal, em 1506, quando mais de quatro mil judeus foram mortos, numa ação levada a cabo por populares e frades dominicanos, e que começou no convento de São Domingos, em Lisboa.

“O único enquadramento com décadas do 7 de outubro é o da tentativa de eliminação de Israel desde o momento da sua fundação em 1948, bem como a parcialidade da ONU ao longo do tempo”, acrescenta a CIP.

Plano de Partilha da ONU de 1947 (Imagem: ONU)
Plano de Partilha da ONU de 1947 (Imagem: ONU)

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Guterres a dizer o que "judeus dizem há décadas"

Embora os líderes da comunidade judaica sejam claramente contra, Richard Zimler partilha a visão que diz ser de “muitos judeus e israelitas há décadas”, a de que a “ocupação” de territórios que a ONU definiu como Palestina é “inaceitável e devia acabar”.

O escritor refere-se aos colonatos de Israel em territórios que o Plano de Partilha da Palestina aprovado em 1947 pelos Estados-membros das Nações Unidas atribuiu ao Estado palestiniano. São 133 territórios que Israel ocupou na Cisjordânia e em Jerusalém, e que continuam ocupados com quase 500 mil israelitas, mesmo depois de a resolução 478 do Conselho de Segurança da ONU ter considerado esse ato como “nulo e sem efeito”.

Com efeito, e apesar de várias comunidades se terem colocado ao lado de Israel, muitas foram as manifestações pelo mundo fora em que judeus mostraram apoio à causa palestiniana, nomeadamente ao direito a ter um Estado. Foi o que aconteceu em várias cidades dos Estados Unidos, por exemplo.

O embaixador jubilado Fernando d'Oliveira Neves, que trabalhou na ONU como representante de Portugal, tendo estado no Médio Oriente para avaliação da situação em trabalhos para as Nações Unidas, refere à CNN Portugal que lhe "custa a perceber que parte considerável dos israelitas não tenha noção de que a solução não é perseguir povos".

O antigo diplomata, que confessa admiração pelo povo judeu, adquirida durante os tempos de vida em Nova Iorque, conta que viu atos "revoltantes" a serem praticados pelos governos israelitas. "Estive lá e vi estradas separadas por rolos de arame farpado", recorda, lamentando que Israel esteja "mais uma vez a matar milhares de civis que não têm nada a ver com o Hamas".

"Percebo perfeitamente a reação de Israel em relação ao ataque, percebo que se queira exterminar o Hamas e isso até pode ser bom. Mas isto é uma espécie de limpeza étnica, mesmo que concentrada num grupo terrorista", acrescenta.

Por isso, garante Fernando d'Oliveira Neves, o secretário-geral da ONU "disse o que tinha obrigação de dizer", avançando com um paralelismo da Segunda Guerra Mundial: "Não há nada que ecloda sem ter uma razão. É como dizer que França e Inglaterra declararam guerra à Alemanha e não dizer porquê. Parece que os culpados foram França e Inglaterra."

"Não se pode desenquadrar tudo o que se passou. É um conflito antigo, provavelmente sem solução. São dois povos, um com força, outro sem força, e Israel domina pela força, que é a única legitimidade que tem", diz.

Voltando a lembrar a presença na região como enviado da ONU, Fernando d'Oliveira Neves diz que "quem conhece a situação sabe que a coisa é mais complicada do que diz Israel". Mesmo assim, continua o embaixador, António Guterres separou bem as águas: "Começou por condenar veementemente e sem nenhum 'mas' o ataque do Hamas, mas teve de enquadrar isso num quadro de um povo que vive há 56 anos em campos de concentração."

"O que o secretário-geral da ONU disse foi o que tinha obrigação de dizer: o ataque do Hamas é um crime bárbaro e incompreensível, mas é preciso perceber que, enquanto houver gente a viver assim, vai haver reações radicais", termina.

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Uma ONU parcial?

A crítica não é de agora, mas subiu de tom com as palavras de António Guterres. O próprio presidente do WJC deixou claro que a visão israelita é de que a ONU tem sido parcial: "A intervenção [de António Guterres] ficará agora registada nos anais da ONU - um organismo mundial que, desde a sua criação, escolheu Israel, o único Estado judeu do mundo, como alvo permanente da parcialidade da ONU - como um dos discursos mais ferozmente anti-israelitas dos seus 75 anos."

Helena Ferro de Gouveia partilha esta visão de que há uma espécie de parcialidade da ONU em relação à questão. A especialista em Relações Internacionais admite que as palavras de António Guterres não tenham sido intencionais, mas vê a escolha de palavras como "infeliz", sobretudo num "momento de elevada tensão e crispação".

"A palavra tem muito peso. Ninguém disse aos Estados Unidos que o 11 de Setembro foi um vácuo. Todos foram capazes de dizer 'somos Charlie Hebdo'. Em relação a Israel há sempre esta incapacidade e, muitas vezes, esquece-se que o Hamas é um grupo terrorista, que não reconhece Israel na sua fundação", argumenta.

De resto, Helena Ferro de Gouveia apresenta um outro ponto que tem sido muito atacado pelos israelitas: a educação das crianças palestinianas com o patrocínio da ONU, que paga livros e ajuda um sistema de ensino que "não reconhece o Holocausto".

Escola financiada pela ONU em Gaza (Imagem: Khalil Hamra/AP)

Já o embaixador jubilado Fernando d'Oliveira Neves vê as coisas de outra forma, começando por lembrar os 900 mil palestinianos que tiveram de deixar Jerusalém para irem para a Faixa de Gaza, onde vivem há décadas como refugiados. É lá que a ONU tem uma das maiores campanhas humanitárias, sendo que o próprio Fernando d'Oliveira Neves teve de marcar presença em várias reuniões para decidir como a agência da ONU para os refugiados palestinianos (UNRWA) iria apoiar aquelas pessoas, de quem "mal se fala".

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Guterres, o humanista confuso?

Apesar da crítica generalizada ao secretário-geral da ONU, as comunidades judaicas reconhecem uma coisa: o humanismo do português. É isso mesmo que CIL e CIP destacam nas respostas à CNN Portugal, acompanhando o WSJ.

A CIP refere apenas que António Guterres é “um humanista”, vendo este como um momento que “foi muito infeliz”. Já a CIL elabora, dizendo que, pelo “percurso humanista” do secretário-geral da ONU, “causa-nos muita mágoa que tenha sido tentado a dar um enquadramento ou justificação ao sucedido, que foi um puro ato de maldade e de desprezo pela vida humana”.

Em causa não está uma posição xenófoba. Para Richard Zimler não houve qualquer postura de desrespeito ou até antissemitismo, mesmo depois das críticas do Estado israelita. “Temos de distinguir as coisas. O antissemitismo deve ser sempre denunciado, mas aqui houve uma contextualização de um conflito que envolve Israel. António Guterres tem todo o direito de exprimir a sua perspetiva e, pessoalmente, não encontrei nada de antissemita nas palavras”, sublinha o escritor.

Helena Ferro de Gouveia fala mesmo numa confusão de papéis: "A ONU tem um papel fundamental e António Guterres foi francamente infeliz. Esqueceu-se que é secretário-geral e não alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados [cargo que ocupou antes de chegar à cúpula diretiva da organização]."

António Guterres na fronteira entre Egito e Faixa de Gaza (Imagem: AP)

Para o major-general Agostinho Costa o secretário-geral da ONU manteve uma "grande estrutura moral". O militar vê em António Guterres um "cristão, de sólida formação humanista", que fica "chocado com o que se passa de ambos os lados", seja pelo sofrimento dos civis israelitas, seja pelo sofrimento dos civis palestinianos.

"Não podemos tapar o sol com a peneira. O secretário-geral é uma pessoa com uma visão de valores e a ONU tem por missão ajudar à paz, e não o contrário", acrescenta, defendendo que a maioria da população mundial "olha para esta crise com um prisma um pouco mais aberto do que a direção política de Israel."

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Um conflito, vários culpados

E esse é um dos lados da culpa, o governo israelita. É assim que o embaixador jubilado Fernando d'Oliveira Neves vê a situação, dizendo que, à exceção da maioria dos civis, todos os decisores envolvidos têm culpa pela forma como a situação se desenrolou. "Com a exceção dos civis, não há inocentes. Israel é o maior violador do Direito Internacional, nunca cumpriu nenhuma resolução da ONU, não tem a mínima intenção de cumprir a carta das Nações Unidas, porque tem força e um apoio incondicional dos Estados Unidos", diz.

O antigo diplomata diz que os Estados árabes deviam, de uma vez por todas, reconhecer a existência de Israel como um Estado, defendendo que essa é a única solução possível para se poder chegar à paz, sendo também a solução defendida pela ONU desde o início, com o Plano de Partilha da Palestina. "Quem quer que os palestinianos deixem de morrer deve reconhecer Israel e tentar chegar a um acordo que permita a paz", diz Fernando d'Oliveira Neves.

É um pouco o que os Estados Unidos tentaram fazer com os Acordos de Abraão, chamando vários Estados árabes para a normalização de relações com Israel e o consequente reconhecimento do direito judeu a ter um Estado na região. Inicialmente apenas entre Israel, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, estes acordos já se estenderam a países como Omã, Sudão ou Marrocos, mas ficam de fora atores de grande relevância como o Iraque, o Irão, o Egito ou a Arábia Saudita.

Um passo em frente relativamente à posição tradicional, até porque foram os países árabes que representaram a maioria dos votos contra a resolução de 1947, que foi aprovada, e previa a partilha do antigo mandato do Reino Unido na Palestina.

Helena Ferro de Gouveia lembra que o próprio presidente da Autoridade Nacional Palestiniana já lamentou, há mais de 10 anos, ter seguido os países árabes e não aceitar a solução de dois Estados oferecida por Israel. Por outro lado, diz a especialista em Relações Internacionais, o exército israelita continua a agir de forma a tentar evitar baixas civis. "Não conheço nenhum exército do mundo que peça aos cidadãos que se desloquem e depois as estradas estão cortadas e as pessoas são mandadas para trás", sublinha, assinalando que "o Hamas utiliza cidadãos como escudos humanos".

"É preciso colocar as coisas em proporção, num momento em que precisamos de um mediador, e a ONU teria um papel importante e desqualificaram-se nesse sentido. Um secretário-geral tem de ponderar muito bem as suas palavras, e António Guterres teve uma atuação e uma formulação infeliz, uma falta de empatia enorme", termina.

Mas a contribuir para novo agudizar de relações entre israelitas e árabes está o extremar de posições. Fernando d'Oliveira Neves diz que os "maiores culpados pelo problema são as confissões radicais dos dois lados", lembrando várias declarações de ministros israelitas nos últimos meses, bem como a ida de um governante à esplanada das Mesquitas, em Jerusalém, onde fica a mesquista Al-Aqsa, um dos locais mais sagrados do Islão, e cujo nome o Hamas utilizou para batizar a operação de 7 de outubro.

De resto, só este ano já são três as vezes que o ministro da Segurança Nacional de Israel foi visto no local. Itamar Ben-Gvir visitou a Esplanada das Mesquitas, dizendo, da última vez em que lá esteve, que aquele é um "local importante" para os israelitas, que devem "voltar e provar a sua soberania", seguindo aquela que é a postura dos judeus mais conservadores, que defendem que deve ser Israel a governar aquele local, que fica em Jerusalém.

Itamar Ben-Gvir manda calar palestinianos durante conferência de imprensa às portas de Jerusalém (Imagem: Maya Alleruzzo/AP)

 

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A emoção de Israel

Mesmo que entenda que as palavras de António Guterres surgiram fora do contexto, Helena Ferro de Gouveia reconhece que existem "muitos erros e violações dos governos israelitas", sobretudo com uma crescente importante da ala mais à direita, que também traz uma maior mistura entre Estado e religião.

"Qualquer pessoa séria reconhece os erros de Israel, mas é importante reconhecer que, se não há vácuo para Israel, também não há para a Palestina", acrescenta a especialista, dizendo que, nesse caso, teríamos de recuar vários séculos até à Judeia, anterior à Palestina.

O problema na reação israelita às palavras de António Guterres passa precisamente pela ausência de separação, neste caso da separação entre política e emoção. É essa a visão de Agostinho Costa, que até compreende a emoção do povo, mas pede a quem ocupa cargos políticos uma outra postura.

"As palavras de António Guterres não foram tendenciosas. Quando for resolvida a questão palestiniana e deixarem de existir forças subversivas e passar a existir um exército, é diferente", diz, defendendo que a posição do secretário-geral da ONU foi o que tinha de ser: equidistante, impermeável e sem ceder a chantagens. Caso contrário "a ONU desvaloriza-se".

Richard Zimler concorda, dizendo que "obviamente os israelitas sentem uma ameaça constante", lembrando que a reação do governo israelita também surge numa altura em que mais de 200 reféns estão ainda nas mãos do Hamas. Entre eles existem vários descendentes de judeus sefarditas, cinco deles com nacionalidade portuguesa. Tudo isso leva ao aparecimento de "emoções primárias".

Fernando d'Oliveira Neves vê na reação israelita uma clara "arrogância da direita", lamentando a mistura entre poder e "radicais religiosos", e voltando à questão dos colonatos, a maior parte "ilegalmente habitados". "Parece uma provocação por parte dos radicais", reitera, dizendo que isso não contribui positivamente para a situação.

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