Francisco, o Papa que criou "anticorpos" dentro da igreja sem a reformar verdadeiramente
Papa Francisco. Encontro com jovens na Praça de S. Pedro. 21 de junho de 2015. Foto: Grzegorz Galazka/Getty Images

Francisco, o Papa que criou "anticorpos" dentro da igreja sem a reformar verdadeiramente

Texto
Sofia Santana

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Grzegorz Galazka/Getty Images

Um Papa que é mais popular fora da própria Igreja do que dentro dela, que se atreveu a “tocar nas estruturas do poder” e a desmontar “o conservadorismo”. Que já foi apelidado de “marxista”, mas que também tem sido criticado por não avançar com verdadeiras reformas. Argentino, filho de imigrantes italianos, o antigo cardeal de Buenos Aires que é apaixonado por futebol e que sempre preferiu andar a pé ou de transportes públicos. Francisco estará esta semana em Lisboa na Jornada Mundial da Juventude

Não estava entre os favoritos à sucessão de Bento XVI e a sua eleição, no conclave de 2013, apanhou (quase) todos de surpresa. É que Jorge Mario Bergoglio, o cardeal de Buenos Aires, era tido como um homem simples e pouco ambicioso entre os seus pares. Mas, aos 76 anos, tornou-se o primeiro Papa sul-americano e jesuíta. Escolheu o nome Francisco, numa referência a Francisco de Assis pela "simplicidade e dedicação aos pobres" e dizendo assim ao que ia. Nas entrelinhas desta eleição havia uma leitura clara a fazer: a Igreja Católica pretendia uma liderança diferente.

  • Papa Francisco fala para a multidão na Praça de São Pedro depois de ter sido eleito líder da igreja católica. Foto: Filippo Monteforte/AFP via Getty Images
    Papa Francisco fala para a multidão na Praça de São Pedro depois de ter sido eleito líder da igreja católica. Foto: Filippo Monteforte/AFP via Getty Images
  • Jorge Mario Bergoglio foi eleito à quinta volta, no segundo dia do conclave, a 13 de março de 2013. Foto: Michael Kappeler/picture alliance via Getty Images
    Jorge Mario Bergoglio foi eleito à quinta volta, no segundo dia do conclave, a 13 de março de 2013. Foto: Michael Kappeler/picture alliance via Getty Images
  • As primeiras páginas dos jornais espanhóis no dia a seguir à eleição de Francisco. Foto: David Ramos/Getty Images
    As primeiras páginas dos jornais espanhóis no dia a seguir à eleição de Francisco. Foto: David Ramos/Getty Images
  • "Bergoglio. O cardeal que não teme o poder." Francisco tornou-se o primeiro papa vindo da América Latina a chegar ao topo da hierarquia da igreja católica. Foto: Alejandro Pagni/AFP via Getty Images
    "Bergoglio. O cardeal que não teme o poder." Francisco tornou-se o primeiro papa vindo da América Latina a chegar ao topo da hierarquia da igreja católica. Foto: Alejandro Pagni/AFP via Getty Images

Um papa “político”

Tendo como prioridade o combate às desigualdades e os apelos a uma maior igualdade e justiça social, Francisco nunca se coibiu de deixar recados políticos aos governos e às elites mais poderosas. Por outro lado, a luta pela paz e o fim dos conflitos pelo mundo esteve sempre no centro das suas mensagens. O jornalista da CNN Portugal Joaquim Franco, que acompanha de perto assuntos relacionados com a Igreja, considera que o lado político do Papa está presente “desde a primeira hora”, com o “objetivo de dar visibilidade àquilo que é invisível, não por ser invisível aos nossos olhos, mas porque é invisível nas atitudes que vão sendo tomadas, quer pelos senhores da fé, quer pelos senhores da política”.

A guerra na Ucrânia, por exemplo, tem estado muito presente nas suas orações e nas suas mensagens. Francisco tem apelado a um cessar-fogo e às negociações pela paz: "Faço um apelo a todos aqueles que têm autoridade sobre as nações para que se envolvam para o fim do conflito, concordem com um cessar-fogo e iniciem as negociações de paz", declarou no final de uma audiência geral realizada no Vaticano, em fevereiro, mês em que se assinalou um ano da invasão da Ucrânia. O conflito entre Israel e a Palestina também tem merecido grande atenção e, nos últimos meses, com a escalada de tensões, isso foi particularmente evidente - Francisco pediu diálogo entre os dois povos na mensagem da Páscoa.

O tom político das suas mensagens é conhecido, mas nem por isso deixa de causar algumas polémicas. Foi o que aconteceu com a entrevista que deu a um canal argentino por altura dos dez anos de pontificado. O Papa alertou para os perigos que os movimentos de extrema-direita trazem para a democracia, pondo em causa a sua qualidade, e criticou os líderes populistas que, neste enquadramento, surgem como "salvadores da pátria".

Mais, Francisco defendeu a inocência de Lula da Silva e Dilma Rousseff, o que não caiu bem entre muitos católicos brasileiros, mais conservadores e de direita. Nessas declarações, o Papa afirmou que o atual presidente do Brasil foi condenado pela justiça brasileira de forma injusta e “sem provas” e que a antiga presidente tem as “mãos limpas” e foi alvo de “lawfare”, ou seja, de um processo injusto que tentou travar a política.

O Frei Fernando Ventura considera que este lado do Papa existe porque "a dimensão política faz parte da vida e faz parte da mensagem cristã". "Faz parte da presença na pólis e a pólis é isto, é o espaço comum, é a cidade habitada, é o mundo habitado por gente para o qual o Papa tem sempre chamado à atenção, sobretudo das franjas desta cidade que vai deixando de lado os indesejáveis”, acrescenta.

  • Troca de prendas entre o patriarca ortodoxo e o papa numa visita a Seul, na Coreia do Sul. 18 de agosto de 2014. Foto: Archivio Grzegorz Galazka\Mondadori via Getty Images
    Troca de prendas entre o patriarca ortodoxo e o papa numa visita a Seul, na Coreia do Sul. 18 de agosto de 2014. Foto: Archivio Grzegorz Galazka\Mondadori via Getty Images
  • No museu de Santa Sofia, em Istambul, durante uma visita apostólica à Turquia. A visita correu o risco de ser cancelada depois de a diplomacia turca ter pedido para ter acesso antecipado aos discursos de Francisco, o que foi negado. No país, o papa alertou para o fanatismo e fundamentalismo religiosos e defendeu direitos iguais para cristãos, muçulmanos e judeus. Foto: Archivio Grzegorz Galazka/Mondadori via Getty Images
    No museu de Santa Sofia, em Istambul, durante uma visita apostólica à Turquia. A visita correu o risco de ser cancelada depois de a diplomacia turca ter pedido para ter acesso antecipado aos discursos de Francisco, o que foi negado. No país, o papa alertou para o fanatismo e fundamentalismo religiosos e defendeu direitos iguais para cristãos, muçulmanos e judeus. Foto: Archivio Grzegorz Galazka/Mondadori via Getty Images
  • Encontro com o então presidente cubano, Raúl Castro, no Vaticano no dia 10 de maio de 2015. Em 2022, numa entrevista, Francisco afirmou ter uma "relação humana com Raúl Castro", frase que não caiu bem entre os dissidentes do regime cubano. Foto: Archivio Grzegorz Galazka/Mondadori via Getty Images
    Encontro com o então presidente cubano, Raúl Castro, no Vaticano no dia 10 de maio de 2015. Em 2022, numa entrevista, Francisco afirmou ter uma "relação humana com Raúl Castro", frase que não caiu bem entre os dissidentes do regime cubano. Foto: Archivio Grzegorz Galazka/Mondadori via Getty Images
  • O presidente da Federação Russa é recebido no Vaticano, no dia 10 de junho de 2015. Desde o início da guerra que o papa tem repetido os apelos para que seja encontrada uma solução pacífica para o conflito. Em março, disse estar disponível para ir a Moscovo falar com Putin se ele lhe desse "uma oportunidade para negociar". A Rússia rejeitou a oferta. Foto: Archivio Grzegorz Galazka/Mondadori via Getty Images
    O presidente da Federação Russa é recebido no Vaticano, no dia 10 de junho de 2015. Desde o início da guerra que o papa tem repetido os apelos para que seja encontrada uma solução pacífica para o conflito. Em março, disse estar disponível para ir a Moscovo falar com Putin se ele lhe desse "uma oportunidade para negociar". A Rússia rejeitou a oferta. Foto: Archivio Grzegorz Galazka/Mondadori via Getty Images
  • Hassan Rouhani, na altura presidente da República Islâmica do Irão, no Vaticano, no dia 26 de janeiro de 2016. Francisco pediu a Rouhani para trabalhar com outros estados do Médio Oriente para promover a paz e impedir a disseminação do terrorismo. Foto: Archivio Grzegorz Galazka\Mondadori via Getty Images
    Hassan Rouhani, na altura presidente da República Islâmica do Irão, no Vaticano, no dia 26 de janeiro de 2016. Francisco pediu a Rouhani para trabalhar com outros estados do Médio Oriente para promover a paz e impedir a disseminação do terrorismo. Foto: Archivio Grzegorz Galazka\Mondadori via Getty Images
  • Francisco visita a Grande Sinagoga, a maior de Roma, ao lado do rabi da comunidade judaica romana, Riccardo Di Segni, e do presidente da mesma comunidade, Ruth Dureghello. 17 de janeiro de 2016. Foto: Archivio Grzegorz Galazka\Mondadori via Getty Images
    Francisco visita a Grande Sinagoga, a maior de Roma, ao lado do rabi da comunidade judaica romana, Riccardo Di Segni, e do presidente da mesma comunidade, Ruth Dureghello. 17 de janeiro de 2016. Foto: Archivio Grzegorz Galazka\Mondadori via Getty Images
  • Barack Obama, Michelle Obama e o papa Francisco na Casa Branca. O líder da igreja católica falou com o então presidente norte-americano sobrea aproximação dos EUA a Cuba, a crise migratória e dos refugiados e as alterações climáticas. 23 de setembro de 2015. Foto: Archivio Grzegorz Galazka\Mondadori via Getty Images
    Barack Obama, Michelle Obama e o papa Francisco na Casa Branca. O líder da igreja católica falou com o então presidente norte-americano sobrea aproximação dos EUA a Cuba, a crise migratória e dos refugiados e as alterações climáticas. 23 de setembro de 2015. Foto: Archivio Grzegorz Galazka\Mondadori via Getty Images

A "monstruosidade" dos abusos sexuais

A ideia de acabar com o celibato obrigatório é um dos temas que tem estado em primeiro plano nas reflexões sobre a orgânica da Igreja. A questão tem também surgido por causa das notícias de abusos sexuais e respetivo encobrimento que têm ensombrado as dioceses de todo o mundo.

Se é certo que o Vaticano defendeu, no passado, que o fim do celibato poderia "ameaçar a unidade da Igreja", Francisco tem mostrado abertura para que a medida possa avançar. "Não há nenhuma contradição em que um padre se possa casar. O celibato na Igreja ocidental é uma prescrição temporária. Não sei se se resolve de uma forma ou de outra, mas é provisório nesse sentido", disse, numa entrevista ao portal argentino Infobae, por ocasião do décimo aniversário do seu pontificado. À pergunta sobre se a questão do celibato “poderia ser revista”, respondeu “sim, sim”, acrescentando que muitos dos membros da Igreja do oriente, aqueles que o desejem, “são casados”.

Quanto à "monstruosidade" dos abusos sexuais propriamente dita, o Papa assumiu-se empenhado em acabar com estas práticas que mancham e minam os valores católicos. "Francisco vem abordando os abusos sexuais com a denúncia do pecado do clericalismo e de uma cultura enraizada na Igreja que dá centralidade ao clero", sublinha José Manuel Pureza.

Em fevereiro de 2019, o Sumo Pontífice convocou uma cimeira no Vaticano, apresentando aos líderes de conferências episcopais e aos responsáveis de institutos religiosos várias normas e diretrizes a ter em conta nestes casos. E um ano depois, determinou mesmo a obrigatoriedade de o episcopado comunicar às autoridades civis casos em que haja suspeitas concretas.

Membros da organização Acabar com os Abusos do Clero, com ativistas e vítimas de abusos sexuais, protestam em Roma durante a realização de uma cimeira extraordinária convocada pelo papa para enfrentar a onda de escândalos de abuso sexual relacionados com membros da igreja. 23 de fevereiro de 2019. Foto: Michele Spatari/NurPhoto via Getty Images

“Anticorpos" dentro da igreja

O Papa é um homem de tato fácil e gostos simples, que adora gelados e aprecia vinho do Porto. No documentário "Ámen. Francisco responde", surge no meio de um grupo de jovens, a debater assuntos tão controversos como o sexo, a pornografia e os abusos sexuais. Filmado em junho do ano passado, mas só recentemente lançado, este documentário dá-nos a imagem de um líder católico carismático, com uma postura conciliadora, próxima e afetuosa.

O professor universitário e antigo deputado do Bloco de Esquerda José Manuel Pureza considera que "é a sociedade fora da Igreja que olha para este Papa com mais entusiasmo, vendo nele um ator de uma transformação que é absolutamente necessária".

Mas dentro da cúpula da Igreja, o cenário parece ser bem diferente: o Frei Fernando Ventura considera que Francisco acabou por ganhar aqui “muitos anticorpos”. “Fora da Igreja tem muito poucas reações negativas, sendo que dentro da Igreja ele criou anticorpos, que se têm manifestado e que são públicos”, sublinha. Na sua ótica, isto acontece porque “Francisco toca no conservadorismo e ainda há pessoas dentro da Igreja que entendem a Igreja como gestão de poder e de poderes. Ele desmonta isso brilhantemente”, completa.

Terão contribuído para esses "anticorpos" algumas das suas posições sobre temas mais fraturantes. Vejamos a forma como o sumo pontífice aborda a questão dos divorciados: numa exortação apostólica sobre a família, em 2016, Francisco dirigiu-se aos divorciados para lhes dizer que “não só não têm de se sentir excomungados, como também podem viver e evoluir como membros ativos da Igreja”. Jorge Mario Bergoglio defendeu que “ninguém pode ser condenado para sempre”. “Não me refiro apenas aos divorciados que estão em nova união, mas a todos, em qualquer situação em que se encontrem”, sublinhou. “É mesquinharia considerar apenas se a obra de uma pessoa responde ou não a uma norma ou lei geral. Lembro aos sacerdotes que o confessionário não deve ser uma sala de torturas, mas sim o lugar da misericórdia do Senhor”, completou.

O papa acaricia um tigre durante uma audiência com artistas de circo no Vaticano. Foto: Antoine Mekary/Godong/Universal Images Group via Getty Images

Por outro lado, a homossexualidade é outro dos temas mais divisivos dentro da Igreja e, enquanto uma parte da hierarquia assume que não deve existir tolerância em relação a esta orientação sexual, Francisco mostra-se firmemente contra a sua criminalização. "Ser homossexual não é um crime. Sim, é um pecado, mas distingamos pecado de crime", sublinhou numa entrevista dada em janeiro.

São declarações com grande importância uma vez que, em muitos países, a homossexualidade é ainda punida por lei e em alguns a sentença pode ser mesmo a pena de morte. O líder da igreja entende que os bispos católicos desses locais "nasceram nessa cultura e com essa mentalidade", mas que também eles devem passar por um "processo de conversão". É uma posição de compreensão e não de repressão.
Ainda assim, o argentino não defende a plena igualdade entre heterossexuais e homossexuais e continua a considerar a homossexualidade "um pecado". O casamento religioso permanece vedado a casais do mesmo sexo e, também por causa disso, vozes mais críticas acusam-no de não avançar para reformas que abalam verdadeiramente as estruturas mais tradicionais da Igreja.

O papel da mulher no clero

Se a homossexualidade causa cisões na Igreja, também o papel da mulher tem suscitado opiniões diversas. Francisco tem procurado enaltecer a importância da mulher nas estruturas do clero, como acontece no prefácio do livro "Mais liderança feminina para um mundo melhor: o cuidado como motor da nossa casa comum", editado por Anna Maria Tarantola, ex-diretora do Banco de Itália e atual presidente da Fundação Centesimus Annus pro Pontifice. "O papel da mulher na Igreja vai muito além da funcionalidade. Devemos continuar a trabalhar nisto. Muito mais além", reconhece o líder católico nesse texto.

O facto de ter nomeado uma mulher para o Dicastério que escolhe os bispos foi tido como um sinal dessa preocupação em valorizar o papel da mulher na Igreja. Mas há quem refute essa ideia e não tenha elogios a fazer-lhe.

O Papa goza apenas de “boa imprensa”, diz Robert Mikens, editor do La Croix Internacional. Num texto publicado em 2021, Mikens afirma que o argentino não tem feito grandes avanços nesta matéria. "O número de posições de mulheres em primeiro plano não é significativo. É marginal", vincou. O editor criticou, por exemplo, o facto de, dos 28 teólogos escolhidos para integrar a Comissão Teológica Internacional, apenas cinco serem do sexo feminino. Esta comissão, criada pelo Papa Paulo VI, reúne teólogos de projeção internacional, em lugares que representam posições de grande destaque e influência em Roma.

A verdade é que, apesar de Francisco ter apelado, por diversas vezes, à igualdade de oportunidades para as mulheres nos diversos campos da sociedade e do trabalho, na Igreja, o sexo feminino continua impedido de aceder aos ministérios ordenados, como o sacerdócio ou o diaconado.

Do bairro de Flores para o Vaticano, a mesma atenção aos pobres

“Como cardeal de Buenos Aires, ele marcou uma diferença imensa. Andava de comboio, andava de transportes públicos, andava a pé, ia às compras, fazia a sua vida normal, recebia qualquer pessoa sem ser necessário grandes marcações de horários. Era um pároco de uma paróquia gigantesca que é a diocese de Buenos Aires. Trouxe proximidade e normalidade relacional", recorda o Frei Fernando Ventura.

Uma proximidade e normalidade relacional que acabaria por levar para o Vaticano na visibilidade que deu aos mais pobres e aos mais vulneráveis e que será, porventura, o seu maior legado. “O que o Papa Francisco fez como Papa foi estabelecer uma situação de normalidade relacional. Trouxe para a Igreja e para o mundo o desafio da horizontalidade das relações, a ideia de olharmos nos olhos do outro e de isto implicar um posicionamento de igualdade relacional”, sublinha o Frei Fernando Ventura.

A mensagem de igualdade Francisco levou-a de Buenos Aires. E é por isso essencial recuar aos anos em que viveu na cidade “mais bonita do mundo” (palavras suas) e viajar até às ruas do bairro de Flores, onde cresceu, para se entender o início desta história.
Jorge Mario Bergoglio era filho de imigrantes italianos – o pai era da região italiana de Piemonte, enquanto a mãe tinha raízes em Génova – e o mais novo de cinco irmãos. Cresceu no auge da imigração de italianos para a Argentina, numa altura de fuga ao regime totalitário de Benito Mussolini, e era, por isso, fluente em italiano e espanhol.

  • Franciso quando era mais novo. Imagem sem data disponibilizada pela família. Foto: AFP via Getty Images
    Franciso quando era mais novo. Imagem sem data disponibilizada pela família. Foto: AFP via Getty Images
  • O recém-nomeado padre Jorge Mario Bergoglio (segundo a contar da esquerda na fila de cima) com a família. Foto: Franco Origlia/Getty Images
    O recém-nomeado padre Jorge Mario Bergoglio (segundo a contar da esquerda na fila de cima) com a família. Foto: Franco Origlia/Getty Images
  • Jorge Bergoglio foi nomeado arcebispo de Buenos Aires em 1998. Foto sem data. STR/AFP via Getty Images
    Jorge Bergoglio foi nomeado arcebispo de Buenos Aires em 1998. Foto sem data. STR/AFP via Getty Images
  • Jorge Bergoglio durante o lava-pés, um ritual pascal, em Buenos Aires, em 2005. Foto: Daniel Vides/AFP via Getty Images
    Jorge Bergoglio durante o lava-pés, um ritual pascal, em Buenos Aires, em 2005. Foto: Daniel Vides/AFP via Getty Images
  • Enquanto arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio destacou-se por manter um estilo de vida simples, acessível e próximo das pessoas. Nesta imagem, Bergoglio deixou-se fotografar quando andava no metro da capital argentina, em 2008. Foto: Emiliano Lasalvia/LatinContent via Getty Images
    Enquanto arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio destacou-se por manter um estilo de vida simples, acessível e próximo das pessoas. Nesta imagem, Bergoglio deixou-se fotografar quando andava no metro da capital argentina, em 2008. Foto: Emiliano Lasalvia/LatinContent via Getty Images
  • Um encontro entre o autarca de Buenos Aires, Jorge Telerman, e o então arcebispo de Buenos Aires. 22 de setembro de 2006. Foto: Ricardo Ceppi / Getty Images
    Um encontro entre o autarca de Buenos Aires, Jorge Telerman, e o então arcebispo de Buenos Aires. 22 de setembro de 2006. Foto: Ricardo Ceppi / Getty Images
  • A paixão do papa pelo San Lorenzo, equipa de Buenos Aires, é conhecida. Francisco é sócio do clube. Foto: API/Gamma-Rapho via Getty Images
    A paixão do papa pelo San Lorenzo, equipa de Buenos Aires, é conhecida. Francisco é sócio do clube. Foto: API/Gamma-Rapho via Getty Images

Pelas ruas do bairro de Flores, brincou e aprendeu a jogar futebol, uma paixão que ainda hoje lhe é conhecida, não fosse ele um adepto fervoroso do San Lorenzo. A sua biografia oficial até à nomeação como arcebispo de Buenos Aires é, no entanto, de poucas linhas. Sabe-se que trabalhou como técnico químico, mas que acabou por enveredar pelo sacerdócio, integrando a Companhia de Jesus em 1958. Não iremos detalhar todo o percurso que fez no exercício do sacerdócio para nos focarmos no período em que se tornou numa das figuras mais acarinhadas e populares da América Latina e que começa em 1998: falamos dos 15 anos em que foi arcebispo da diocese de Buenos Aires, uma diocese com mais de três milhões de habitantes.

Ora, apesar de ser o líder desta gigantesca diocese, Jorge Mario Bergoglio cultivava um estilo de vida sem ostentação: vivia num pequeno apartamento ao lado da catedral onde preparava as suas próprias refeições e andava de transportes públicos. “O meu povo é pobre e eu sou um deles”, afirmava. Através de projetos missionários, este foi sempre o seu maior desígnio: dar atenção aos mais pobres, aos marginalizados e aos doentes.

Por outro lado, o arcebispo não se mostrava indiferente aos acontecimentos à sua volta. Já era cardeal, nomeado em 2001 pelo Papa João Paulo II, quando, em dezembro desse ano, em plena crise económica e num período de grande contestação social na Argentina, foi testemunha da violência policial que marcou os protestos populares na Praça de Maio – a polícia dispersou com violência manifestantes que se concentravam no local, recorrendo a bombas de gás lacrimogéneo e a balas de borracha. Na altura, a imprensa argentina divulgou que Bergoglio ligou indignado para o ministro do Interior, criticando a ação policial. Três anos depois, no rescaldo de um incêndio trágico que fez quase 200 mortos numa discoteca de Buenos Aires, o arcebispo percorreu os hospitais da cidade para ajudar as famílias das vítimas.

O Papa "marxista"

O estilo de vida humilde esteve sempre alinhado com aquela que é a sua maior prioridade e batalha: combater a desigualdade social. Terá sido por isso que, já em Roma, Francisco escolheu não viver no luxuoso apartamento do Palácio Apostólico, mas na Casa de Santa Marta, um edifício com dezenas de quartos, mandado construir por João Paulo II e onde ficam hospedados os cardeais durante os conclaves.

"Não posso viver sem pessoas. Não sirvo para monge. Por isso fiquei a viver aqui, nesta casa [residência de Santa Marta]. É uma casa de hóspedes, com 210 quartos, onde vivem 40 pessoas que trabalham na Santa Sé. Os outros são hóspedes, bispos, padres e laicos que passam e aqui se alojam. Isto faz-me muito bem. Vir aqui, comer no refeitório, onde está toda a gente, ter a missa onde quatro dias por semana vem gente de fora, das paróquias. Gosto muito disso. Tornei-me padre para estar com pessoas”, confessou, numa entrevista ao jornal argentino “La Voz del Pueblo”, publicada em maio de 2015.

Não é exagero dizer que a luta contra a pobreza e a exclusão social está sempre no centro das suas orações e mensagens, mas foi na exortação evangélica Evangelii Gaudium que estas posições ganharam ainda mais força. Neste documento de dezenas de páginas, Francisco ataca aquilo que chama de "nova tirania" do capitalismo sem limites e apela a uma "saudável descentralização" da Igreja. O Papa apelou aos políticos para que garantissem a todos os cidadãos “trabalho digno, educação e cuidados de saúde” e aos ricos para que partilhassem a sua fortuna. “Tal como o mandamento ‘não matarás’ impõe um limite claro para defender o valor da vida humana, hoje também temos de dizer ‘tu não’ a uma economia de exclusão e desigualdade. Esta economia mata”, afirmou Francisco nessa exortação.

Essa frase em particular – "Esta economia mata" – caiu mal em vários setores da Igreja, sobretudo entre os católicos com visões económicas mais neoliberais. E não foi preciso muito para que Francisco fosse rotulado de papa "marxista".

A ideia de uma Igreja focada nos mais pobres atravessa todo o seu pontificado, tal como a aproximação a outras confissões religiosas: refeições em que juntou refugiados e reclusos, visitas que fez a campos de migrantes e a estabelecimentos prisionais. “Para o Papa Francisco, o mundo é para ser pensado a partir das periferias e não do centro”, sublinha o padre Miguel Almeida. Já o Frei Fernando Ventura fala numa "lógica do serviço" em detrimento de uma "lógica de poder". “A consciência que muitos europeus têm da Igreja é a de uma Igreja montada no poder” e Francisco atreveu-se a “tocar nas estruturas do poder” e a desafiar a Igreja e o mundo “a passar da lógica do poder à lógica do serviço”.

E se há diversos momentos que são representativos disso mesmo, a primeira viagem apostólica que fez como Papa é, desde logo, muito simbólica. “A primeira vez que ele sai do Vaticano oficialmente é a Lampedusa, uma ilha no sul de Itália onde chegam muitos imigrantes”, nota o Frei Fernando Ventura. Ou, depois, as cerimónias da Semana Santa em que lavou os pés a reclusos doentes, incluindo hindus e muçulmanos: “Isto foi uma escandaleira para a ortodoxia reinante”, sublinha o Frei Fernando Ventura. São momentos que se unem por um significado claro. “A mensagem de que somos todos irmãos e somos todos filhos do mesmo deus, até independentemente das opções políticas e religiosas.”

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