Fazia "piadas sobre o quotidiano", agora critica o machismo e a "luta de classes": Diogo Faro - de "Sensivelmente Idiota" para comunicador sensível
Diogo Faro (Foto: Joana Moser)

Fazia "piadas sobre o quotidiano", agora critica o machismo e a "luta de classes": Diogo Faro - de "Sensivelmente Idiota" para comunicador sensível

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Joana Moser 
Sofia Marvão

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Joana Moser

Diogo Faro é comediante, mas também é ativista e criador de conteúdos. Há cerca de sete anos tirou "as palas" do seu privilégio e enfrenta agora um "campo de batalha" online pelo direito à habitação e igualdade de género

“Como é que ainda aqui estamos? Como é que chegámos aqui?” – Diogo Faro questionava a plateia do Teatro Maria Matos, em Lisboa, no início do seu espetáculo de stand-up “Lugar estranho” há quatro anos. Minutos antes, o público lia um chorrilho de citações misóginas e homofóbicas proferidas por figuras como Donald Trump, Jair Bolsonaro e até pelo taxista que em 2016 disse que as leis “são como as meninas virgens, são para ser violadas”. Iam passando, uma de cada vez, na tela gigante daquela sala. 

Muitos o conheceram como “o idiota”, agora é aquele que faz “comédia de vez em quando” e tem entrevistas com Mariana Mortágua. No Instagram, o handle é o mesmo, mas o conceito mudou. Se há 10 anos se dedicava a fazer “coisas muito parvas”, “zero artísticas” e que o “envergonham” - como entrevistar "betos, gangs de boas famílias" na rua ou "pessoas vestidas de forma incrível" no Moda Lisboa - atualmente garante estar “muito mais consciente das desigualdades”, nomeadamente a discriminação contra pessoas LGBTQIA+ e “o machismo surreal que ainda existe neste país”.

Diogo Faro tem 37 anos, é humano, comediante, ativista, autor de um podcast e coprotagonista de um espetáculo sobre poliamor. Mas também é homem, branco, cisgénero, heterossexual e de classe média – preenche todos os requisitos para nunca ter sofrido de preconceito ao longo da juventude. O próprio admite esta realidade, mas diz que já tirou “as palas” do seu privilégio, à medida que se foi apercebendo do quão “injusta” a sociedade pode ser com aqueles que vivem à margem. “Fazer piadas sobre o quotidiano” já não chegava. E é daí que chega a um humor “muito mais político”, com a crescente notoriedade nas redes sociais a ser a catapulta ideal.

Só que esta mudança de perspetiva, que agradou a muitos, não agradou a todos. E apesar de já ter sido insultado e ameaçado de morte inúmeras vezes, abre-nos a porta do seu modesto T1 para nos dar a conhecer um pouco mais da sua vida.

À chegada, recebe-nos de sorriso rasgado e pede educadamente que descalcemos os sapatos. É aquele momento constrangedor em que, ou temos um bom par de meias, ou arranjamos uma desculpa esfarrapada para não o fazer. Não é o caso. Aliás, Diogo surge preparado. Passeia orgulhosamente o ano “1974”, da Revolução de 25 de Abril, nos seus tornozelos.

Mas aquilo que nos salta verdadeiramente à vista é o tapete da entrada: André Ventura…estrábico. “Podem limpar os pés à cara dele”, risos. Convida-nos a entrar.

Ao lado de uma estante (literalmente) a transbordar dos mais variados livros, senta-se de perna cruzada, transparecendo uma timidez com a qual não contávamos. Do outro lado do telemóvel vemos um Diogo seguro, enérgico, provocador, mas à nossa frente inesperadamente tranquilo e cauteloso.

Antes de darmos início à entrevista, reparamos no rosto de Anthony Bourdain – chef, escritor e apresentador de televisão - que nos observa a partir de uma moldura branca pendurada na parede. “É uma figura muito importante para mim”, começa por explicar enquanto observa aquela fotografia a preto e branco. “Não era um viajante qualquer, era um viajante com muita consciência de classe, muita consciência política, muita consciência das desigualdades, o que para mim o tornou uma pessoa mesmo fascinante”. De tal maneira que inspirou o nome de uma das suas duas gatas de estimação, Antónia Bourdain, de 7 meses. No caso da mais velha, de 8 anos, foi requerido um esforço maior: Carminho de Mello e Cunha Vasconcellos Sottomayor. Também elas nos acompanham (e interrompem repetidamente) durante a conversa.

Mas de volta ao início.

Diogo nunca sonhou ser comediante, tampouco tinha qualquer crítica a fazer em relação aos problemas da sociedade. Sob o pseudónimo “Sensivelmente Idiota” começou a escrever crónicas humorísticas num blog como passatempo, enquanto concluía o ensino superior, e criou uma conta no Facebook numa altura em que o Instagram ainda era apenas uma ideia. Piadas curtas foram passando a textos mais longos, depois a voxpop’s na rua, até aos primeiros vídeos para o YouTube. “Brincava com as respostas das pessoas”, descreve. “Foi só há 10 anos, mas eram coisas que não faria agora e que me envergonham”.

 

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"Há pessoas que me odeiam profundamente"

O stand-up veio a seguir, depois de ter frequentado um workshop. “Gostei daquilo, comecei a atuar em bares e até chegar aqui foi um longo caminho”. Lembra-se dos primeiros espetáculos que fez com outras humoristas para “bêbados num café, a jogar setas, que não queriam ouvir”. Cerca de sete anos depois, a sua comédia denota uma roupagem muito diferente e politizada, tendo já enchido "12 Villaret's". “Tem muito a ver com o meu crescimento pessoal, com ler muito, começar a falar com outras pessoas”, explica.

E as reações do público? “Tenho de ser honesto, são muito viscerais”, admite. “Há pessoas que me odeiam profundamente. No outro dia mandaram-me uma garrafa à cabeça”. Já está acostumado com a discórdia, tem amigos de direita, liberais e todos discutem de forma acesa, sem recorrerem à violência. Mas não deixa de se surpreender quando é abordado negativamente na rua, sobretudo quando se encontra na companhia de amigos: “É mesmo muito estranho e surreal que as pessoas tenham a audácia de vir chamar-me nomes, insultar-me, empurrar-me, etc. Os meus amigos ficam preocupados e às vezes têm de intervir, é muito desagradável”.

Por outro lado, “tenho consciência de que muita gente gosta do meu trabalho e me apoia. Dizem-me coisas mesmo muito, muito, muito bonitas”. Não dá exemplos, para não se gabar, mas assegura que “são coisas muito especiais”. “Às vezes deixam-me comovido e também a saber que estou a fazer o tipo de comédia que quero fazer”, sorri.

Perguntamos-lhe se se considera um influencer político. “Já influencio um bocadinho, mas não vou mudar o rumo do país de certeza”, responde. “Eu sei que não é por eu defender as coisas que defendo que os partidos à esquerda com os quais me identifico vão ter muito mais votos e o partido de extrema-direita vai ter muito menos, tenho de tentar perceber onde está a minha importância”. Não obstante, na sua ótica, “a cultura influencia a maneira como a sociedade vai funcionando”. “Se houver um conjunto de opiniões, na comédia ou na música, que seja altamente racista, isso vai continuar a influenciar a sociedade a ser racista”, conclui.

Em relação ao seu conteúdo, sente-se livre de escrever sobre o que quiser, mas há temas “que não têm graça nenhuma”, nomeadamente “piadas sobre pessoas trans, gays ou mulheres na cozinha”. “Mesmo do ponto de vista artístico não tem mesmo graça nenhuma, por isso não se trata de eu me autocensurar”, defende. “Não vou fazer uma piada sobre negros porque não tem piada ser racista e porque, para mim, como qualquer forma de cultura, a comédia está envolvida num contexto, não vive isoladamente”.

"Como é que é radical pôr tetos às rendas mas não é radical haver tanta gente sem teto?": Diogo Faro, humorista de 37 anos, quer combater a “luta de classes”

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"Como é que é radical pôr tetos às rendas, mas não é radical haver tanta gente sem teto?"

Desde que decidiu apostar acerrimamente na defesa de causas, "Faro" - como também o chamam - tem vindo a canalizar a sua atenção para a crise habitacional no país, com uma forte abordagem nas redes sociais que tem contribuído para o seu crescimento online.

Já não se considera apenas um comediante, mas um ativista empenhado, cofundador de um movimento ”cívico, artístico e apartidário” pelo direito à habitação. “Contribuímos para a organização de várias manifestações e temos estado a juntar-nos com outros coletivos”, conta.

A viver sozinho em Lisboa, reconhece o seu privilégio e a dificuldade sentida pela maioria dos jovens. Descreve com pesar a realidade comum de partilhar casa com oito desconhecidos, lidar com restrições de tempo para usar a casa de banho e ter apenas uma prateleira no frigorífico. 

Há cerca de um ano, antes da crise da habitação se tornar uma discussão mais proeminente, começou a produzir vídeos de sensibilização para o problema. “Não descobri a pólvora, não fui eu que descobri que havia uma crise da habitação, mas sei que ajudei a que o fenómeno rebentasse”. Desde então começou a receber testemunhos de pessoas e fez a ligação com os jornalistas. 

Ao abordar possíveis soluções, destaca “a necessidade urgente de acabar com os benefícios fiscais concedidos aos grandes grupos económicos". Propõe também uma “redução imediata das taxas de juro” e uma “forte redução do alojamento local, que continua a aumentar”. 

“Em Portugal constrói-se um hotel novo de cinco em cinco dias. Isto é o quê? Um parque de diversões? Como é que é suposto as pessoas viverem?”, questiona sarcasticamente. Na verdade, segundo dados da consultora Cushman & Wakefield, em 2023 estavam previstas 75 inaugurações de hotéis por todo o país. 

Outra solução defendida por Faro é a imposição de um teto às rendas. Mesmo quando confrontado sobre como agiria se fosse senhorio, é firme no seu apoio à existência de um limite para as rendas. Sublinha ainda a importância de distinguir senhorios razoáveis de grandes empresas imobiliárias, ressaltando que é mais crucial garantir que todos tenham um lar do que permitir que alguns acumulem várias propriedades.

Para além da habitação, a Saúde e a Educação são outros dos temas que mais o preocupam: “São a base de tudo”. No entanto, diz que “não está tão por dentro”. Na sua ótica, na base de todos os problemas está sempre a “luta de classes”. Até pode parecer uma “coisa antiquada”, mas “vivemos num país onde os milionários são cada vez mais milionários, e onde a classe baixa e a classe média têm cada vez menos poder de compra”.

“É bastante angustiante como é que aumentam os preços de comida por todo o lado, aumentam os preços da gasolina, aumentam as rendas, e depois os bancos têm recordes de lucro semestre após semestre, uma barbaridade de lucros”. Critica o desequilíbrio extremo nas lucrativas operações de empresas privadas, apontando para os salários mínimos e longas horas que, embora gerem empregos, frequentemente resultam em condições precárias. 

Também questiona a “acumulação exorbitante de lucros por empresas”, criticando “salários inadequados e o impacto nos custos para todos”, e destaca a disparidade entre acionistas a enriquecer e muitos a lutar para pagar despesas básicas. “Não sou contra as empresas privadas gerarem lucro, mas é preciso tanto? É preciso terem mil milhões de lucro e pagarem tão mal aos funcionários e as coisas ficarem tão caras para toda a gente?”.

Em relação à saúde mental, o comediante faz a ligação entre este problema e as dificuldades financeiras vividas, argumentando que ansiedade e depressão frequentemente derivam da impossibilidade de arcar com despesas essenciais. 

 

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"Amor, quero beijar mais pessoas"

Diogo Faro e a atriz Joana Brito Silva estão numa relação não monogâmica há dois anos e exploram abertamente o poliamor no seu espetáculo "Amor, Quero Beijar Mais Pessoas". Trata-se da abordagem a uma possibilidade que, para os dois, devia ser normalizada: a atração por várias pessoas em simultâneo. No espetáculo, onde se sentam lado a lado, Diogo e Joana discutem sem tabus o "hot topic" do poliamor. 

“Para nós foi o caminho mais natural, não vivemos juntos e sentimos-nos atraídos por várias pessoas e amamos várias pessoas ao mesmo tempo”, explica Faro, sublinhando que não considera que a monogamia está errada. Mas, na sua ótica, as pessoas caem numa relação monogâmica “aceitando tacitamente as regras impostas pela sociedade”. “As pessoas seguem uma escada relacional e raramente falam sobre o que as incomoda”. 

Questionado sobre aquilo que caracteriza este estilo de vida, Faro destaca a importância da gestão do tempo, assemelhando-se à organização de amizades e hobbies. A seu ver, na monogamia a valorização do tempo para estar sozinho é frequentemente subestimada.

Sobre ciúmes, admite que existem e que "são normais", mas alerta para a necessidade de mudar a forma como são encarados, uma vez que derivam de inseguranças. A honestidade é vital.

Ao tornar pública a sua experiência, o casal recebe mensagens desafiadoras, mas sente que contribui positivamente para desmistificar o poliamor. 

E a família? "Reagiu bem", embora não tenham sido apresentados outros parceiros, o que pode acontecer no futuro. 

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Comediante ou influencer político?

Diogo Faro conta que nem sempre planeia os seus vídeos. “Às vezes são coisas mais do momento”, especialmente quando reage ao vídeo de alguém, “a quente”. Contudo, é mais comum escrever um guião, “para a coisa ficar mais estruturada”. 

É numa mesa encostada à janela que ilumina todo o seu T1 onde grava os conteúdos. Tem apenas um pequeno suporte de telemóvel e boa luz natural. Essa é a parte fácil. Segue-se a edição, que dá mais trabalho, mas é essencial para o ritmo. Não tem nenhuma rotina, nem publica todos os dias nas redes sociais. 

Para além do Instagram, usa o TikTok e o Twitter. No TikTok apenas replica os vídeos que publica no Instagram, “não faço conteúdos específicos”. Descreve o Twitter como um “campo de batalha”, com “gente muito maldosa”, mas também como um lugar divertido, onde discute com pessoas de direita com as quais discorda, sobretudo os liberais. 

Já sobre o conteúdo que faz, é “um caos”, não tem um “humor lógico”. Atualmente, está virado para os debates, que gostava que fossem mais longos. Conta que tem gostado de ouvir Mariana Mortágua, Paulo Raimundo e Rui Tavares e salienta que foram as únicas pessoas que falaram de cultura. Para Diogo, a cultura é um tema importante, mas entende que “não havendo casa nem comida, não se pense logo" nesse tema.

No humor tem como referência Herman José, Ricardo Araújo Pereira e Bruno Nogueira e explica que a sua comédia tem o limite que o próprio quis impor. “Tem zero graça fazer uma piada sobre pessoas gays, ou lésbicas, ou trans, portanto, esse é o meu limite, e principalmente sabendo que são comunidades que já de si são mais violentadas e oprimidas”. No entanto, não condena quem o faça. Afinal “cada humorista faz o que quer e, se houver público para isso, está tudo bem”. 

Diogo Faro tem também um podcast anual, “Desta para melhor”, que funciona por temporadas. A última entrevistada foi Mariana Mortágua, coordenadora do Bloco de Esquerda. “Uma entrevista mais irónica e provocadora”, descreve, assumindo que mantém uma boa relação com a coordenadora do BE. Não é militante de nenhum partido, mas é próximo de várias pessoas do partido. 

Não é só Mortágua que Diogo admira, tem também como referência na política Álvaro Cunhal e Francisco Louçã, pela “integridade, consistência e fiabilidade na defesa de dirimir as desigualdades”. 

 

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"Ideologia" ou "identidade" de género?

No que diz respeito à chamada "ideologia de género", desmistifica o termo, considerando-o uma invenção utilizada por grupos mais conservadores para “rotular tudo relacionado aos direitos LGBTQI+ e ao feminismo”. Faro defende que, na realidade, não existe uma "ideologia de género", mas sim “uma busca pela igualdade de género".

Afirma ser um objetivo importante e legítimo de partidos que promovem os direitos LGBTQIA +, incluindo a autodeterminação e questões como o acesso a casas de banho mistas, frequentemente distorcido pela extrema-direita para atacar os direitos destas pessoas.

No que concerne ao tão debatido tema das casas de banho, hesita: "Depende da situação". Em locais públicos, como restaurantes, não acredita que faça sentido uma terceira instalação sanitária, argumentando que a separação por géneros já nem se verifica em alguns estabelecimentos. Mas apoia a proposta aplicada às escolas, de forma “a criar um espaço seguro e inclusivo” para pessoas trans e não-binárias. 

Sobre o mesmo assunto, critica “a retórica ridícula da extrema-direita, que distorce a intenção por trás dessas medidas”, afirmando que é apenas “uma tentativa triste e patética de atacar os direitos das pessoas LGBTQIA +”. Faro frisa que a identidade de género e a orientação sexual de uma pessoa não afeta a vida dos outros pelo que, “é importante permitir que cada indivíduo seja feliz e autêntico na sua identidade”.

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