Eu bebi ácido
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Eu bebi ácido

Por Hilary Whiteman, Anna Coren e Abdul Basir Bina

Um dia Mahsa desceu as escadas e encontrou a irmã, Arzo, a olhar para ela com os olhos esbugalhados. "Perguntei-lhe 'o que te aconteceu?', ela disse-me que tinha bebido ácido." Arzo ficou com o esófago e o estômago danificados, agora é alimentada com fluidos através de um tubo de alimentação. E Arzo chora em silêncio, ainda consegue chorar, isso consegue, chora em silêncio enquanto ouve os irmãos a contar a história dela. Que é uma história que aconteceu, uma história que continua a acontecer com outras Arzos num Afeganistão onde as mulheres se estão a suicidar porque isso é melhor que a vida que as deixam ter - correção: que não as deixam ter. Arzo queria dançar, dançar e estudar - é ela a dançar ali na imagem em cima, era agosto de 2021, agora é dezembro de 2023 e ela pesa 25 quilos, os irmãos receiam não ter dinheiro para a salvar. E as mulheres afegãs receiam que o mundo comece a aceitar que o que lhes está a acontecer é normal

Carachi, Paquistão (CNN) - Arzo está tão fraca que passa a maior parte do dia deitada num colchão fino, num quarto pouco iluminado, debaixo de uma ventoinha de teto que faz circular constantemente o ar poluído da maior cidade do Paquistão.

Para passar o tempo, vê vídeos de maquilhagem no telemóvel, com o brilho do ecrã a iluminar as sardas desbotadas de uma adolescente cuja pele raramente vê o sol.

Arzo está muito longe da sua casa no Afeganistão, onde vivia com os pais antes de ser levada clandestinamente para o outro lado da fronteira para receber tratamento médico.

O irmão e a irmã mais velhos, Ahamad e Mahsa, tomam agora conta dela num quarto alugado em Carachi, o seu refúgio temporário da vida no Afeganistão sob o domínio talibã.

"Não te preocupes", sussurra Ahamad enquanto beija a mão de Arzo. "Vais ficar bem. Não te preocupes, estamos sempre contigo. Espero que fiques bem em breve."

A CNN não utiliza os nomes verdadeiros de Arzo e dos seus irmãos porque eles temem represálias dos talibãs e serem descobertos pelas autoridades paquistanesas, que deportaram mais de 26.000 afegãos desde que anunciaram uma repressão em outubro contra os imigrantes sem documentos.

O regresso forçado ao Afeganistão significaria a morte certa para a jovem de 15 anos, dizem os irmãos, porque ela precisa de cuidados médicos que, segundo eles, não estão disponíveis no seu país de origem.

Os irmãos não costumam falar sobre a razão pela qual a irmã mais nova está tão mal - não querem perturbá-la. Enquanto contavam a sua história à CNN, Arzo chorava em silêncio.
 

Uma rapariga com ambição

Mostram-nos um vídeo: Arzo dança descalça, de calças de ganga, ao som de música pop com as suas irmãs numa casa no Afeganistão. Sorri enquanto roda as mãos ao ritmo da batida.

Ahamad conta que o vídeo foi filmado seis meses depois de os talibãs terem tomado o controlo do país, em agosto de 2021. As escolas estavam fechadas mas as suas irmãs estavam confiantes de que iriam reabrir.

Mas não reabriram. Em vez disso, os talibãs reimpuseram gradualmente as políticas repressivas que reduziram o papel das mulheres na sociedade durante o seu anterior governo, de 1996 a 2001, apesar das garantias de que não o fariam.

As mulheres estão proibidas de frequentar a maior parte dos locais de trabalho, universidades, parques nacionais, ginásios e de ir a qualquer lugar público sem um acompanhante masculino.

E as raparigas já não são educadas além do sexto ano.

Mahsa já tinha terminado o liceu mas Arzo ainda tinha três anos pela frente.

Quando a escola da aldeia fechou, o pai, preocupado, enviou as filhas para estudar Inglês num centro educativo em Cabul, mas este também fechou rapidamente.

De volta a casa, Mahsa começou a trabalhar como costureira para passar o tempo. Mas Arzo entrou cada vez mais em depressão.

"A maior parte das vezes ela dizia 'espero que nos mudemos deste sítio, não quero estar aqui, não há educação e eu quero ser médica'", recorda Mahsa.

Um dia, em julho, Mahsa desceu as escadas e encontrou a irmã a olhar para ela com os olhos esbugalhados.

"Perguntei-lhe 'o que te aconteceu?', ela disse-me que tinha bebido ácido. Eu não acreditei, por isso pus os meus dedos na boca dela e ela vomitou sangue", conta Mahsa.

Médicos registam um aumento do número de suicídios

Os especialistas afirmam que não são compiladas estatísticas fiáveis sobre suicídios e tentativas de suicídio no Afeganistão, mas os grupos de defesa dos direitos humanos e os médicos afirmam ter registado um aumento sob o regime talibã.

Shikib Ahmadi tem trabalhado seis dias por semana e mais horas do que nunca, atendendo pacientes numa clínica de saúde mental na província de Herat, no oeste do Afeganistão. Está a usar um pseudónimo porque receia que os talibãs o castiguem por falar com os meios de comunicação social estrangeiros.

Ahmadi diz que o número de pacientes do sexo feminino na sua clínica aumentou 40% a 50% desde a tomada do poder pelos talibãs há dois anos. Cerca de 10% dessas pacientes suicidam-se, afirma.

Segundo Ahmadi, as raparigas e as mulheres, cuja vida é restringida pelos talibãs, estão a recorrer a artigos domésticos baratos para tentar o suicídio. Veneno para ratos, produtos químicos líquidos, líquidos de limpeza e fertilizantes agrícolas - tudo o que pensam que lhes vai aliviar a dor.

Não vejo um bom futuro para ninguém neste país

Ahmadi diz que tenta dizer-lhes que as coisas vão melhorar, que as escolas vão reabrir, que podem trabalhar em casa enquanto esperam, fazendo alfaiataria ou algo que lhes dê um objetivo.

Mas a verdade é que não sabe se as aulas alguma vez vão recomeçar e a sua própria esperança está a desvanecer-se.

"Não vejo um bom futuro para ninguém neste país."

Outro grupo de raparigas acabou de concluir o sexto ano - o fim da sua educação segundo as regras talibãs.

Ahmadi teme que isso signifique outra vaga de automutilação e suicídio.

"No ano passado, toda a gente tinha a esperança de que no próximo ano as escolas estariam abertas. O governo prometeu que abriria as escolas. Mas, desde este ano, as escolas não estão abertas, pelo que as pessoas perderam as esperanças. Sinto que o número de suicídios vai aumentar."

A CNN contactou os talibãs para comentarem o aumento do número de suicídios entre as mulheres.

Numa declaração fornecida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros dos Talibãs ao Gabinete do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos em janeiro, o grupo afirmava que as taxas de suicídio feminino tinham diminuído desde que chegaram ao poder.

"Nos últimos 20 anos houve muitos casos de mulheres que se suicidaram, mas, pela graça de Alá, já não temos esses casos", dizia a declaração.

A afirmação é contrariada por vários relatórios, incluindo de peritos da ONU, que afirmaram em julho que "os relatos de depressão e suicídio são generalizados, especialmente entre as raparigas adolescentes impedidas de prosseguir os estudos".

Arzo é alimentada com fluidos através de um tubo de alimentação enquanto espera por uma operação para reparar as suas feridas.

O regresso dos talibãs

Arzo nasceu em 2008, sete anos depois de os Estados Unidos e os seus aliados terem invadido o Afeganistão e afastado os líderes talibãs, acusados pelos EUA de albergarem os terroristas da Al Qaeda que estiveram na origem dos ataques de 11 de Setembro.

Sob o governo afegão apoiado pelo Ocidente, uma guerra civil devastadora assolou o país durante anos, mas a vida das mulheres afegãs melhorou. Muitas começaram a estudar, obtiveram diplomas e tornaram-se modelos para raparigas como Arzo e Mahsa.

Mas tudo mudou em 2021, quando os EUA e os seus aliados começaram a retirar-se do Afeganistão, criando espaço para o ressurgimento dos talibãs, que se tinham retirado para as zonas rurais do Afeganistão e do Paquistão.

De volta ao poder nas cidades, os talibãs reimpuseram a sua ideologia islamista radical, efetuando execuções extrajudiciais, prisões arbitrárias e detendo ilegalmente qualquer pessoa considerada uma ameaça à sua liderança, de acordo com grupos de defesa dos direitos humanos.

No caótico rescaldo da tomada do poder, as mulheres foram inicialmente aconselhadas a ficar em casa porque os combatentes "não estavam treinados" para as respeitar. As restrições foram gradualmente reforçadas e, atualmente, milhões de raparigas e mulheres estão em grande parte confinadas às suas casas, sob a ameaça de serem punidas se não obedecerem.

Ayesha Ahmad, professora associada em Humanidades da Saúde Global na Universidade de St. George, em Londres, estava a realizar entrevistas aprofundadas com mulheres no Afeganistão que tinham fugido da violência doméstica quando os talibãs se instalaram.

"Nunca esquecerei o dia da tomada do poder, os telefonemas e as comunicações frenéticas e o terror absoluto que sentiam porque sabiam qual seria a realidade - e tinham razão", conta Ayesha Ahmad.

Atualmente, muitas mais mulheres são vulneráveis à violência e algumas veem o suicídio como a única saída, apesar do estigma cultural e da vergonha que isso traria para as suas famílias.

"O suicídio é um pecado no Islão e, neste contexto de extremismo religioso, as mulheres não vão ser vistas como vítimas."

Com pouca simpatia por parte dos líderes talibãs que criaram esta situação, as mulheres afegãs estão a procurar apoio fora do seu país.

Heather Barr, diretora associada da divisão de direitos das mulheres da Human Rights Watch, diz que as mulheres afegãs receiam que o mundo comece a aceitar que o que lhes está a acontecer é normal.

"Toda a gente encolhe os ombros e diz 'bem, é o Afeganistão'. Devia ser intolerável para todos nós. Porque o que acontece no Afeganistão, e a forma como a comunidade internacional reage ou não, tem enormes implicações para os direitos das mulheres a nível mundial", afirma.

"Temos de dizer aos nossos governos que isto não pode ser visto como normal. Não pode ser tratado como mais um país com um problema interno."

Choro pelo futuro dela

Ahamad não estava no Afeganistão em julho quando a sua irmã bebeu o ácido. Já tinha fugido para o Paquistão, temendo represálias dos talibãs pelo seu trabalho como jornalista antes da tomada do poder. Diz à CNN que o seu pai e o seu tio levaram Arzo a um médico local que lhe deu alguns medicamentos e lhes disse para irem a Cabul se o seu estado piorasse. E piorou.

Em Cabul, um médico disse que o ácido tinha danificado o esófago e o estômago e que era pouco provável que Arzo sobrevivesse à cirurgia. Por isso decidiram levá-la para o Paquistão, onde Ahamad estava à espera com um médico. Ahamad levou então Arzo para Carachi, onde outro médico lhe colocou um tubo de alimentação no estômago.

Isso foi há três meses. Desde então, Ahamad diz que Arzo tem vindo a perder peso de forma constante e pesa agora cerca de 25 quilos.

"A situação dela não é nada boa. Os médicos instalaram um tubo no estômago para a alimentar, para que ela possa ganhar peso e estar pronta para a verdadeira operação" em janeiro, diz Ahamad.

"Talvez ela não ganhe peso", teme. "E talvez eles não façam a operação."

Mahsa senta-se na cama, com a agulha a furar o tecido com precisão suficiente para manter a mente concentrada na tarefa. Mahsa gostava de voltar a estudar mas, neste momento, cuidar da irmã é tudo o que importa.

"Não consigo dormir à noite porque ela está a sofrer."

Os irmãos sabem que estão a correr um grande risco ao falarem - temem o alcance dos talibãs no Paquistão e temem pelos seus pais, que ainda vivem no Afeganistão.

Mas estão desesperados.

Nenhum deles pode trabalhar, dizem os irmãos, e não têm os 4.450 euros necessários para a cirurgia de Arzo, nem o dinheiro para o quarto, a comida para eles e as latas de leite em pó e sumo de que precisam para evitar que o peso dela baixe.

Não querem pensar no que acontecerá se o último dinheiro acabar ou se a polícia paquistanesa vier bater à porta.

Não choro à frente dela, mas beijo-a e choro enquanto ela dorme à noite

Desde outubro, quando o governo paquistanês anunciou que já não tolerava a presença de afegãos sem documentos, cerca de 400.000 regressaram ao Afeganistão, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM).

A maior parte partiu voluntariamente, levada pelo medo de ser presa, de acordo com uma declaração conjunta das agências da ONU.

Em outubro, o ACNUR instou o Paquistão a pôr termo às expulsões, alertando para o facto de os que regressaram estarem em "grave risco de violação dos direitos humanos".

Entre os mais vulneráveis incluem-se "ativistas da sociedade civil, jornalistas, defensores dos direitos humanos, antigos funcionários do governo e membros das forças de segurança e, claro, mulheres e raparigas em geral", diz a porta-voz Ravina Shamdasani aos jornalistas em Genebra.

O Paquistão defendeu o seu Plano de Repatriamento de Estrangeiros Ilegais (IFRP), afirmando num comunicado que "está em conformidade com as normas e princípios internacionais aplicáveis".

Ahamad quer um lugar seguro para ir com as suas irmãs, onde possam reconstruir as suas vidas, retomar os estudos e começar a trabalhar como sempre planearam.

Ele sabe que regressar ao Afeganistão não é uma opção para as suas irmãs, especialmente para Arzo, que chora de desespero com a sugestão.

"Se ela regressar ao Afeganistão vai ter o mesmo destino. Seria melhor viver num país pacífico e continuar a sua educação e tratamento adequado", diz Ahamad.

Por agora, vivem entre as quatro paredes de um quarto carregado de tristeza pela rapariga que dançava descalça e que agora luta para ter forças para levantar a cabeça.

"Não choro à frente dela, mas beijo-a e choro enquanto ela dorme à noite, pelo seu futuro, pelo seu tratamento, para que possa sobreviver a esta doença."

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