Esta equipa de investigadores quer revolucionar os diagnósticos médicos no país - e o segredo está no olfato: "Não temos de furar, fazer recolha de sangue ou biópsia"

Esta equipa de investigadores quer revolucionar os diagnósticos médicos no país - e o segredo está no olfato: "Não temos de furar, fazer recolha de sangue ou biópsia"

Querem detetar doenças como cancros, Alzheimer ou Parkinson. Tudo isto através do nariz. Sim, leu bem

REPORTAGEM 
SOFIA MARVÃO 

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SOFIA MARVÃO 

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SOFIA MARVÃO 

Parece uma mala de dinheiro daquelas que vemos habitualmente em filmes de ação, mas na realidade é um nariz, ou melhor, um “nariz elétrónico”, e foi desenvolvido num laboratório da NOVA FCT, na Caparica.

Cecília Roque, professora nesta instituição, investigadora e diretora da unidade de Engenharia Biomolecular da UCIBIO, abriu as portas à CNN Portugal para dar a conhecer a equipa por detrás do projeto que deu corpo ao E-Nose.  

Com base em ferramentas modernas de bioengenharia e inteligência artificial, como a “maleta” referida, apresenta diagnósticos rápidos, e sem intervenção de agulhas, inspirados no olfato. Por exemplo, na deteção de um eventual cancro de bexiga, em vez de ser exigida uma cistoscopia ao paciente basta pedir uma recolha de urina, e é o seu cheiro que ditará o resultado.

À partida muito mais simples e menos doloroso do que introduzir um objeto rígido ou flexível - o cistoscópio - com uma pequena câmara na uretra do paciente que, sem a devida anestesia pode ser, no mínimo, bastante desconfortável.

Ora, através da alternativa sugerida por Cecília Roque, “não temos de furar o paciente, fazer uma recolha de sangue ou uma biópsia, porque isso são procedimentos extremamente invasivos. Muitas vezes causam desconforto, dor, desespero, até stress”.

Investigadora armazena uma amostra de urina para ser analisada

É como se cheirássemos alguma coisa e a reconhecêssemos imediatamente. Só que não somos nós, é o nariz eletrónico.

A recolha de urina ou de sebo são duas alternativas utilizadas por estes investigadores como objetos de análise. Como qualquer outro odor, o destas amostras é constituído por aquilo que os especialistas chamam “compostos orgânicos voláteis”, dada a sua grande facilidade em passar para o estado gasoso. Trata-se de pequenas moléculas que são transportadas até ao nariz pelo ar, ligando-se aos órgãos sensoriais no seu interior. Essa ligação resulta num sinal, entretanto processado pelo cérebro.

Segundo a investigadora, é devido à interação entre esses “voláteis” que surge um padrão, “como se fosse uma impressão digital”. No caso de uma pessoa doente, o padrão indicia a presença de um determinado problema de saúde.  

Mas em termos práticos, como é que isto se verifica?

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Um mecanismo que cheira como o ser humano

Em 2014, o Conselho Europeu de Investigação (ERC) atribuiu a bolsa “Starting Grant” a Cecília Roque, com vista ao desenvolvimento de ferramentas necessárias para a identificação de infeções bacterianas. “SCENT: géis híbridos para deteção microbiana rápida” foi a proposta apresentada na candidatura.

Durante cerca de cinco anos, a sua equipa dedicou-se ao estudo e criação de biossensores nasais: pequenos materiais sustentáveis e não poluentes, com uma textura gelatinosa, que reagem às moléculas presentes nos odores das amostras, quando em contacto com as mesmas. Em particular, as moléculas mais prevalentes em infeções humanas e associadas à resistência a antibióticos.

“Um aspeto inovador que os caracteriza é que são géis e não secam”, afirma Carina Esteves, uma das investigadoras do grupo. À medida que nos vai mostrando alguns exemplos, descreve-nos o gel como “uma rede tridimensional que tem a capacidade de imobilizar um líquido dentro dessa rede”, semelhante à gelatina.

“O que acontece com os géis, que são capazes de imobilizar água no seu interior, é que a água pode evaporar e alterar essa estrutura tridimensional”, continua. “Os nossos utilizam solventes iónicos, que têm a capacidade de não evaporar e, portanto, é mantida ao longo do tempo a estrutural do gel.

Esses materiais podem ter propriedades elétricas, óticas ou ambas em simultâneo, que se alteram quando entram em contacto com as moléculas dos cheiros.

Susana e Carina mostram biossensores nasais desenvolvidos na NOVA FCT

Uma vez que estas respostas não podem ser detetadas a olho nu, foi desenvolvida a tecnologia E-Nose, também chamada de “Nariz eletrónico”, inspirada no olfato humano, com base em técnicas de inteligência artificial, como machine learning.

“Pessoas de engenharia eletrotécnica, materiais, engenharia informática, ajudaram a desenvolver um dispositivo próprio para capturar aqueles sinais”, conta Susana Palma, também investigadora na equipa de Cecília Roque. “E através da programação, ensinamos um computador a reconhecer o que é o cheiro, o padrão do odor das nossas amostras. Tal como o nosso cérebro faz, na realidade”. Mais concretamente, quando uma determinada amostra lhe é apresentada, tenta adivinhar se corresponde a uma pessoa doente ou não.

Nesta fase, os sinais ainda são revelados no monitor sob a forma de gráficos, e posteriormente analisados por especialistas em ciências de dados. Mas o objetivo é que, para o utilizador final, tudo seja feito internamente, no computador, por meio de algoritmos. “Para que o ‘comum mortal’ apenas veja um número, ou um sim ou um não, neste caso doente ou não doente. Por ser um instrumento de trabalho futuro, queremos que seja fácil e acessível a toda a gente”, conclui.

Susana aponta para uma mala prateada, abrindo-a. “Eu sei, parece uma mala de dinheiro”, risos. É o tão falado nariz, completamente diferente do formato a que nos habituámos. No seu interior vemos uma série de pequenos objetos ligados por cabos. “Temos uma mini cavidade nasal onde pomos os sensores, um frasco onde colocamos as amostras, eletrónica que vai converter as reações dos sensores às amostras em sinais, e depois temos uma ligação ao computador, que faz a interpretação desses sinais”, indica, dando início a uma demonstração.

Como funciona o E-Nose?

Numa pequena sala dentro do laboratório, Susana e Carina chamam-nos com entusiasmo. “Podemos mostrar o gel no microscópio”, sugere uma das investigadoras. Aguardamos alguns minutos e abre-se uma janela no ecrã de um computador, repleta de figuras coloridas, semelhantes a flores. Chamam-lhes “droplets” e, de acordo com as especialistas, “não são mais do que cristais líquidos”, habitualmente associados a ecrãs de telemóveis ou de televisões.

“O que nós fazemos é a mistura dos cristais líquidos com os líquidos iónicos, que fazem uma droplet”, introduz Carina. “Quando estão em contacto com moléculas voláteis, essas droplets alteram-se. Basicamente desaparecem. É esse sinal, esse aparecimento e desaparecimento, que nós detetamos com o nariz eletrónico”.

Vemos as “flores” a alterarem-se, à medida que vai introduzindo um líquido no microscópio.

“Por isso é que demoramos tanto tempo aqui, por isto ser tão divertido”, atira Susana, deslumbrada.

Aquilo que os olhos não conseguem ver
O projeto ENSURE fica concluído em junho deste ano
O projeto ENSURE fica concluído em junho deste ano

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Descobrir o Parkinson e o Alzheimer pelo odor

Terminada a fase inicial do projeto, com o apoio da bolsa “Starting Grant”, Cecília Roque é uma das vencedoras da bolsa “Proof of Concept”, também atribuída pelo ERC, em 2022 e agora em 2024. Cada uma com a duração de 18 meses, destinam-se a aplicar as tecnologias desenvolvidas na proposta original a um problema concreto, de forma a conseguir a validação tecnológica e comercial da ideia.  

O projeto financiado, “ENSURE: acompanhamento não invasivo do cancro da bexiga”, será concluído em junho deste ano, dando lugar ao “UNMASK”, direcionado para as doenças neurodegenerativas. Percebeu bem, deteção de Parkinson e Alzheimer a partir do olfato.

“Nas doenças neurodegenerativas sabe-se que há uma desregulação numa série de circuitos, nomeadamente biológicos, associados a gorduras, lípidos, que pode causar um odor diferente na própria pessoa”, esclarece a responsável.  

“Conversámos com médicos, alguns doentes de Parkinson e associações quando estávamos a escrever a proposta. Sabemos que há, de facto, necessidade de formas mais rápidas e menos invasivas de diagnosticar estas doenças”.

Recorde-se que, em outubro do ano passado, a CNN Portugal divulgou uma entrevista a Ricardo Taipa, coordenador executivo do Banco Português dos Cérebros, que afirma que, apesar da complexidade de todas as doenças degenerativas, “o Alzheimer é sem dúvida um dos grandes desafios da humanidade”. Para o neurologista, há uma diferença entre a análise da patologia em vida e após a morte, uma vez que depois do falecimento é possível obter um diagnóstico mais percetível.

“Na realidade, estas doenças não têm uma cura, têm de ser geridas, de se tentar minimizar, retardar o efeito”, defende Cecília Roque. “Portanto, quanto mais cedo as pudermos detetar, melhor para os pacientes e para os próprios sistemas de saúde. Depois até acabam por gastar menos dinheiro”.

Para a validação da componente tecnológica e desenvolvimento do negócio, a equipa da NOVA FCT tem vindo a trabalhar em estreita colaboração com clínicos de hospitais, nomeadamente o IPO de Coimbra, o Garcia de Orta e o Beatriz Ângelo, bem como com a empresa italiana DayOne.

Esta última dedica-se a verificar, do ponto de vista do mercado, “qual seria a aceitação desta tecnologia e qual o seu potencial para poder ser aplicada e desenvolver um produto”.

Em relação aos pacientes com quem trabalham e à recolha das amostras deles provenientes, a investigadora garante que são obedecidos os princípios de ética e proteção de dados.

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Será o fim dos métodos invasivos?

Face ao desenvolvimento destes mecanismos, questionamo-nos se poderão ser infalíveis ao ponto de substituírem formas mais invasivas de deteção de doenças no futuro.

Para a professora “seria excelente”, mas não pode garantir que funcionem com todos os diagnósticos. “Para alguns, poderá complementar ou, pelo menos, evitar o número de vezes que têm de se aplicar metodologias invasivas”, argumenta, acrescentando que no caso do cancro da bexiga, o objetivo é “exatamente evitar que os pacientes tenham de fazer tantas vezes esses procedimentos”.

“Muitas vezes tem de ser dada a sedação e o doente não está confortável. O médico também não está confortável, porque não é um procedimento agradável de se fazer”, continua, ao seu lado, Carina Esteves.

“Se nós conseguirmos um teste que não seja invasivo, que seja fácil e que possa ser feito nos laboratórios comuns, estaria disponível para toda a população e ainda deixaria mais tempo livre para que os profissionais de saúde pudessem dedicar o seu tempo a outra coisa”.

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