"Enquanto está cá é uma de nós". As famílias de acolhimento são a melhor solução para as crianças em risco (mas não são a única)
Família (Pexels)

"Enquanto está cá é uma de nós". As famílias de acolhimento são a melhor solução para as crianças em risco (mas não são a única)

REPORTAGEM

Maria João Caetano

Em novembro de 2022 havia apenas 227 crianças integradas em 168 famílias de acolhimento. Mas o objetivo é aumentar cada vez mais a aplicação desta medida e, até 2030, passar das atuais 6.300 crianças e jovens institucionalizados para apenas 1.200. "Estamos a dar alguma coisa que é muito boa em nós, que é a nossa dinâmica familiar, a paz que temos cá em casa. É algo que exige pouco esforço, na verdade, e sentimos que podemos ajudar outra pessoa", dizem Rita e Margarida, que contam como a experiência de acolher crianças em risco é determinante para o seu projeto de família

Quando a assistente social ligou a dizer que tinha uma bebé a precisar de acolhimento, Margarida e Rita hesitaram. Não estava nos seus planos voltar a ter uma bebé em casa. Mas como dizer que não? Clara (chamemos-lhe assim) era uma bebé negra, com uma doença crónica que tinha passado os seus primeiros meses de vida internada no hospital. "Estava completamente fora do nosso perfil, mas sabíamos que já tinha os papéis para adoção e que já estavam à procura de uma família para ela. Decidimos aceitar", contam. Foram à arrecadação buscar as coisas que tinham sido das suas filhas, voltaram a montar a caminha de grades e foram comprar algumas roupas do tamanho adequado. "Durante uma semana fomos visitá-la todos os dias ao hospital. Depois ela veio connosco para casa. Foi tudo muito tranquilo." Foi a sua primeira experiência como família de acolhimento.

Margarida é economista, Rita é médica. Têm ambas 36 anos e têm duas filhas, de nove e quatro anos. E ainda têm o Balú, o cão que se juntou à família durante a pandemia, que distribui lambidelas e está sempre a pedir para brincar. "Inicialmente pensámos adotar uma criança, começámos a ver como seria e inscrevemo-nos para ir às sessões de esclarecimento quer da adoção quer para acolhimento familiar", conta Margarida. "A do acolhimento foi primeiro e foi muito boa, fizemos muitas perguntas. Saímos de lá com um bom feeling e pensámos um bocadinho na pertinência de fazer isto, fazia-nos sentido. Quando regressámos de férias inscrevemo-nos."

"No início, olhámos uma para a outra, e dissemos: o que é que fomos fazer?" Rita admite que foi "exigente e complexo". Clara chegou em julho, mas a creche só começava em setembro. "Tentámos ficar em teletrabalho, ou uma ou outra, mas tivemos de encontrar babysitters que lhe dessem atenção durante o dia - essa parte foi a mais complicada. Correu bem porque nenhuma de nós entrou em colapso ao mesmo tempo", ri-se. "Tivemos de alterar os planos de férias porque ter um bebé é desafio. E tivemos de aprender todos os cuidados médicos de que ela necessitava." Mas nunca se sentiram sozinhas, é importante dizê-lo, contaram sempre com a ajuda da sua equipa, composta por uma assistente social e uma psicóloga.

As duas filhas reagiram bem à bebé. "Acho que estivemos muito bem enquanto casal porque conseguimos só passar-lhes a parte boa, de brincar, de ajuda", confessa Margarida. "Dissemos-lhes: vamos ser a família dela enquanto estão à procura de uma família para ela. Elas ajudavam a dar o biberão, brincavam. Houve um grande envolvimento de toda a família."

"Pedem-nos para fazermos um livro da criança, apontamos a primeira vez que foi ao parque, que viajou, os primeiros passos. Sempre que eu pensava em pôr alguma coisa no livro era quase uma despedida, porque sabia que estava a fazer aquilo para os outros pais. É a única coisa que nós sabemos quando acolhemos uma criança: é que ela se vai embora", diz Margarida. Aconteceu cinco meses depois. E a transição decorreu sem problemas: na primeira semana, os pais vieram todos os dias brincar com a Clara lá em casa; na segunda semana foi ela que começou a ir a casa deles. E a ligação continua. "Ela foi adotada por uns pais maravilhosos, continuamos a vê-los com muita frequência, as meninas dizem que ela é uma prima. Damo-nos todos bem. Acho que ela vai sempre continuar na nossa vida e nós na vida dela."

"No fim, nós claramente precisávamos de um tempo para descansar", admite Rita. Aproveitaram para estar com calma com as filhas e fazerem uma viagem juntas. E dois meses depois acharam que estavam prontas para uma nova aventura no acolhimento.

Acolher uma bebé foi um desafio para Rita e Margarida, que já têm duas filhas: "Tivemos de alterar os planos das férias"

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"Estamos a dar uma coisa que é muito boa em nós, que é a nossa dinâmica familiar"

O primeiro passo para se ser família de acolhimento é, explica Sofia Macedo, responsável pela Unidade de Acolhimento Familiar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, participar numa sessão de informação, onde se explicam as várias dimensões do sistema de promoção e proteção de menores em risco, com as suas implicações legais, deveres e direitos dos candidatos. Geralmente essas sessões contam com depoimentos de famílias de acolhimento, que relatam a sua experiência.

Após a inscrição, as famílias têm de frequentar um curso de 20 horas, em cinco sessões online. "É muito bom, com uma série de famílias que também se candidatam e acho que dá assim um reality chek muito importante", recorda Rita. "Toda a gente vem com muito boas intenções, mas depois começam a falar em alguns problemas que são mais frequentes, na relação com as famílias de origem, na gestão da separação no final..." "O curso é essencial", sublinha Sofia Macedo. "Ser pai biológico não atesta a capacidade, nem para ser acolhedor familiar, nem para ser pai adotivo." 

Se no final desse curso as famílias tiverem a certeza de que querem acolher crianças passam para a fase seguinte, onde são avaliadas. "É um estudo muito denso, com muitos questionários, entrevista a cada uma de nós individualmente, depois com as duas, com as nossas filhas, uma manhã só para as questões de segurança da casa. Temos de ter uma família de apoio, que no nosso caso é o meu pai, e também foram a casa dele. E também temos de ter colegas do trabalho, de referência, que respondem a perguntas", conta Margarida. "Faz todo o sentido. Eles têm de conhecer as pessoas", sublinha Rita. "Tentam perceber como é que nós somos, a nossa dinâmica familiar."

"Ser pai biológico não atesta a capacidade nem para ser acolhedor familiar nem para ser pai adotivo."

Os questionários também são bastante exaustivos. Pergunta-se a idade da criança que se quer acolher, o género, que tipo de problemas de saúde é que a família está disposta a aceitar. "Queremos aceitar uma criança que vem de um contexto de violência? Uma criança que não fala a mesma língua que eu? Estou ou não disposta a aceitar uma criança que não respeita a privacidade?" Como tão bem explica Rita: "Nós estamos nisto porque queremos ajudar alguém, mas por outro lado também sabemos que há coisas para as quais nós não íamos estar habilitadas e não íamos saber lidar, iria mexer muito com a nossa dinâmica familiar, seria muito difícil. Temos de ter essa consciência."

Finalmente, se forem aceites, as famílias aguardam que lhes seja proposta uma criança que corresponda ao seu perfil. Até ao dia em que recebem o tal telefonema da assistente social. 

"O meu maior receio era, como todos diziam, que nos fôssemos apegar muito à criança e depois ficássemos destruídas quando ela se fosse embora", diz Margarida. A gestão da família tornou-se um bocadinho mais complexa, sobretudo quando recebem crianças mais velhas, que trazem já uma bagagem de comportamentos, mas até agora tem corrido bem: "É parte da nossa família enquanto está cá, mas não é como as nossas filhas. Enquanto está cá é uma de nós, é como se tivéssemos um sobrinho na nossa casa, vamos tratá-lo como os nossos, para o bom e para o mau, temos de ralhar quando é preciso ralhar, vamos ser tão exigentes contigo como somos com elas, mas também vais ter as coisas boas que elas têm, vais ter os carinhos e a atenção." 

"Outra preocupação era termos menos tempo para as nossas filhas e estarmos a trazer problemas para a nossa casa. Nós temos uma dinâmica muito leve e não queríamos complicar a vida delas." "Ainda temos algum medo", admite Rita.

Mas, depois, existe o outro prato da balança. "Acreditamos que isto fica no ADN das nossas filhas, elas vão crescer com isto", diz Margarida. "Elas estão a ser educadas para serem adultas bem-sucedidas, exigentes nas suas carreiras e nas suas relações, é isso que nós queremos. Mas queremos que também tenham a outra parte, de amor incondicional, de ajuda ao próximo, de tolerância, de perceberem que os nossos sapatos não são os mesmos dos das outras pessoas. Esta foi a nossa principal motivação - a forma como estamos a educar as nossas filhas. E depois esta é a nossa intervenção na sociedade, devolvermos à sociedade um bocadinho a sorte que nós temos."

"Temos a sorte de sermos as pessoas que queremos ser", acrescenta Rita. "Temos a noção de que vivemos num país excelente, podemos estar casadas, podemos ter as nossas filhas, não temos dificuldades. E, portanto, podemos contribuir um bocadinho para que as coisas sejam boas para outros. E na nossa ótica esta era a melhor forma." E outra vez Margarida: "Estamos a dar alguma coisa que é muito boa em nós, que é a nossa dinâmica familiar, a paz que temos cá em casa. É algo que exige pouco esforço, na verdade, e sentimos que podemos ajudar outra pessoa. Tentar dar-lhe ferramentas que pode usar para o resto da vida. Achamos que estas intervenções na infância são as melhores, que se multiplicam em termos de efeito."

"Sentimos que podemos ajudar outra pessoa. Tentar dar-lhe ferramentas que pode usar para o resto da vida"

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Proteção de menores em risco: quando a família falha às crianças

Cabe às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), em articulação com as escolas, os centros de saúde e, no fundo, toda a comunidade, detetar as situações em que é necessário intervir para "prevenir ou pôr termo a situações suscetíveis de afetar a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento integral" das crianças e jovens. As medidas a aplicar podem passar só por um trabalho com a família naquilo a que se chama "o meio natural de vida" ou, em casos mais graves, na retirada da criança da família por um determinado período.

"Temos equipas que trabalham com as famílias de origem, fazem essa avaliação e definem o projeto de vida daquela criança, se é possível mantê-la na família ou se temos que definir outra alternativa", explica Cláudia Paulo, responsável pela Unidade de Acolhimento Residencial da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. "Temos de perceber que recursos temos de ativar naquela família para que a criança possa voltar de uma forma segura para o seu contexto familiar. Temos que avaliar se aquela família tem potencialidade para fazer as transformações necessária em tempo útil da criança. Porque, infelizmente, sabemos que poderá haver famílias que demoram muito tempo a fazer esta mudança, que poderá demorar anos e que a criança não pode esperar que estas mudanças ocorram." O primeiro trabalho é sempre com as famílias, no entanto, a estatística diz-nos que em mais de 60% dos casos esta intervenção não evita a aplicação posterior de uma medida de acolhimento.

Como o objetivo principal é devolver à criança a sua família, as primeiras respostas são temporárias. Parte-se para a procura de uma família de acolhimento e, numa segunda linha, para o acolhimento residencial. "Numa casa de acolhimento, a nossa missão primária, desde o primeiro dia, é pensar no dia em que eles saem. Por melhor qualidade que tenha uma casa de acolhimento, não é o mesmo que estar numa família."

"Numa casa de acolhimento, a nossa missão primária, desde o primeiro dia, é pensar no dia em que eles saem. Por melhor qualidade que tenha uma casa de acolhimento, não é o mesmo que estar numa família." 

"A lei é muito clara: diz que, quando há necessidade de separação da família, as crianças até aos 6 anos deveriam estar numa família de acolhimento e não em casa de acolhimento. Não o conseguimos executar porque infelizmente não temos famílias de acolhimento suficientes para aquilo que são as necessidades a nível nacional. Mas a Segurança Social assumiu isto como prioridade, esta desinstitucionalização", explica Cláudia Paulo. Em novembro de 2022 havia apenas 227 crianças integradas em 168 famílias de acolhimento. Mas o objetivo é garantir que 90% das crianças, até aos 12 anos com medida de colocação, estão integradas em famílias de acolhimento. Nos últimos anos tem sido feito um esforço grande de sensibilização para angariar famílias de acolhimento, no entanto, este é um processo que, como já se explicou, demora algum tempo a dar frutos. 

De acordo com o Relatório de Caracterização Anual da Situação do Acolhimento das Crianças e Jovens (CASA 2022), entre 2006 e 2022 verificou-se uma diminuição de 48% de crianças e jovens em acolhimento: eram 12.245 e passaram a ser 6.347. "Em 2030 pretende-se que o número de crianças institucionalizadas a nível nacional diminua para 1.200, portanto, é uma meta ambiciosa, mas em que todos nós acreditamos muito e para a qual estamos a trabalhar", diz Cláudia Paulo. 

Outra questão relevante é que o perfil das crianças que precisam de acolhimento tem-se alterado: "Há 15 ou 20 anos tínhamos muitos miúdos com questões de insuficiência económica e de alguma negligência. Agora, trazem-nos dimensões muito mais complexas, por exemplo, casos de saúde mental, seja das famílias, seja dos miúdos. Questões da violência doméstica ou de negligência muito, muito grave", explica Cláudia Paulo. "São de facto os casos mais graves e onde até já foi feita alguma intervenção em meio natural de vida e que não surtiu o sucesso, ou não surtiu o efeito que se esperava na proteção destes miúdos. Chegam-nos cada vez menos miúdos, mas os miúdos que nos chegam são miúdos cada vez mais exigentes e famílias cada vez mais exigentes na sua intervenção."

Em 2022, a "negligência" foi a principal causa (69%) da intervenção, o que inclui a falta de supervisão e acompanhamento familiar, a negligência com a educação e a saúde. Seguem-se "outras situações de perigo" (12%) onde se destaca a ausência temporária de suporte familiar, o comportamento desviante e o abandono. Das 2.228 crianças e jovens que entraram em acolhimento nesse ano, 608 foram intervenções de emergência, onde havia perigo iminente.

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"Funcionamos mais ou menos como se fôssemos uma família numerosa. Muito numerosa"

É um duplex numa zona residencial de Lisboa, com grandes janelas e muita luz. Nas paredes dos quartos, individuais ou partilhados, há desenhos feitos por crianças, fotografias das famílias, posters de músicos. Cada criança pode decorar o seu quarto, escolher as cores para as colchas e para as almofadas, ter mais brinquedos ou mais livros. Pode não haver luxos, mas a casa quer-se acolhedora. "Chegámos a ter 40 crianças numa casa, e ainda existem algumas casas no país com 20 ou 30 crianças. Aí, por mais que se queira, a individualidade é posta em casa. Percebemos que é necessário um olhar mais atento às crianças e às famílias", explica Cláudia Paulo. Nos últimos anos, as indicações têm sido para as casas serem mais pequenas e familiares, com, no máximo, 15 crianças. Na Casa do Relvado vivem 12 crianças. "O nosso objetivo na Santa Casa é reduzir para oito", diz a responsável. "Esta casa foi pensada para crianças dos 6 aos 12 anos, a verdade é que temos tido crianças mais pequenas, porque estão integradas em fratrias [conjunto de irmãos] e não as queríamos separar. Neste momento temos um bebé que está com os irmãos."

As camas estão feitas (e se já tiverem idade para isso são eles que as fazem). Os miúdos foram para as escolas, mas por aqui o trabalho continua. É preciso limpar e arrumar, lavar a roupa (muita roupa!), organizar a semana. Na parede do escritório estão pendurados os horários de todas as crianças, as aulas, as atividades, as terapias, as visitas da família, e depois os horários da equipa - são 25 pessoas ao todo, duas delas no turno da noite. É um puzzle complexo. "Funcionamos mais ou menos como se fôssemos uma família numerosa. Muito numerosa", ri-se Susana Marques, diretora da Casa do Relvado. Uma família com 12 filhos, onde apenas um, pré-adolescente, já tem alguma autonomia e vai sozinho para a escola. "Tentamos preservar ao máximo as suas rotinas, por isso eles continuam a frequentar as escolas de origem, os mesmos clubes. Isso coloca alguns desafios logísticos, mas achamos que é importante", explica.

Cláudia Paulo acrescenta: "Só é aplicada uma medida de acolhimento quando a criança está em perigo iminente, porque representa sempre um trauma para aquela criança, de repente vê-se numa casa onde não conhece ninguém, nem adultos nem outras crianças, e os mais pequenos ainda têm dificuldades em perceber o que está a acontecer. Por isso, quando existem relações de referência nas escolas ou na comunidade tentamos mantê-las para não ser mais uma rutura para a criança".

Um tem futebol, outro natação, outro râguebi, há consultas, terapias. Ainda que seja uma dor de cabeça gerir 12 grupos de WhatsApp de encarregados de educação, "tentamos que eles tenham a sua vida social, como todas as outras crianças da sua idade. Podem ir dormir a casa de amigos e convidar colegas para lanchar, vão a festas de aniversário e têm os seus compromissos", conta Cláudia Paulo.

Os finais do dia, como em qualquer casa com criança, são caóticos. Os miúdos vão chegando ao seu ritmo, têm de tomar banho, fazer os trabalhos de casas, podem brincar um pouco ou apenas relaxar até à hora do jantar. "Temos uma articulação muito próxima com as escolas, sabemos quando são os testes, se eles estão integrados, quando há problemas na escola", explica Cláudia Paulo. "Cada miúdo tem necessidades diferentes. "É preciso criar espaços - dentro e fora da casa - para conversar com eles. Os adolescentes, por exemplo, têm de ter tempo com os seus amigos." Alguns podem precisar de ajuda para estudar, todos ajudam nas tarefas, à medida da sua idade, como pôr a mesa ou levar o lixo. Alguns precisam de ter algum tempo sozinhos, outros precisam de conversar. A equipa tem de estar disponível, ler os sinais, perceber como intervir, saber quem precisa mais de atenção. "Efetivamente precisamos de muitas mãos e muitos colos", diz Susana Marques. "Isto é como uma casa com vários filhos, se um faz uma birra, os outros também são afetados." Os mais pequenos deitam-se mais cedo, os mais crescidos veem televisão. Até que finalmente a casa fica em silêncio.

"Ao fim de semana vamos com eles à rua ver o que se passa na comunidade, vamos ao mercado, às compras, ao parque, temos miúdos muito ávidos de experiências e conhecimento. Tentamos que as saídas sejam o mais individualizadas possível ou em grupos pequenos, para eles não sentirem tanto esse lado institucional. Evita-se ao máximo que isso aconteça. Mesmo nas férias, só há uma colónia em que vão todos", explica Susana Marques. O objetivo é que a vida ali seja o mais parecida possível com a vida em família, embora sabendo à partida que nunca será igual.

Há crianças que na escola partilham que estão em acolhimento, outros não querem partilhar. "Nós normalmente só dizemos ao professor titular e deixamos que os miúdos nos identifiquem como quiserem, somos tias, madrinhas, mães...", conta Cláudia Paulo. "Uma vez fui a uma reunião de encarregados de educação de um jovem angolano e os professores diziam-me: o seu filho é um amor, tão-bem educado. E eu agradecia."

Como em qualquer casa com crianças, numa casa de acolhimento os finais de dia são caóticos, com trabalhos de casa e brincadeiras

Logo no início, faz-se um diagnóstico da situação e define-se um plano. Há casos em que a família pode vir visitar a criança, nalguns casos a mãe ou o pai podem mesmo acompanhá-las à escola e participarem no seu quotidiano. Noutros casos não é possível. "Quando chegam, os miúdos sentem-se geralmente muito perdidos. É preciso estabelecer uma relação de confiança e isso leva tempo. Dentro da capacidade que eles têm de entender, tentamos trabalhar com a verdade, explicar o que aconteceu e porque é que estão aqui, o que é suposto acontecer. É muito importante haver esta transparência com os miúdos e com as famílias", diz Cláudia Paulo. "Tentamos envolvê-los ao longo de todas as fases do processo, para saberem o que está a acontecer. Para eles a previsibilidade é muito importante, - para se sentirem mais seguros e a controlar a situação. Quem é que os vai acordar, quem é que os vai levar à escola, quem é a pessoa que fala com o professor? Tudo isto é importante para eles se irem securizando."

"Há miúdos com histórias muito complicadas, que foram muito negligenciados, com problemas de comportamento, e que precisam de um trabalho muito próximo", explica a responsável. "São miúdos que nos desafiam na nossa tolerância, na nossa autoridade. Testam muito a relação: vou testar-te ao teu limite para ver se tu te vais embora. Eles precisam ganhar essa segurança."

A rotina da casa é alterada com as chegadas e as partidas, que se procura sempre que sejam o mais preparadas possível. Para quem sai e para quem fica, como explica Cláudia Paulo: "É sempre um momento de instabilidade, os outros miúdos projetam-se: eu estou cá há mais tempo, porque é que não sou eu? Temos de saber lidar com estas crises."

"Fazemos uma festinha de despedida. E temos um álbum que é construído durante o tempo que passam aqui, as festas, os passeios, o primeiro dia de aulas, essas coisas", conta Susana Marques. "Claro que no fundo todos querem sair daqui, querem ter uma vida familiar estável, mas sinto que gostam do tempo que cá estiveram e levam um bocadinho de nós com eles." Além disso, a intervenção não termina aqui. De acordo com a legislação, a equipa da casa de acolhimento deve continuar a acompanhar a criança e a família - seja a família de origem ou uma nova família adotiva: "Tentamos dar continuidade. Este é um trabalho que não se esgota aqui."

Idas ao parque e às compras fazem parte das rotinas das crianças numa casa de acolhimento - as saídas são individuais ou em pequenos grupos

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Adoção: o fim da linha

Sofia Macedo está, como ela diz, no fim da linha: "Quando as crianças chegam a mim é porque tudo o resto falhou." A lei preconiza que o primeiro trabalho deve ser feito com a família de origem, e este é um trabalho que leva tempo. "As pessoas não são mágicas e não se transformam de um dia para o outro", explica a responsável pela Unidade de Adoção e Apadrinhamento Civil da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. "Na verdade, o que a lei nos diz é que as medidas de promoção e proteção deverão ter esta duração genérica de seis meses, podem ser prorrogadas por mais seis meses e com carácter excecional podem ser ainda prorrogadas por mais seis meses. Portanto há, em média, um período de 18 meses em que as equipas podem, legalmente, estar a trabalhar com a família e é esse é um tempo essencial."

"A criança e o jovem são sempre a nossa principal preocupação, é ela que está em situação de perigo, é a vida dela que temos que rapidamente resolver e, portanto, temos que conjugar os tempos da família e os tempos da criança e todas as outras variáveis", explica Cláudia Paulo. "Quando é que definimos que a família não vai ser capaz?" É esse o trabalho dos técnicos. "É um trabalho muito sério, com protocolos de avaliação destas famílias, com evidências daquilo que foi feito para se ajudar esta família nesse processo de mudança para que possamos tomar a melhor decisão e a decisão mais justa para aquela família e para aquele miúdo, com esta certeza de que os miúdos não podem ficar eternamente aqui à espera de que essa mudança aconteça." Só quando as equipas técnicas concluem que é impossível devolver aquela criança à família é que se pode partir para uma solução definitiva, como é a adoção.

Em 2022, 93,7% das crianças e jovens que se encontravam integradas no sistema de acolhimento, tinham o seu projeto de promoção e proteção definido: prevalecia a (re)integração na família nuclear (40%), seguida da autonomização (34%) e em terceiro lugar a adoção (9%). Verificava-se que das 525 crianças e jovens para as quais foi definido o projeto adoção, apenas 169 tinham a sua situação de adotabilidade decretada pelo tribunal.

"A adoção é a última medida que a lei preconiza porque pressupõe um corte com a família biológica, que é algo que não se deseja no sistema de promoção e proteção de menores. Mas quando tal acontece aquilo que nós temos de procurar é a melhor resposta para aquela criança que já vivenciou todo uma manancial de situações que não são saudáveis nem promotoras de seu desenvolvimento integral." O grande trabalho das equipas de adoção é, por um lado, estudar e avaliar candidatos a pais adotivos e, por outro, conhecer bem as crianças que têm um projeto de vida adoção para poder fazer o melhor matching. "E o desígnio é este: encontrar num adulto as capacidades para responder às necessidades desta criança", explica Sofia Macedo. 

"A adoção é a última medida que a lei preconiza porque pressupõe um corte com a família biológica, que é algo que não se deseja no sistema de promoção e proteção de menores."

"Quando falam em adoção falam-nos muitas vezes de candidatos em listas de espera e, indo assim direta ao assunto, isso não interessa nada", diz. A lista que lhe interessa é a de crianças que precisam de uma família. "O que nos interessa é cumprir a Convenção sobre os Direitos da Criança e cumprir a legislação portuguesa, cumprir todos os diplomas que nos dizem que devemos ter em conta o superior interesse da criança. E é isso que fazemos. Perguntam-nos porque demora tanto tempo. Demora tanto porque as pessoas que estão na lista não querem as crianças que estão à espera ou não têm o perfil adequado para aquelas crianças." As técnicas percebem que os candidatos que chegam aqui também estão, muitos deles, no fim da linha. Muitas vezes, já passaram por processos de fertilização e experienciaram muitas frustrações. "Têm uma urgência emocional muito grande, é verdade, mas têm que aceitar que não é esse o nosso trabalho", afirma Sofia Macedo. 

Há que ter em conta, como sublinha Cláudia Paulo, que "cada vez há menos crianças em situação de adoptabilidade porque há cada vez menos crianças acolhidas e isso significa que o sistema está a funcionar melhor no que diz respeito àquilo que é o trabalho prévio na proteção destes miúdos". "Se nós não temos crianças para lhes propor, é porque estamos a fazer bem o nosso trabalho", reafirma Sofia Macedo. "Não ter crianças para um candidato à adoção não é negativo, é positivo do ponto de vista do que é o nosso trabalho."

Depois, existe um número significativo de crianças mais velhas ou com especificidades "para as quais não existem candidatos capazes ou que tenham esse desejo, o que é legítimo, mas então temos que trabalhar na procura de outras soluções".

"Cada vez há menos crianças em situação de adoptabilidade porque há cada vez menos crianças acolhidas e isso significa que o sistema está a funcionar melhor"

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A caminho da vida adulta: "Há um momento em que eles querem muito fazer-se à vida"

Apesar de todos os esforços, os dados dizem-nos que, em média, as crianças e jovens permaneceram no sistema de acolhimento cerca de 3,3 anos, havendo cerca de 11% de acolhimentos com duração entre os quatro e cinco anos e um grupo de cerca de 20% que já estão acolhidos há seis ou mais anos. 

Isto significa também que, não havendo hipótese de regressar à família de origem, à medida que o tempo passa e estas crianças vão crescendo, sabemo-lo, têm cada vez menos hipóteses de terem como projeto de vida a adoção. De acordo com o relatório CASA 2022, 65% do número total de crianças e jovens em acolhimento encontra-se na fase da adolescência e início da idade adulta (dos 12 aos 20 anos), com prevalência para os jovens do sexo masculino.

Para estes, o sistema prevê outras soluções, que podem passar pela (re)integração na família nuclear alargada, confiança à guarda de 3ª pessoa ou apadrinhamento civil. Existe ainda a hipótese de promover o acolhimento permanente (seja residencial ou familiar), por exemplo no caso de jovens com exigência de cuidados de saúde, e, no caso dos mais crescidos, iniciar processo de autonomização. Quanto aos jovens com 15 e mais anos, em 2022 cerca de 79,1% encontravam-se em casas de acolhimento, 5% em apartamentos de autonomização e 3,3% em comunidades terapêuticas. 

Os jovens de 15 e 16 anos que já passaram muito tempo no sistema de acolhimento têm uma grande necessidade de autonomia, querem ter a sua independência"

António Santinha conhece bem estes casos, uma vez que é o responsável pela Unidade de Apoio à Autonomia da Santa Casa da Misericórdia que se ocupa dos jovens adultos que, na sua maioria, vêm das casas de acolhimento residencial e têm medidas de promoção para a autonomia. Isto pode acontecer a partir dos 15 anos, mas é mais comum acontecer a partir dos 17 ou 18 anos e pode prolongar-se até aos 21 anos (ou até aos 25 se os jovens estiverem a estudar ou necessitarem de apoio no início da vida ativa). "São jovens que já passaram muito tempo no sistema de acolhimento e têm uma grande necessidade de autonomia, querem ter a sua independência." Para eles, a resposta passa por ter apartamentos onde podem viver, com mais ou menos autonomia, dependendo da idade, e continuar o seu percurso escolar com supervisionamento ou acompanhamento, mas onde existe um grande respeito pela sua individualidade.

"Temos também um grande grupo de crianças e jovens migrantes, que já chegam ao território nacional desacompanhados ou que, por outro motivo, têm uma medida de proteção", diz. No ano de 2022 entraram em acolhimento 2.228 crianças e jovens, o que representa um aumento de 19% relativamente ao ano anterior e saíram do acolhimento 2.250, um aumento de 2% face a 2021. Segundo o relatório CASAS 2022 para a compreensão deste aumento de entradas no sistema importa considerar o aumento de 28% de acolhimentos de crianças e jovens estrangeiros separados, não acompanhados ou deslocados, que entraram em território nacional, nomeadamente ao abrigo de programa de recolocação voluntária ou de proteção humanitária, representando já 3% do total de crianças e jovens em acolhimento.

"Quando falamos deste fluxo migratório, são claramente mais rapazes", explica António Santinha. Existe uma enorme diversidade de origens, mas destacam-se os jovens vindos da Síria e, mais recentemente, da Ucrânia, devidos aos conflitos existentes nos seus países. "Um jovem afegão, ou sírio, ou marroquino, ou de outro país, e que já fez uma travessia do Mediterrâneo, e que já andou por vários países, e que inclusivamente já trabalhou em várias funções, nalguns casos começaram a trabalhar aos 12 anos, chega aqui e tem dificuldade em compreender quando lhe dizemos que ainda é uma criança e não pode trabalhar. Tem de estudar, mas muitos deles vêm de países onde a escola é uma coisa incipiente, eles não têm habilitações. E ainda temos a questão da língua", relata o responsável da Santa Casa da Misericórdia. "São jovens com percursos muito complicados, muitos estiveram em campos de refugiados, às vezes só muito mais tarde é que, quando ganham confiança, quando há cumplicidade, nos contam tudo o que passaram." Mas são também jovens muito autónomos.

"A ideia é que os jovens vivam sozinhos e a equipa desdobra-se e vai estando com eles. Há uma reunião que, normalmente, é semanal onde são discutidas as questões da casa e do grupo. A ideia é que eles façam a gestão do apartamento, têm de fazer a limpeza, têm um orçamento para as compras, como se estivessem numa casa alugada e tivessem de tomar decisões em conjunto. Há apartamentos onde decidem cozinhar juntos, ouros preferem funcionar individualmente, mas têm de se respeitar uns aos outros", explica António Santinha. 

Em paralelo existe um acompanhamento individual. Todos os jovens têm o seu plano individual, "que é de facto feito à medida de cada um". "As medidas são revistas semestralmente e cada um dos jovens tem um conjunto de objetivos que têm a ver com a sua carreira académica, com a sua integração na comunidade, até com a sua capacidade de se voltar a ligar à família." Os técnicos têm também uma relação com cada um deles, com encontros regulares. "Isso é muito importante. É uma relação que tem de ser de confiança, nós não somos pais deles, mas temos de lhes chamar a atenção quando é preciso, mas, sobretudo, temos de estar disponíveis, temos de os ouvir, de os ajudar quando precisam. Eles têm de saber que podem contar connosco. É um trabalho muito de terreno, que não tem horas, podemos encontrar-nos num café ou noutro sítio qualquer."

O que é comum a todos estes jovens é a enorme vontade de serem autónomos. "É uma resposta que tem crescido, em linha de conta com aquilo que são as diretrizes na promoção e proteção de jovens em risco, que é a desinstitucionalização. Estamos a promover processos de pré-autonomia para aqueles que percebemos que são muito responsáveis e têm as ferramentas para tal." Por outro lado, os jovens continuam a precisar de apoio até muito tarde. "Há um momento em que eles querem muito fazer-se à vida, mas enfrentam as dificuldades que os outros jovens todos enfrentam, que são os contratos precários de trabalho, os salários baixos, a dificuldade em arranjar uma casa..." 

"O nosso objetivo é que eles se tornem adultos autónomos, que organizem a sua vida. Essa é a meta. Quando eles deixam de precisar de nós é um caso de sucesso. É muito engraçado quando os encontramos, anos mais tarde, às vezes já com a sua família. Eles contam-nos o que é que andam a fazer e, se tudo correu bem, ficamos contentes por eles. Isso também é uma motivação.

"Quando eles deixam de precisar de nós é um caso de sucesso": o objetivo é que se tornem adultos autónomos
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