"É irónico falar-se em celeridade". Os futuros juízes e advogados temem pelo futuro mas também têm soluções
Faculdade de Direito (FOTO: Joana Moser)

"É irónico falar-se em celeridade". Os futuros juízes e advogados temem pelo futuro mas também têm soluções

O QUE SE OUVE NOS CORREDORES DAS UNIVERSIDADES || Faculdade de Direito Universidade de Coimbra

REPORTAGEM 
JOANA MOSER SOFIA MARVÃO 

VÍDEO 
SOFIA MARVÃO 

FOTOGRAFIA 
JOANA MOSER

Cinco estudantes de Direito fazem considerações sobre o funcionamento do país na área da Justiça. Esperam um dia vir a defender os direitos dos portugueses, mas queixam-se dos elevados custos da formação para advocacia.

Nos corredores da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC) ouvem-se conversas políticas acesas, há rumores de que as listas para a associação de estudantes são financiadas por certos partidos políticos. Nas vitrines há resquícios de atividades políticas universitárias. “Existe uma rivalidade, quase que indesligável, como se não tivéssemos todos o direito de ter opiniões”, afirma Inês, 20 anos. Mas foram poucos os jovens que quiseram expor as suas preocupações políticas, sobretudo no que toca à Justiça portuguesa. 

Praticamente de 15 em 15 minutos toca um sino que torna difícil conversar. Hoje serve para anunciar as horas, antigamente servia para acordar os alunos que viviam no campus universitário. “Faz parte de nós”, diz sorridente uma aluna que ia a passar pelo corredor, batendo com o punho direito no próprio coração. A FDUC celebrou os seus 187 anos em outubro de 2023. É uma das 125 melhores Faculdades de Direito do mundo, segundo o The World University Rankings by Subject.

“Há 350 alunos por ano, parece uma produção em massa”, brinca Inês. Ainda assim, os restantes alunos das outras faculdades descrevem os futuros juristas como “os meninos dos olhos do reitor”. Não é por acaso que a Faculdade de Direito está ao lado da reitoria. No entanto, os próprios não concordam, dadas as condições das salas de aula que sentam nem 70 pessoas mas “albergam muitas mais. “Muitas vezes acabamos sentados no chão ou nas cadeiras dos professores”, denuncia Inês.

O que se ouve nos corredores da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra?

03
"Temos de ser cada vez mais únicos"

É a formação e a entrada no mercado de trabalho que mais preocupa a estudante. “Apesar das qualificações que temos, há uma enorme dificuldade em arranjar trabalho”. Fátima, 21 anos, que se senta ao seu lado, partilha da mesma inquietação: “Cada vez exigem mais. Temos de ser cada vez mais únicos”. Por isso, pretende realizar um mestrado como forma de se destacar.

Nenhuma das três tem a certeza se quer mesmo ser advogada. O primeiro argumento, apontado por Érica, 20 anos, foca-se na dificuldade de entrada para a Ordem dos Advogados, que “é dispendiosa” - atualmente pagam-se 950 euros de emolumentos. Depois, defendem que as condições da profissão, sobretudo em termos de “salários a recibos verdes”, são más. “É uma profissão em que trabalhamos e estudamos a vida toda, devia haver melhores condições”, afirma Fátima, que gostava de ter um balanço entre a vida pessoal e profissional. Érica defende que o problema “não é tanto o montante a receber, mas quer vir a poder fazer compras de alimentação de um mês sem ter de ver se tem dinheiro suficiente”. 

Constança, 24 anos, também se preocupa com o ordenado de um advogado. “Há a ideia de que nesta área se recebe muito bem, mas não é bem assim”. A jovem preocupa-se com os primeiros anos de carreira, sobretudo com o ordenado que considera merecer ter, tendo em conta a duração dos seus estudos.

“Andamos tantos anos a estudar, a gastar dinheiro aos nossos pais, esperamos algum retorno”, acrescenta Fátima, explicando que depois da licenciatura é esperado que se faça um mestrado. E o processo não fica por aí, é preciso um estágio de dois anos que “nem sempre é remunerado” e ainda a inscrição na Ordem. 

04
"Descentralização" da Justiça e do país

Daqui surge a questão da centralização da Justiça. Fátima explica que se um jurista quiser seguir a profissão de juiz tem de passar pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ), vendo-se obrigado a ter de ir a Lisboa ou ao Porto. “Para muitos, isso complica o processo e a entrada no mercado de trabalho”. 

Constança é exemplo disso, gostava de ser procuradora do Ministério Público, uma carreira que considera ser “muito atrativa e confortável”. Não só por conta do ordenado, mas também pelo facto de “um juiz não poder ser despedido ou transferido, a não ser nos casos que estejam expressamente previstos na lei”. Contudo, apesar da atratividade, há muitos poucos juízes em Portugal. Isto porque, “para lá chegar é um processo longo”. A seu ver, deveria haver “uma forma de contornar a burocracia”. É por isso que Fátima defende “descentralização e desburocratização da Justiça”, sobretudo no acesso à carreira.

E não é a única. Gonçalo, 22 anos, defende “a descentralização do próprio país”. Na sua ótica, quando se aborda uma cidade, fala-se especificamente desta e das suas características. “Há uma falta de conhecimento quando abordamos Portugal na sua generalidade”. Para este futuro jurista, “um bom presidente de Câmara faz a diferença”. “E não tem que ser só com as políticas que são adotadas na Assembleia da República”, defende Gonçalo, frisando que “o aglomerado local pode ser mais benéfico, a curto e médio prazo”, para uma região em concreto. 

Assim, a descentralização do próprio país é, para o estudante, “um bom ponto de partida”. E deixa uma opinião pessoal: “não faz sentido falarmos de um ordenado mínimo nacional”. Defende que faria mais sentido falar de “um ordenado mínimo regional”. Isto porque, “a taxa de esforço de uma pessoa que recebe o ordenado mínimo em Lisboa é totalmente diferente do que uma pessoa que recebe o ordenado mínimo em Évora”. Neste sentido, olhando para as diferenças de cada região, “torna-se mais fácil aproveitá-las para as fazer crescer, quer seja a nível de indústria ou de comércio”. Gonçalo considera que esta é a melhor forma de melhorar a vida das pessoas rapidamente.

Questionado sobre o aumento da autonomia das autarquias na sua solução, reprova a solução de fiscalização. “Não temos um sistema pronto para responder às nossas necessidades, faltam muitos recursos humanos”. E dá um exemplo: a quantidade reduzida de juízes para o elevado número de problemas. Por isso, continua a defender que “há uma falta de autonomia das Câmaras na sua generalidade”. “Um Presidente de Câmara tem muito mais noção do que é que falta na sua zona do que um Primeiro-Ministro ou do que um Ministro da Habitação, por exemplo”. 

Gonçalo (à esquerda) e Constança (à direita)

06
“É irónico falar-se em celeridade da Justiça”

Inês, Érica e Fátima atentam na Justiça portuguesa e dizem que falar em “celeridade chega a ser irónico”. “Durante anos arrastam-se problemas”, diz a primeira, dando como exemplo a Operação Marquês, que envolve José Sócrates, ex-primeiro-ministro. “Estamos a falar de uma pessoa ligada à política, que representa o país, não é só relevante para nós, mas também para a ideia que as pessoas têm de Portugal”.

“O sistema judicial está muito lento, isso faz com que perca a sua utilidade”, desenvolve Inês, explicando que há casos em que deixa de fazer sentido punir alguém daqui a dois ou três anos . “Um processo administrativo urgente demora no mínimo um ano, é demasiado tempo”. 

Inês (à esquerda) e Fátima (à direita)

08
Aumento de penas não vai impedir a corrupção

O Chega propõe no seu programa eleitoral “limpar Portugal da corrupção”. Uma das formas que encontra para o fazer é aumentar as penas de prisão. Para Inês esta solução foca-se demasiado no “depois de acontecer”. “Não vai produzir nenhum efeito para prevenir” estes crimes.

Fátima diz que o problema é que “a corrupção é difícil de provar” e que certas coisas “nem chegam a tribunal”. Também para ela o aumento das penas não é uma solução. “As pessoas que o praticam não vão estar preocupadas com o aumento dos anos”. 

Érica ri-se e afirma que não conhece “um criminoso que leia o código penal e pense: agora com mais 20 anos vou desistir de praticar o crime”. A estudante defende a criação de sistemas de fiscalização de contas. No entanto, duvida do seu funcionamento na prática. “É mais importante prevenir do que criar estar a criar molduras penais mais gravosas”. 

Para além do controlo, Inês defende que a transparência também é importante. “É o que está a faltar: transparência de contas”. Érica intervém: “É que no fim do dinheiro desaparecer, podemos prendê-los, mas só vamos gastar mais dinheiro com eles. E dinheiro que eles tiraram”. Por isso, “mais vale prevenir que eles não tenham esse dinheiro”.

Inês explica que a transparência materializar-se-ia através de “um relatório da atividade”. Apesar de ponderar se esta solução será controladora, considera ser a forma mais eficaz de evitar lapsos e desvios de dinheiro. Dado que a lei é aplicada de forma geral, defende que deveria ser aplicado de forma geral, incluindo os órgãos do Estado e também a administração autónoma das autarquias. Érica discorda, a seu ver devia ser aplicada também aos pequenos empresários.

09
"Nem todos os portugueses têm direito a viver em Lisboa"

Enquanto jovem, uma das maiores preocupações de Constança é a crise da habitação. “Nunca vou conseguir pagar uma casa, mesmo pedindo um crédito à habitação”. Já a Gonçalo a crise da habitação não assusta, defende que é um problema mais centrado em certas zonas do país do que noutras.

Em Coimbra, por exemplo, diz que basta uma simples caminhada numa das ruas principais para encontrar vários imóveis deteriorados. “É preciso descomplicar” pois as pessoas precisam de recursos e, sobretudo, sentir que têm poder sobre as próprias vidas. Esses imóveis deviam ser aproveitados, defende. “É preciso mudar a maneira como se negoceia em Portugal, devia ser tudo mais rápido e mais transparente”. 

Sugere que a melhor forma é “descentralizar o país”. Isto porque, “o objetivo de alguém de Lisboa nunca vai ser igual ao de alguém de Leiria”. O futuro jurista não aprova a ideia defendida por grande parte dos partidos de esquerda nos debates: “o cidadão português deve ter o direito de viver em Lisboa”. “Eu não aceito esse argumento”, afirma Gonçalo, defendendo que Lisboa tem os seus limites. “Nem todos os portugueses têm direito a viver em Lisboa”, frisa. Diz que o Estado deve criar direito à vida em todo o país de uma forma geral. “Portugal não precisa de Lisboa, mas sim de todos os recursos e pessoas. É preciso formar mais, que já o fazemos muito bem, e criar a capacidade de reter”. 

Contudo, não é só na formação que Gonçalo considera que Portugal tem de melhorar a qualidade de vida das pessoas. É também na gestão das empresas e no comércio interno.

Por um lado, defende que é preciso dar mais autonomia às empresas. “É difícil pensar numa empresa pública que funcione melhor do que uma privada, em qualquer setor”. Reconhece que haja quem critique este argumento, considerando-o capitalista. No entanto, considera ser um argumento de “saber gerir recursos”, frisando que “uma entidade privada terá sempre uma maior capacidade de gerir recursos, porque se não a tiver, gera insolvência”. Já o Estado “pode sempre pedir mais impostos” e isso “vai se reter nos contribuintes”. No entanto, defende que deve haver um maior controlo a quem detém negócios. 

Por outro, admite haver uma “falta de concorrência leal do próprio mercado”. “É inacreditável que uma peça de fruta que venha do território nacional custe 10 vezes mais do que uma peça de fruta importada”. Gonçalo defende que isto não é bom para a economia interna do país. “Devíamos apostar naquilo que temos. Temos indústrias muito boas: o nosso vinho é procurado a nível mundial, a cortiça, o azeite”. 

Acredita que apostando na formação, na melhoria da gestão de empresas nacionais e no comércio interno, irá desenvolver não só a capital, mas também várias outras regiões do país. “Aproveitando os nossos recursos, fazendo crescer Portugal, não será necessário que todos vivam em Lisboa”. E é por isso que: “Nem todos os portugueses têm direito a viver em Lisboa”.

Biblioteca Joanina (FOTO: Joana Moser)
Scroll top