Conceição tinha uma casa. No dia a seguir, já não tinha. No outro, voltou a ter. O realojamento atribulado dos moradores do Segundo Torrão
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Conceição tinha uma casa. No dia a seguir, já não tinha. No outro, voltou a ter. O realojamento atribulado dos moradores do Segundo Torrão

Texto, vídeo e fotos
Teresa Abecasis

Conceição Soares está desconsolada.  Está em casa, no Bairro do Segundo Torrão, em Almada, na margem sul de Lisboa. Daqui a nada tem de sair para trabalhar e já devia estar a preparar o jantar, para o ter pronto quando regressar a casa mais tarde, mas não se consegue concentrar. Tira dois carapaus que estão de molho no lava-louça, tinha-os posto ali a pensar que ia fazer uma caldeirada, mas ficou sem apetite. Raspa umas escamas e volta a largá-los na água. Tem lágrimas nos olhos que não quer deixar sair. 

Pouco passa do meio-dia de sexta-feira, dia 30 de setembro, e Conceição acabou de receber uma visita inesperada. Um grupo de técnicos da Câmara Municipal de Almada acabou de lhe entregar uma carta a comunicar que a sua casa iria ser demolida no dia 2 de outubro, mais precisamente dali a 48 horas. 

Conceição não sabe o que há de fazer. Já faltou ao emprego da manhã, para o qual tem um despertador que toca todos os dias às 3h40 para iniciar o longo percurso de transportes até ao centro de Lisboa, e não se pode dar ao luxo de ficar em casa também à tarde. Que é que há de fazer? Continuar a preparar o almoço ou começar a tarefa impossível de tentar empacotar uma casa em que vive há 20 anos em dois dias? 

Em causa está o processo de realojamento urgente de 51 famílias que a câmara identificou como estando a viver em casas que sobrecarregam uma vala de drenagem em risco de colapso. A comunicação aos moradores da necessidade de saírem das suas casas começou a ser feita em junho, mas a Conceição, cabo-verdiana de 58 anos que trabalha como empregada de limpeza, tinham-lhe assegurado que a sua habitação não estava em risco. Ainda assim, o rebuliço vivido no bairro por estes dias fê-la ficar em casa naquela manhã. 

Agora, olha para os carapaus e não sabe o que fazer com eles. Perdeu a paciência e o apetite para os cozinhar. Vai fritá-los.

Enquanto os vizinhos retiram as últimas coisas de casa, Conceição tenta preparar o jantar

A visita dos técnicos à casa de Conceição foi testemunhada por Pedro Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal, que tem andado pelo Segundo Torrão a acompanhar os processos de realojamento. Estava perto da casa de Conceição quando viu os técnicos chegarem com a carta. “Pediram-lhe para assinar, não dando oportunidade para a ler primeiro”, conta. 

A morar em frente de Conceição, Catarina, que prefere não revelar o último nome nem mostrar a cara, retira de casa os últimos móveis e pertences que vai distribuir por casas de familiares e amigos. Catarina e o filho de quatro anos não têm direito a realojamento atribuído pela autarquia. Copeira, com 38 anos, Catarina diz morar naquela casa, que pertence a uma cunhada que vive fora, desde Dezembro, mas não consta do levantamento feito pela câmara em abril. 

Numa resposta escrita à CNN Portugal, a autarquia explica que tiveram direito a habitação as famílias identificadas neste levantamento que não tenham outra casa na Área Metropolitana nem estejam registadas como estando a viver no estrangeiro. 

Pedro Neto critica o “muro de burocracias” levantado pela autarquia para responder a uma “situação humanitária delicada”. “As pessoas não sabem para onde vão nem que apoios têm. Só veem portas a fecharem.”

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Vidas em risco

Os problemas do Segundo Torrão são quase tão antigos como este bairro ilegal que começou a nascer no final dos anos 70. Constituído inicialmente por construções que serviam para abrigar os materiais dos pescadores da zona, rapidamente cresceu para o emaranhado de casas que hoje ali encontramos junto à margem sul do Tejo. 

As habitações são precárias, constituídas sobretudo por paredes de tijolos e cimento com poucas ou nenhumas janelas, telhados de zinco, uma porta de metal. Com o passar dos anos, cada família vai melhorando a sua casa como pode, acrescentando mais uma divisão, investindo em melhores materiais, conquistando espaço. 

Uma estrada de terra batida dá a volta ao bairro e outra atravessa-o mesmo junto à zona da vala identificada como estando em risco de ruir. Por entre as casas, há vários caminhos que vão dar a estas ruas. Nunca são a direito e fica-se com a impressão de que têm apenas a largura suficiente para servir de circulação entre as habitações. Se um dia foram mais largos, o seu espaço foi sendo ocupado por novos anexos a estas casas sempre em transformação. 

Mas estes remendos nunca chegaram para afastar a precariedade. Com falhas de eletricidade recorrentes no inverno, problemas de saneamento e de limpeza, habitações onde se passa frio e apanha chuva no inverno, desde os anos 90 que o bairro do Segundo Torrão está destinado a desaparecer. Em 1993, o Programa Especial de Realojamento prometia acabar com as barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Não acabou. Vários programas depois, António Costa prometeu, em 2018, acabar com “todas as situações de carência habitacional” até Abril de 2024, altura em que se assinalam os 50 anos do 25 de Abril. Irá conseguir? 

O último levantamento feito pela Câmara Municipal de Almada identificou cerca de 300 agregados a morarem no Segundo Torrão. A câmara socialista presidida por Inês de Medeiros tem prevista a construção de 95 fogos para realojar parte destas famílias num programa financiado pelo Programa de Recuperação e Resiliência no valor de 10 milhões de euros. 

Estas casas, com projeto de arquitetura concluído mas cuja empreitada aguarda o lançamento de um concurso público, serão um dia a habitação definitiva para as 51 famílias que agora saem do bairro neste processo de realojamento urgente para uma casa temporária. 

Até esta quinta-feira, 23 famílias já tinham sido instaladas em alojamentos encontrados pela autarquia. Outras 15 estarão a preparar a mudança e para as restantes 13 a câmara continua a procurar uma casa. Até lá, as famílias estão alojadas em unidades hoteleiras, uma situação que não deverá demorar mais do que “uns dias”, garante a câmara em reposta às perguntas enviadas pela CNN Portugal. 

Esta sucessão de soluções temporárias é justificada com um relatório do Serviço Municipal de Proteção Civil de maio deste ano que alerta para a deterioração acelerada da vala de drenagem que atravessa o bairro e para o possível colapso da cobertura da mesma colocando em perigo as vidas de quem ali mora. O documento, que a autarquia se recusa a divulgar mas que invoca para acelerar o realojamento, sublinha a necessidade de retirada dos moradores que têm as suas casas sobre o túnel de descarga até ao início do ano hidrológico que começou a 1 de outubro. 

A demolição das casas começou precisamente no dia 1 e a autarquia conta terminar este processo já esta quinta ou sexta-feira. A vala será intervencionada “logo de seguida” de forma a garantir as condições de segurança e salubridade.

Entrada do túnel da vala de drenagem que atravessa o bairro do Segundo Torrão. Em 2019, os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Almada detetaram pela primeira problemas com as descargas de esgotos para o rio

 

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Enganos e falhas de comunicação

Sábado, 1 de outubro. 24 horas depois de ter recebido a notícia do despejo, Conceição Soares está mais descansada. Afinal, foi tudo “um engano”, diz-nos, nessa manhã. Como? Já lá vamos. 

Na tarde anterior, quando estava a trabalhar, ligaram-lhe da câmara para ir ver uma casa no Feijó e ela lá foi, ao fim da tarde. “Era um sítio agradável, mas quando entrei não gostei. Só tinha dois quartinhos, e a cozinha e a sala junto.” 

Tirou as medidas à casa e rapidamente percebeu que não iria conseguir levar para ali os seus poucos móveis. Para começar, o sofá, a mesa e o aparador que tem na sala não caberiam naquela sala com cozinha. Conceição não se julga especial, mas faz as contas a uma vida humilde e ao que ela permitiu juntar. Conclui, embora timidamente, que algo não está certo. “Vou abandonar as minhas coisas para as quais eu trabalhei esse tempo todo? Eu estou aqui desde 1999. Estou aqui no bairro e trabalho todos os dias. Não vou dizer que sou honesta, mas também não vou dizer que sou desonesta. Vou para o meu trabalho, volto para casa, cumprimento os meus vizinhos.” 

Conceição tem quatro filhos, só um é que vive com ela. Os outros vivem fora e por isso não contam para o agregado familiar na altura de atribuição de habitação. Mostra-nos o rés-do-chão da sua casa no Segundo Torrão, onde praticamente não entra luz natural a não ser pela porta da rua que dá para a cozinha e onde o isolamento térmico parece uma ilusão. Do outro lado da cozinha há duas aberturas, uma para a casa de banho e outra para a sala, onde está o sofá, a mesa e o aparador. 

Uma cortina separa a sala de um quarto com um colchão que partilha a parede com o cumprimento da cozinha. Ao lado, há outro quarto semelhante, também separado da sala por uma cortina. Umas escadas em caracol estreitas apontam para mais dois quartos num andar de cima. Um deles é o de Conceição, onde chove. Mesmo assim, é com orgulho que mostra a sua “casinha do jeito que é” e descreve o “conforto” que ali sente. “Eu sou o ponto de referência da família porque eu sou a mais velha que está cá. Eles vêm todos ter comigo. Aqui, organizam-se e depois voltam a partir.” 

Conceição está tranquila quando nos mostra a casa. É que naquela manhã disseram-lhe que afinal tinha sido um “engano”. A sua casa está do outro lado da estreita rua do quarteirão que vai ser demolido, mas o número da porta está erradamente assinalado no mapa das intervenções. Conceição vai poder dormir descansada mais umas noites – desde que não chova. 

“Eu não recuso uma casa que tem condições para mim e para a minha família. Tudo bem, eles é que conhecem o perigo. Eu não recuso. Mas que me deem com condições e não à pressa que eu me oriento e pego nas minhas coisas. Mas isso assim está a parecer uma agonia.” 

Uma rua estreita separa a casa de Conceição das outras que vão ser demolidas

Neste sábado de manhã, já os vizinhos da frente de Conceição desocuparam as suas casas porque as demolições vão começar. Mas uma família sem casa atribuída recusa-se a sair. Marta Ferreira, angolana, vive com os três filhos numa habitação situada por cima da vala na zona E, mais próxima do rio. Da janela de sua casa, ela e um grupo de moradoras gritam para chamar a atenção da comunicação social que veio testemunhar o início dos trabalhos. Há dois carros da polícia ali presentes e uma comitiva da autarquia encabeçada pela vereadora da Proteção Civil, Francisca Parreira. 

Os filhos de Marta têm seis, oito e vinte anos. O mais velho sofre de problemas de coração, conta. A mãe trabalha intermitentemente na hotelaria. Recebe o salário mínimo. Marta diz que lhe pediram para ir à junta de freguesia e à Segurança Social resolver a sua situação, mas garante que ainda não tem respostas. Por isso, recusa-se a sair. “Vão partir a casa com os meus filhos dentro.”

Há uma semana que Marta Ferreira não vai trabalhar com medo de ficar sem casa

A casa de Leonor Cunha fica na zona C, por isso esta antiga feirante tinha até segunda-feira para a desocupar. Ainda sem habituação atribuída - “arranjaram uma casa que não presta, cheia de humidade” - a solução temporária encontrada será um hotel, mas Leonor não sabe qual é nem para quanto tempo deve fazer as malas. Ainda assim, neste momento em que a encontramos, no sábado de manhã, o que a preocupa é um congelador cheio de carne que terá de deitar fora. A câmara garante que os seus bens ficam guardados enquanto não encontra casa, mas eles ficam num armazém sem eletricidade e sem acesso. 

Leonor, com 52 anos, vive com o marido, duas filhas gémeas e uma cadela, a quem está garantida também estadia num canil até à atribuição de uma casa ao agregado familiar. Ao lado, vive a sogra que também será realojada. No mesmo bairro, mas fora da zona de perigo, vive o sogro que depende da nora diariamente para as refeições. Leonor questiona-se sobre como vai conseguir acompanhá-lo se a sua nova habitação ficar longe do bairro. 

Leonor vive no Segundo Torrão há 21 anos

Todos estes testemunhos parecem demonstrar alguma desorientação por parte dos moradores em relação ao processo. A vereadora da Proteção Civil da Câmara Municipal de Almada, Francisca Parreira, garante que todos os casos estão a ser acompanhados de perto por “equipas multidisciplinares” que esclarecem “todas as dúvidas que as famílias possam ter”. 

Por escrito, a autarquia reconhece que “haverá sempre soluções e questões que precisam de ser melhoradas”. Sublinha ainda que este é um processo “complexo” que implica “encontrar solução habitacional para pessoas que, muitas delas, não têm rendimentos declarados ou têm escassos conhecimentos de português.” 

Pedro Neto, da Amnistia Internacional Portugal, conta que o que têm visto no terreno é “uma grande instabilidade e tensão nas pessoas que não sabem para onde vão” e que, pela falta de informação, “têm medo”. “Está a faltar aqui uma comunicação clara e que as pessoas entendam. Muitas vezes é utilizada uma linguagem técnica, uma linguagem que estas pessoas que necessitam de apoio não compreendem.” 

O diretor da associação de defesa dos direitos humanos lamenta ainda alguns episódios “caricatos” no realojamento, como o caso de uma senhora com uma filha que é doente oncológica e que foram postas num quarto de uma residência de reinserção social e de tratamento de toxicodependentes com regras muito restritas. Às 22h têm de entrar e entregar o telemóvel e de manhã cedo têm de se levantar. Ficaram lá uma noite e saíram.

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"Estes bairros têm de acabar”

À porta de casa de Leonor, está o sogro sentado numa cadeira a apanhar sol. Umas casas mais acima, uns vizinhos fazem uma intervenção num telhado. Também estão num dos quarteirões que vai ser demolido, mas não querem falar. Uma vizinha percorre as ruas do bairro antes de se mudar para a nova casa, em jeito de despedida. Um homem segura o cão ao colo, recusando-se a separar dele – quem ainda não tem casa atribuída tem de deixar os animais de estimação no canil até ser encontrada uma habitação. 

É numa daquelas ruas estreitas que separam as casas que encontramos António Pedro, um rapaz de 24 anos, com os olhos lacrimejantes. Está a falar com a Conceição, que já deixámos há um bocado. A casa de António já está desocupada e ele já tem uma nova morada. No entanto, e apesar de garantir que vai continuar a vir diariamente para o Segundo Torrão, a mudança deixa-o triste. “Eles querem mesmo acabar com o bairro e é o que custa mais às pessoas”, garante. 

António queixa-se de que o seu bairro só é conhecido pelas piores razões. “O bairro, pronto, não há condições, falta luz no inverno, saneamento, a água, essas coisas todas.” Mas nem tudo é mau. “Nós somos uma comunidade. Uma pessoa aqui não está preocupada se o filho está na rua porque tem uma comunidade e sabemos que se acontecer alguma coisa, eu conheço o filho de um, o outro conhece o filho do outro.” 

Com 24 anos, António Pedro cresceu no Segundo Torrão e sempre ouviu que o bairro tinha que acabar

A casa para onde António vai com os pais não fica longe. O que o deixa desgostoso é saber que há moradores que estão a ser alojados a 40 quilómetros dali. São os laços que se perdem. Ali, todos se conhecem e ajudam uns aos outros. “É claro que nós sabemos e temos noção de que em pleno 2022 estes bairros – o gueto, como nós chamamos – têm de acabar. Aqui há pretos, há brancos, há ciganos, há de tudo, mas nós somos pessoas, não somos bicho do mato.” 

A casa para onde António vai tem melhores condições só que a mudança “foi difícil”. O jovem conta que lhe tinham dado um prazo para sair de casa, mas que apareceram mais cedo para levar a mobília. “Andam aqui muitas pessoas perdidas da câmara, da Proteção Civil, uma diz uma coisa, outra diz outra”, resume.  

A sua família vai pagar uma parte da renda na nova morada e espera, daqui a uns anos, ser realojada nas casas que ainda vão ser construídas para os moradores do Segundo Torrão. “As pessoas preferiam ficar aqui assim do que irmos para fora com as condições que nos estão a dar. Isto por um lado é precário, mas por outro lado é um paraíso.” 

Já passaram quatro dias desde que encontrámos Marta Ferreira à janela de casa, de onde se recusava sair, com os filhos. Um telefonema rápido permite saber como está. Marta foi alojada temporariamente num hotel na Costa da Caparica e a casa onde morou nos últimos três anos foi demolida. Recebeu um apoio para as despesas de alimentação, apesar de lembrar que os filhos estão inquietos e que a família “não está habituada a comer num restaurante”. Mas o tom de voz é diferente. O que mudou desde sábado de manhã? 

Marta está confiante. Diz que está a ser acompanhada. Sente que agora estão a ouvi-la. Há otimismo na voz. O hotel está pago até ao dia 8 de outubro. Depois, espera ir para a sua nova casa.

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