Como um vazio legal permite que o dinheiro da corrupção russa continue a entrar em Portugal através dos “vistos gold”
Nos primeiros dias da guerra na Ucrânia, a Comissão Europeia recomendou a não atribuição de vistos de residência e cidadania a russos e bielorrussos. Mas esta recomendação não tem obrigação de lei e o SEF continua a emitir "vistos gold" a cidadãos russos em Portugal. Alguns com ligações muito próximas ao Kremlin
Kaplan Panesh é, desde 2021, deputado do Parlamento russo e pertence à ala ultranacionalista de extrema-direita, do Partido Liberal Democrata da Rússia. Faz parte da lista de sancionados pela União Europeia desde o início da guerra e está proibido de circular no espaço Schengen devido a uma medida de interdição emitida pela França.
É também um contribuinte português desde 2020 (com o número 304 388 254), tal como a então mulher, Fatima Panesh, que nesse mesmo ano assinou um contrato de promessa de compra e venda de um T1 que pertence à cadeia de hotéis Hyatt em Belém, junto à Cordoaria Nacional, em Lisboa. O negócio de 680 mil euros só ainda não se concretizou porque o processo se arrastou e a licença de habitação do imóvel apenas foi emitida em abril deste ano.
Confirmámos que o visto de Fatima já foi aprovado pelo SEF, porque foi requerido antes da guerra. Com a compra da casa concluída, precisa apenas de fazer os dados biométricos para poder movimentar-se livremente, trazer os filhos e fazer circular dinheiro russo na Europa.
O casal divorciou-se três meses antes de Kaplan iniciar funções como deputado e essa decisão estará relacionada com este cargo. É que, em 2013, o presidente russo proibiu os titulares de cargos públicos e os seus familiares diretos de terem contas em bancos estrangeiros como parte do Plano Nacional Anti-Corrupção. Três anos depois, esta proibição foi alargada a qualquer ativo financeiro. Estas medidas visavam desencorajar a elite russa de transferir capitais para o estrangeiro, mas já várias investigações mostraram que continuam a fazê-lo.
Um trabalho do jornal Politico, publicado em fevereiro, mostrava como até a ex-mulher de Putin e o seu atual marido têm vindo a acumular, há mais de uma década, casas luxuosas em Moscovo, Marbella, Davos e Biarritz. Um prédio histórico no centro de Moscovo terá sido doado a uma fundação de Lyudmila Ocheretnaya depois de o governo o ter remodelado e acrescentado dois andares. O prédio gera agora milhões de dólares em rendas para a antiga companheira de Vladimir Putin.
Mais recentemente, a fundação do opositor russo Alexei Navalny revelou que a filha e o genro de Boris Obnosov, diretor de uma empresa de fabrico de mísseis da Rússia, vivem uma vida de luxo na República Checa que os seus salários não conseguem justificar.
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"Ter um plano B"
Todos estes investimentos no estrangeiro estão longe de significar qualquer oposição ao regime russo. Pelo contrário, o mais provável é a riqueza ter sido construída à custa do regime russo. Mas as propriedades no estrangeiro são uma espécie de "plano B", para o caso de, por alguma razão, "se cair em desgraça com Putin", por exemplo, explica Ksenia Ashrafrullina, ativista anti-Kremlin a viver em Portugal há mais de uma década.
Ksenia ficou conhecida em 2021, quando o embaixador russo em Portugal escreveu, no Facebook, que não tinha com que se preocupar e que poderia "voltar tranquilamente a casa". Em causa estava o envio dos seus dados pessoais por parte da Câmara Municipal de Lisboa para a embaixada russa pelo seu envolvimento numa manifestação contra o regime de Vladimir Putin.
Mesmo quem trabalha com o regime russo, não tem qualquer confiança no mesmo, continua Ksenia. E o mais provável é toda essa riqueza ter origem na corrupção.
"Se conseguires roubar, tens que tirar toda esta riqueza e investir e conservar num país onde sabes que o Direito funciona e ninguém vai tocar nos teus bens." O regime russo dá-lhes os instrumentos para poderem extrair o dinheiro. Até agora, a Europa permitia-lhes investir e conservar essa riqueza para garantir que, aconteça o que acontecer, "a tua família possa continuar com uma vida de luxo e tu, assim que puderes, sais [da Rússia]."
Logo no início da guerra, a Comissão Europeia recomendou a não atribuição de vistos de residência e cidadania para russos e bielorrussos. Mas esta recomendação não é vinculativa.
A 26 de março de 2022, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, assegurou, em declarações à CNN Portugal, que o "Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) já suspendeu a apreciação de qualquer dossiê de candidatura para autorização de residência para investimento, vulgo «vistos gold»".
Mas estas declarações nunca passaram para o papel e não existe nenhum diploma que impeça a atribuição de "vistos gold" a cidadãos russos em Portugal.
Sem "critério legal"
Sem qualquer fundamento legal para recusar os vistos, os cidadãos russos passaram aos tribunais para garantirem o seu direito. A investigação da CNN teve acesso a uma sentença recente em que uma cidadã russa conseguiu renovar o seu visto gold por via administrativa porque a juíza não encontrou base legal para a não-renovação.
“(...) o SEF não está impedido pela recomendação C (2002) 2028 da Comissão, de 28/03/2022, de emitir o título solicitado pela requerente, uma vez que a mesma não é fonte de obrigações jurídicas”, justifica a juiza.
Noutra sentença, uma advogada classificava o procedimento do SEF como "manifestamente xenófobo". O Tribunal Administrativo de Lisboa deu razão aos cidadãos russos que protestaram com esta argumentação e obrigou o SEF a atribuir estes vistos.
Contactado pela CNN, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras confirma que foram atribuídos nove vistos a cidadãos russos já em 2023. Um desses casos foi conseguido pela via judicial após o investimento de 290 mil euros. Os restantes foram conseguidos através de reagrupamento familiar.
O Ministério da Administração Interna, responsável pelo SEF, não explica porque não passou a recomendação da União Europeia para lei: "Portugal adotou a resolução do Parlamento Europeu e as recomendações da Comissão Europeia quanto a esta matéria. Sobre casos que correm os seus termos nos tribunais, o Estado Português irá pronunciar-se nessas mesmas instâncias judiciais."
Irina Akhmetova, advogada russa a trabalhar em Portugal com "vistos gold", admite que nem todos os russos quiseram investir na via judicial. "Começaram a perder a paciência, houve clientes que desistiram do investimento e foram para outros países."
Ainda assim, esta advogada diz ter cerca de 20 processos judiciais em curso contra o SEF. "Já ganhámos dois no caso de renovações, outros ainda estão sem resposta, mas acreditamos que temos toda a razão porque não há nenhum fundamento legal para a suspensão de processos de cidadãos de uma certa nacionalidade, só com base na nacionalidade."
"Apesar de eu condenar o que se passa na Ucrânia com as decisões da Rússia, eu não posso, como advogada, basear-me neste critério de cidadãos bons que não apoiam a guerra e cidadãos maus que apoiam a guerra. Isto não é um critério legal."
Cascais, o “el Dorado”
Um dos lugares preferidos para os investimentos russos em Portugal é Cascais. O segundo município do país que mais refugiados ucranianos recebeu desde o início da guerra é também um íman para os cidadãos da Federação Russa.
Centenas de russos querem comprar casa nesta zona, como é possível confirmar numa lista de clientes de uma agência imobiliária especializada em "vistos gold" a que tivemos acesso. Uma das promotoras mais ativas em Cascais é Nadia Yakimenko, empreendedora estabelecida em Portugal há duas décadas. Nascida na Ucrânia, tem passaporte russo e nacionalidade portuguesa. Conhece o mercado como ninguém.
“Eu represento uma empresa inglesa que se chama Astons. É uma empresa grande a nível mundial, com um escritório central em Londres. A empresa faz documentos pelo mundo. Ela tem clientes que querem fazer um passaporte americano, português, chipre. O cliente chega ao escritório e diz, por exemplo, «eu quero fazer este programa, que é o golden visa em Portugal, porque gosto do país, o que é que é preciso?» Depois, nós temos um departamento que faz o due diligence. Eu nunca tive tantos clientes da Rússia como agora”, refere Nadia.
Nadia, trabalha com o advogado Francisco Souto Cardoso. O genro do Presidente da Câmara de Cascais, Carlos Carreiras, é o procurador de muitos dos clientes, incluindo Fatima Panesh. O seu nome aparece em vários documentos, mas garante que cumpre vários procedimentos de verificação:
“Dou cumprimento aos deveres de identificação e análise do Cliente e respectiva circunstância pessoal, profissional e financeira que sobre mim impendem, e que se consubstanciam na análise dos respectivos documentos de identificação civil, pessoal, profissional, fiscal, bancária e análise do perfil online, após o que o Cliente é chamado ao preenchimento de formulário “Know Your Client”. (...) Socorro-me ainda do trabalho efetuado pelos Departamentos de Compliance da Banca. (...) E, finalmente, a recolha de uma declaração pessoal do Cliente que ateste as razões pelas quais quer abandonar a Federação da Rússia. Logrei ainda reforçar este procedimento através da monitorização da lista de sanções a indivíduos que é periodicamente publicada pela própria Ucrânia.”
Mas, na carteira de clientes de Francisco Souto Cardoso, estão mais pessoas que chamam a atenção, como Sergei Kravchuk, membro do partido de Putin e Diretor-geral da empresa Uralkran. Já com casa em Portugal, Kravchuk usa os vazios legais para garantir a circulação de dinheiro, como é possível ler num email enviado ao Millennium BCP em 2022.
Depois de lhe ter sido perguntado quais os rendimentos da sua mulher Olga, declarada como “doméstica”, Sergei explica que possui uma fortuna avaliada em “10 milhões de euros” e que “gostaria de transferir dinheiro gradualmente para Portugal” através das suas contas “em vários bancos, incluindo Reiffeisen Bank e Chelinvestbank, tudo bancos não sancionados”.
Ao contrário do que seria de esperar, alguns bancos que operam na Rússia não estão na lista de sanções, o que permite a realização destas transações para países da União Europeia. Além disso, é muito usual serem as mulheres de figuras com poder na Rússia a assumirem as compras dos bens no estrangeiro.
25 milhões de euros arrestados
Foi precisamente pelos bancos que Portugal conseguiu aplicar sanções. À nossa reportagem, o Ministério dos Negócios Estrangeiros revela que já congelou mais de 25 milhões de euros. No total, 44 pessoas e entidades, sancionadas e não sancionadas, já foram alvo de medidas restritivas. No entanto, não há indicação de bens confiscados, apesar de muitos cidadãos russos continuarem a investir no setor imobiliário.
“Preocupa-nos por aquilo que vamos percebendo e até a própria desplicência, se me é permitido dizer, do próprio governo relativamente a esta matéria, porque a extinção dos «vistos gold» é apresentada no âmbito do pacote de habitação, mas não houve uma palavra dos responsáveis políticos relativamente aos riscos especiais deste programa ao nível de branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo. Faz parte da responsabilidade das empresas e das entidades que são obrigadas, mas também do próprio Estado, de pautar por esse cumprimento e apoiar essa prevenção”, analisa Karina Carvalho, diretora executiva da Transparência Internacional.
Há muito que os "vistos gold" deixaram de ser apenas um programa de atração de investimento e passaram a ser um instrumento político. Agora, com a guerra na Ucrânia, passaram a ser também uma questão diplomática. Se o Governo português não alterar a lei, os "vistos gold" vão continuar a ser atribuídos legalmente a cidadãos russos, apesar das promessas feitas em público.