Como desta vez é preciso falar com cientistas (e não com peritos militares) para sabermos se Zaporizhzhia pode resultar ou não na entrada da NATO na guerra
Perante a possibilidade de um ataque iminente que possa destruir a central nuclear de Zaporizhzhia - a maior da Ucrânia e da Europa -, a comunidade internacional está em alerta porque teme as consequências de uma eventual libertação de radiação. Tanto o Reino Unido como os Estados Unidos já vieram avisar que uma eventual fuga de radiação provocada por um ataque pode resultar na ativação do artigo 5.º da NATO, que prevê a entrada dos Estados-membros da Aliança Atlântica num conflito armado - o que levaria a guerra na Ucrânia para um conflito de escala maior, uma escala de III Guerra Mundial.
“Isto não é uma discussão. Qualquer fuga vai matar pessoas nos países da NATO. Isso ativa automaticamente o artigo 5.º”, afirmou a 20 de agosto de 2022 o então congressista norte-americano Adam Kinzinger. Mas a história pode não ser bem assim.
O presidente do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN), Bruno Soares Gonçalves, explica à CNN Portugal que o principal problema em casos de acidentes nucleares é a libertação de material radioativo. Só que, desta vez, há uma diferença, nomeadamente em relação ao pior acidente nuclear da história, que ocorreu em Chernobyl, então ainda União Soviética, em 1986. Essa diferença é "o estado atual dos reactores em Zaporizhzhia e o que aconteceu em Fukushima". Neste caso, cinco dos reatores estão parados há vários meses e o sexto está em paragem a quente, o que também significa que está apenas a produzir calor residual.
O mesmo é dizer que "as necessidades de arrefecimento dos núcleos são muito menores". Na prática, quando aconteceram os acidentes nucleares de Chernobyl ou de Fukushima, os dois piores da história, por ordem, as centrais operavam a todo o gás. Isso está bem longe de acontecer em Zaporizhzhia. E ainda há uma outra diferença: "Alguns dos materiais radioativos nocivos para o ser humano já decaíram para níveis muito baixos". Bruno Soares Gonçalves refere-se em particular ao iodo-131 e ao estrôncio-90.
Estes são dois dos três radionuclídeos que mais preocupam o abastecimento militar após um acidente numa central nuclear. "O iodo-131 tem uma semivida física curta, de cerca de oito dias, mas, quando entra no corpo, 10% a 30% acumula-se na tiróide. Se isto acontecer, a tiróide continuará a ser exposta localmente a partículas β e raios γ durante algum tempo. O estrôncio-90 tem uma semivida física longa e, quando entra no corpo, acumula-se nos ossos devido às suas propriedades químicas semelhantes às do cálcio", explica Bruno Soares Gonçalves, reforçando que ambos os materiais já existem naquela central em "níveis negligenciáveis", uma vez que os reatores foram desligados há meses.
Para o especialista em energia nuclear fica apenas a preocupação com dois tipos de césio radioativo, os subtipos 134 e 137, que "são as principais causas de contaminação devido a acidentes em centrais nucleares". No caso do segundo, a semivida física prolonga-se por 30 anos, podendo mesmo contaminar o ambiente durante muito tempo. Devido às suas semelhanças químicas com o potássio, pode distribuir-se pelo corpo todo, tal como aquele elemento. No local foram ainda encontrados outros elementos radioativos, como o plutónio-239, mas Bruno Soares Gonçalves garante que os níveis encontrados são "quase iguais aos resultados das medições efetuadas em todo o Japão antes do acidente" em Fukushima, pelo que não são preocupantes.
Doutorado em Fusão Nuclear, Luís Guimarãis concorda que as principais ameaças estão fora de questão, atirando também para a ausência de níveis preocupantes de iodo-131. "Em Chernobyl, o reator estava a funcionar a toda a potência, criando, entre outros, o isótopo iodo-131, que é o imediatamente perigoso. Como os processos nucleares em Zaporizhzhia estão parados há vários meses, já praticamente não existe iodo-131 no reator", sublinha, deixando depois um conselho: que as pessoas não cedam ao "pânico" e que não comprem pastilhas de iodo nas farmácias, até porque há doentes que "realmente precisam desse medicamento".
Para o especialista, que se escuda nos dados da Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA, na sigla original), o "pior caso seria uma libertação ligeira de alguns aerossóis radioativos". Algo que "teria muito pouco alcance" e que podia ficar ao nível do acidente nuclear de Three Mile Island, que teve zero fatalidades e acabou apenas com um dos trabalhadores a sofrer uma pequena dose de radiação.
"O perigo imediato seria para os combatentes, para os técnicos da central apanhados no fogo cruzado e para os níveis de ansiedade das pessoas que compreensivelmente receiam um evento catastrófico", conclui.
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Como pode ser feita a sabotagem e quais os efeitos
As centrais nucleares são infraestruturas altamente resistentes. Bruno Soares Gonçalves aponta que "estes edifícios são desenhados para sobreviver ao embate de um avião comercial completamente cheio de combustível". O presidente do IPFN admite que é muito difícil prever os cenários de um ataque terrorista a uma central nuclear, mas aponta como o mais provável o danificar de sistemas que levem à perda de arrefecimento, o que resulta num derretimento do núcleo.
Esta perda de arrefecimento pode ocorrer por várias vias e uma deles até é a destruição da barragem de Kakhovka, que era um dos reservatórios que serviam a central nuclear de Zaporizhzhia. "O derretimento dos núcleos pode evaporar toda a água, facto após o qual as temperaturas atingidas - juntamente com o material das barras de combustível - podem decompor a água em oxigénio e hidrogénio", acrescenta o especialista, falando num cenário semelhante ao de Fukushima, com a acumulação de hidrogénio a resultar em explosões que danificam os edifícios de contenção dos reatores e os edifícios das piscinas de arrefecimento do combustível utilizado.
"No entanto, e no caso de Zaporizhzhia, um resultado similar a Fukushima é menos provável porque os edifícios de contenção têm recombinadores de hidrogénio que o transformam de volta em água, reduzindo a a acumulação de hidrogénio para minimizar o risco de explosão. Zaporizhzhia tem também a vantagem das piscinas de arrefecimento do combustível usado estarem dentro dos edifícios de contenção", aponta Bruno Soares Gonçalves, que também vê como um cenário plausível a situação de Three Mile Island, onde não houve "libertação de radiação para o exterior" da central.
Cenário diferente é um bombardeamento ou a colocação de explosivos no edifício para que sejam abertas brechas na zona de contenção enquanto se danificam os sistemas de arrefecimento. Neste caso podia haver libertação de radiação para o exterior, admite o presidente do IPFN, que mesmo assim vê a ação dos escombros resultantes da explosão como uma espécie de "escudo de retenção" para minimizar essa libertação de radiação. Em todo o caso, este cenário parece ser menos plausível, nem que seja por estes edifícios serem reforçados com betão de 1,2 metros de espessura. É aqui que nem um avião cheio de combustível penetra.
Luís Guimarãis partilhou com a CNN Portugal um vídeo que exemplifica bem a dificuldade que é destruir estruturas numa central nuclear. Nas imagens abaixo é possível perceber como um contentor com resíduos radioativos consegue sair praticamente intacto após ser atingido por um míssil.
"A central tem edifícios de contenção incrivelmente resilientes. Tem também alguns contentores de combustível gasto no seu exterior capazes de sobreviver a mísseis", indica o especialista, remetendo para o vídeo.
E Luís Guimarãis volta a explicar que o baixo nível de atividade em Zaporizhzhia previne um acidente de grandes dimensões. É que "espalhar material radioativo, que é sólido e difícil de aerossolizar, por uma larga área necessita de imensa energia". "Meios como bombas aéreas ou qualquer outro explosivo seriam desperdiçados para o efeito de espalhar material radioativo", reitera.
O físico não tem dúvidas: independentemente da dimensão e da natureza de uma eventual sabotagem, a grande consequência seria futura e por muitos anos - é que a central nuclear de Zaporizhzhia era responsável pela produção de 20% de toda a energia consumida na Ucrânia, que é o maior país da Europa, se excluirmos a Rússia. "O maior problema seria uma destruição da capacidade de operar da central", reforça o físico, que fala na possível perda de uma "peça de infraestrutura fantástica que podia ajudar imenso à reconstrução do país" num cenário pós-guerra.
Uma visão partilhada por Bruno Soares Gonçalves, que aponta uma estimativa para o custo de construção de uma infraestrutura semelhante: 40 mil milhões de euros. Além disso, o presidente do IPFN vê ainda um outro motivo: a tentativa de a Rússia cavalgar numa narrativa em que os combustíveis fósseis continuam a ser mais seguros, nomeadamente numa altura em que, mesmo que devagar, se voltou a abrir o debate para a possibilidade de se utilizar energia nuclear para produção doméstica e empresarial.
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Radiação pode chegar a território da NATO?
A resposta simples é "sim". A radiação de um eventual acidente nuclear em Zaporizhzhia pode chegar a território da NATO, provavelmente a países como Polónia, Roménia ou Turquia. Só que nunca numa dimensão que possa vir a provocar quaisquer danos de saúde nos cidadãos daqueles países, pelo que os especialistas ouvidos pela CNN Portugal veem nas palavras do ex-congressista Adam Kinzinger um claro exagero.
Luís Guimarãis nota que nem mesmo no acidente nuclear de Chernobyl a radiação ultrapassou a fronteira oeste da Ucrânia. Não chegou sequer a Kiev, de resto, pelo menos em quantidades preocupantes. O também membro da associação ambientalista RePlanet explica que um caminho de uma nuvem radioativa até solo da NATO depende da prevalência dos ventos, admitindo que se possam vir a notar níveis de radiação a ocidente da Ucrânia.
Mas essas quantidades só seriam mensuráveis "porque os detetores que possuímos são extremamente sensíveis". Ainda assim, garante o especialista, mesmo que ocorra, será sempre em "quantidades pequenas, incapazes de causar danos nas populações". "Teriam um efeito nulo na saúde das populações e na biosfera. O efeito da radiação em seres vivos seria difícil de medir, ao contrário dos efeitos da barragem de Khakhova", reitera.
Bruno Soares Gonçalves também não acredita em algo que ultrapasse uma "dimensão local". Não só a central já está em produção francamente baixa como, comparando com Chernobyl, há duas coisas diferentes: em Zaporizhzhia existe um edifício de contenção e os moderadores não são feitos em grafite, que no caso de 1986 pegaram fogo e "potenciaram a libertação de material para a atmosfera".
O presidente do IPFN também admite que uma eventual deteção de radioatividade em território da Aliança Atlântica será sempre causada pela grande sensibilidade dos sensores e não por uma grande concentração de níveis. "Em qualquer dos casos, tendo em conta os ventos dominantes na área, o país mais afetado com uma eventual libertação radioactiva seria muito provavelmente a Rússia", reforça, dizendo que isso torna ainda mais claro que a própria Rússia sabe que um eventual ataque nunca terá dimensões preocupantes com uma nuvem radioativa.
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Radiofobia. O medo que mata mais que a radiação
O termo radiofobia é introduzido por Luís Guimarãis e explica bem o que aconteceu, por exemplo, em Fukushima. Os vários estudos realizados apontam que apenas uma pessoa pode ter morrido por radiação. Mas nem nesse caso há certezas, até porque se trata de uma pessoa que era fumadora e que desenvolveu cancro do pulmão.
Bruno Soares Gonçalves lembra que na central nuclear japonesa foi libertada apenas 10% da radiação libertada em Chernobyl. "Nenhuma das 575 vítimas associados ao acidente resultou de efeitos da radiação, mas sim do processo de evacuação", sublinha, referindo-se a casos que também ocorreram no desastre de Chernobyl e que vão desde doenças psicológicas - como depressão - ao abuso de substâncias e até mesmo suicídios. A eventual estigmatização de populações vindas dessas áreas, bem como uma amplificada e desmesurada perceção dos riscos de radiação, também causaram várias vítimas.
De resto, o presidente do IPFN aponta para o relatório do Comité Científico das Nações Unidas sobre os Efeitos da Radiação Atómica em Fukushima, no qual se pode ler que "não foram observadas mortes ou doenças agudas relacionadas à radiação entre os trabalhadores e o público em geral expostos à radiação do acidente” e que “não é discernível um aumento perceptível de incidência de efeitos na saúde relacionados com a radiação entre membros expostos do público ou seus descendentes”. Um estudo separado da Organização Mundial da Saúde chegou a conclusões similares. Não houve efeitos na saúde verificados fora do Japão.
Luís Guimarãis indica que estas experiências passadas "nos ensinaram que a radiofobia causa muito mais fatalidades que a própria radiação". "Para a distância a que se encontra a cidade, o abrigo dentro das habitações, o chamado 'shelter in place', seria suficiente", acrescenta, garantindo que mesmo a população de Energodar ficaria a salvo, desde que não saísse de casa.
Bruno Soares utiliza exatamente o mesmo termo, recordando que o raio de evacuação após o acidente em Fukushima foi de 30 quilómetros mas que os mais recentes relatórios da Comité Científico das Nações Unidas sobre os Efeitos da Radiação Atómica reconhecem que o "shelter in place" teria sido "menos lesivo para a população.
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Ucrânia já faz exercícios, mas será preciso?
No final da semana passada, as agências publicaram diversas fotografias de exercícios realizados pelos serviços de emergência ucranianos. Nelas podiam ver-se pessoas de várias cidades a participarem em simulacros, carros a serem desinfetados e pessoas com fatos antirradiação.
Para Luís Guimarãis, "faz sempre sentido estar preparado", mas este também é um caso em que a Ucrânia pode estar a aproveitar numa "guerra de informação" que ambos os lados acabam por utilizar. O físico destaca que estes exercícios são práticas "standard" para qualquer tipo de eventualidade radiológica, mesmo que ela seja muito pouco provável. De resto, a própria Proteção Civil portuguesa os realiza e Portugal nem tem reatores nucleares.
Bruno Soares Gonçalves vai mais longe. O presidente do IPFN afirma que os exercícios na cidade de Zaporizhzhia, que se situa a 100 quilómetros da central, "são exagerados e um elemento de propaganda para pressionar os países aliados e a IAEA a fazerem algo".
Ainda assim, e nem que seja por prudência, em Energodar a população deve estar preparada para alguma eventualidade.
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E militarmente, o ataque vai ou não acontecer?
As informações dos serviços secretos ucranianos apontam que as ordens dadas pelas forças russas foram para que todos os funcionários abandonassem a central nuclear até esta quarta-feira, 5 de julho. Kiev notou que, desde 30 de junho, vários funcionários têm deixado o local, incluindo três funcionários da Rosatom, empresa estatal de energia nuclear da Rússia, que estavam responsáveis pela monitorização da segurança no local.
Também funcionários ucranianos que estavam a trabalhar no local terão recebido indicações no mesmo sentido, tendo-lhes sido apontada a tal data de 5 de julho como o limite para a evacuação.
As patrulhas em redor da central nuclear e na cidade de Energodar, onde fica aquela infraestrutura, também estarão a diminuir de dia para dia, com as secretas ucranianas a acreditarem que a Rússia prepara também um plano para vir a culpar a Ucrânia de um incidente na central.
Para já, o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla original) não conseguiu encontrar sinais que confirmem as alegações ucranianas, mas a região de Zaporizhzhia e as suas vizinhas de Mykolaiv, Kherson e Dnipropetrovsk já elaboraram planos de emergência para reagir a uma eventual fuga.
Para o ISW, o mais provável é que não aconteça mesmo nada. Aquele think tank norte-americano explicou, na atualização feita a 30 de junho, que “é improvável que as forças russas causem um acidente intencional” na central nuclear. “A Rússia deve continuar a utilizar a ameaça de um incidente radiológico para tentar conter as ações da contraofensiva ucraniana e o apoio do Ocidente à Ucrânia”, refere ainda aquele instituto.
De resto, os especialistas norte-americanos notam que a Rússia não seria capaz de controlar as consequências de um eventual incidente radiológico, que até poderia obrigar as forças russas a deixarem, mesmo que temporariamente, grande parte dos terrenos conquistados no este da Ucrânia, incluindo no Donbass. O ISW aponta mesmo, tal como Bruno Soares Gonçalves, que a meteorologia dá conta de que, pelo menos até setembro, eventuais nuvens de radiação teriam muito mais impacto em solo controlado pelos russos, nomeadamente na península da Crimeia - que a Federação Russa considera como parte do seu território desde 2014.