"Até podia ser homossexual, mas não podia apaixonar-me". Tiveram de fugir da igreja para amarem livremente
Igreja evangélica

"Até podia ser homossexual, mas não podia apaixonar-me". Tiveram de fugir da igreja para amarem livremente

REPORTAGEM 
SOFIA MARVÃO 

REPÓRTER DE IMAGEM
TIAGO TAVARES

EDIÇÃO DE IMAGEM
SOFIA MARVÃO 

Miguel foi acompanhado por um psicólogo pastor quando se assumiu; Filipe escolheu ser expulso em detrimento da abstinência; Mário negou-se a si próprio e casou com uma mulher; Larissa foi alvo de rituais religiosos. Estas quatro histórias tiveram lugar na Igreja Evangélica e no espaço das Testemunhas de Jeová que, embora diferentes, têm um denominador comum: a homossexualidade é "pecado diante de Deus"

“Reagiu como se o filho dela tivesse morrido ou sofrido um acidente”, Miguel, também conhecido por “Saza”, tinha 16 anos quando, num domingo à noite, a mãe o recebeu em casa de mãos na cabeça e lavada em lágrimas. Mal ele sabia que o seu maior “segredo” acabara de ser descoberto pelos pais - é homossexual e escondia esta realidade desde que se lembra. Eles, evangélicos praticantes, não eram o único desafio que aquele adolescente teria de enfrentar, era também a sua própria religião e toda uma congregação que o viu crescer, para mais tarde o levar a fazer uma escolha: a terapia ou as represálias. Escolheu a primeira via.

Mas este não é um caso isolado. Apesar de o Parlamento ter aprovado há quatro meses a sua criminalização, ainda há quem promova a conversão da orientação sexual ou da identidade de género dentro de grandes grupos cristãos.

Esta realidade vive-se ainda hoje no país e há relatos dentro de várias e diferentes igrejas protestantes e restauracionistas de repressões e até tentativas de conversão de jovens e adultos homossexuais e transgénero. As quatro histórias que se seguem foram vividas dentro dos portões da Igreja Evangélica e das Testemunhas de Jeová.

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Consultas com um psicólogo pastor

Conhecemos Miguel Salazar, 24 anos, num quente e muito soalheiro dia de setembro, na praia da Senhora da Boa Nova, em Leça da Palmeira, curiosamente a escassos metros de uma modesta capela fundada em 1392 pelos franciscanos. Enquanto ajeita os caracóis como que a disfarçar uma ligeira timidez, não deixamos de reparar no fio à volta do seu pescoço com uma pequena cruz prateada. Assim como os seus pais – aos quais se refere como “Helena” e “Pedro” - nasceu nos bancos da igreja evangélica, onde só o modelo de família convencional lhe foi permitido conhecer. Os termos “gay” ou “homossexual” são quase tabus naquele meio, levando-o a reprimir a sua orientação até à adolescência de variadas maneiras. Admite, por exemplo, ter assistido a pornografia com mulheres, embora tivesse consciência de que muito dificilmente sentiria qualquer tipo de estímulo. Paralelamente, os pais chamavam-lhe à atenção sempre que o denunciavam “um gesto mais efeminado”, “um grito que não era tão másculo” ou uma brincadeira inocente, como vestir a indumentária que a mãe usava no coral da igreja. Ela é Maria Helena Costa, cristã evangélica, presidente da Associação Família Conservadora, autora de livros como “Identidade de género – Toda a verdade” e “Feminismo tóxico”, bem como de inúmeros artigos de opinião no jornal Observador e no semanário Sol.

"Chamavam-me gay e eu sabia que era verdade, mas ao mesmo tempo não podia ser"

Miguel tomou a decisão de se assumir aos 16 anos, quando frequentava a Assembleia de Deus em Vila do Conde - uma comunhão internacional de igrejas evangélicas pentecostais que, segundo a imprensa brasileira, ofereceu a “cura gay” a uma influencer de 36 anos em Rio Verde, no Brasil, que acabou por tirar a própria vida.

Karol Eller revelou que foi sujeita a práticas de conversão na Assembleia de Deus antes de morrer (Imagem: Instagram)

O jovem confiou o seu "segredo” a um professor da igreja, que o ameaçou contar aos seus pais caso ele não o fizesse. Não passou muito tempo até “Helena” e “Pedro” descobrirem a verdade e Miguel ser “forçado a sair do armário”. Recorda com irritação a postura da mãe, que, de mãos na cabeça, chorava de desconsolo “como se o filho dela tivesse morrido ou sofrido um acidente”. Pediu-lhe que fosse acompanhado por um psicólogo indicado pela congregação para “ajudar a resolver o problema” e, com “medo” das consequências, o jovem assentiu. Foi recebido pelo pastor Joel Oliveira durante meio ano, uma vez por mês, num ambiente que hoje Miguel descreve como “uma terapia de conversa” num consultório privado. “Falava muito da relação com os meus pais, sobretudo com o meu pai. Abordava a minha relação com Deus e comparava as duas coisas”, descreve.

À CNN Portugal, Joel Oliveira confirma ter conduzido sessões de psicologia com o intuito de “perceber como é que a pessoa se sentia e o que é que desejava fazer em relação a isso”, mas nega “qualquer tentativa” de conversão. "Nunca tentei forçar nenhum processo, nem impor as minhas crenças ou convicções pessoais sobre quem quer que fosse, respeitando o código deontológico da Ordem dos Psicólogos e o direito da pessoa humana à sua autodeterminação". Segundo o pastor, “os pais disseram que o Miguel estava com alguns problemas”. Mas não se alonga: “Não me sinto à vontade para falar, porque aquilo que disseram e aquilo que o Miguel disse está num contexto de confidencialidade”.

De acordo com a plataforma oficial da Ordem dos Psicólogos Joel Oliveira possuía efetivamente uma cédula profissional, entretanto suspensa a pedido do próprio, sendo que o regulamento disciplinar obriga-o a respeitar o código deontológico mesmo após a desvinculação (Art. 5.º). Num parecer emitido em maio de 2023, a Ordem diz ainda condenar “qualquer tipo de práticas de conversão, estigma, preconceito ou violência com base na orientação sexual ou identidade de género, reconhecendo os impactos negativos que podem provocar nas pessoas afetadas e na sociedade”.

“Deus está contra ti”. Miguel lembra-se das palavras zangadas do pai à entrada do consultório, quando anunciou que não ia prosseguir com as sessões, mas um desafio ainda maior aguardava-o em casa: a mãe, Helena, que o recebeu de cara trancada, de Bíblia na mão. Entre “chapadas” e “puxões de cabelo”, Miguel ouvia a seguinte passagem de lágrimas no rosto: “E, semelhante, também os homens, deixando o uso natural da mulher, inflamaram-se em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro” (Romanos 1:27). A violência continuava por parte do pai, que o atingiu com um “forte estalo na cabeça” pedindo-lhe que repetisse. “Ele tinha os olhos vermelhos de raiva, acabei por dizer o que eles queriam”, partilha o rapaz. No mesmo instante, Helena fechou a Bíblia e “continuaram a conversar sobre outro assunto, como se nada tivesse acontecido”.

"Desde que temos noção da nossa existência que gostamos de homens"

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"Como cristãos, isso diante de Deus é pecado"

“O meu filho nunca na vida sofreu qualquer tipo de violência por ser homossexual”, garante Maria Helena Costa à CNN Portugal. “Se alguma vez apanhou uma sapatada foi por ser desobediente e teimoso”. A escritora esclarece que a sugestão de ser acompanhado por um psicólogo se deveu ao facto de Miguel ter sofrido bullying no primeiro ciclo e responsabiliza as “pessoas que o circundam dos movimentos LGBT” por o terem “usado” e “convencido a fazer o que fez”. “É evidente que, como cristãos, isso diante de Deus é pecado. Como o criámos na fé cristã dissemos-lhe ‘filho, tens noção de que isso é pecado contra Deus’”, admite.

Hélder Bértolo, presidente da Opus Diversidades, explica que “quando falamos em igrejas evangélicas, que estão muito ligadas a movimentos de extrema-direita, tanto nos Estados Unidos como no Brasil e em Portugal, há uma grande normalização da intolerância”. Segundo o ativista, isso deve-se a uma interpretação “muito fechada” da Bíblia. É por isso que lhe custa “quando as pessoas utilizam a palavra de Deus para justificar tirarem direitos às pessoas em vez de as aceitarem”. Para alguns acredita que não passa de “fanatismo”, mas para outros entende que há um benefício financeiro: “Claro que as igrejas ganham com isso. Se nós dissermos que independentemente de a pessoa pecar Deus perdoa tudo, provavelmente a pessoa não fica na igreja a pagar o dízimo”. Por outro lado, Hélder sublinha que "maior parte dos praticantes que perpetram estes comportamentos não tem maldade”, mas “aceita aquilo como verdade inquestionável e acha que amar é ser assim”. “É cumprir a palavra de Deus e se tiverem de pôr o filho e a filha fora de casa põem”.

Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Rio de Janeiro (Imagem: Leo Correa/AP)

 

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"80 ou 70% das igrejas evangélicas"

Sede da Assembleia de Deus de Vila do Conde, em Vila Chã (Imagem: Google Street View)

Miguel não foi expulso de casa, mas aos 20 anos terminou a licenciatura, começou a trabalhar e saiu pelo próprio pé levando consigo “um alívio tremendo e uma sensação de liberdade”. Só que o seu percurso na Assembleia de Deus não ficou por ali e, apesar do silêncio da congregação face ao que se tinha passado, ainda havia quem o relembrasse “que ia para o inferno por ser gay”. Já os pais faziam pressão para que os pastores “tomassem uma posição”: ou Miguel renunciava aos seus pecados e percebia que “ser-se homossexual e ser-se cristão não era compatível”, ou abdicava das suas funções. O pastor Hélio Rosa, que à data chegou à liderança da “igreja principal” da Assembleia de Deus de Vila do Conde, em Vila Chã, parecia-lhe inicialmente “tolerante”, mas acabaria mais tarde por levar Miguel a entregar a sua carta de dissociação. As palavras que ouviu soaram-lhe a déjà vu: “Perguntou se eu não queria fazer um caminho para superar esta questão, como aquele que eu já tinha feito”. Desta vez Miguel recusou e o pastor pediu-lhe, nesse mesmo instante, que entregasse as chaves da igreja. No momento em que o fez, o jovem juntou a carta, virou costas e nunca mais voltou.

Na sequência desta entrevista a CNN Portugal questionou o pastor Hélio Rosa, que assegura ter dito ao jovem que este era “livre de viver o que desejar e seguir o caminho que ele escolher”, mas Miguel “assumiu o seu desejo de viver livremente a sua homossexualidade”. “A igreja tem a sua conduta e regra de fé e ele, conhecendo isso, tomou a sua decisão", conclui. Contactámos ainda Izaias Rosa, presidente da filial frequentada por Miguel em Vila do Conde, que não se responsabiliza e garante que é “um pastor diferenciado”, mas admite que “80 ou 70% das igrejas evangélicas não vão aderir a um homossexual”. “Cada uma tem o seu presidente e há vários que não permitem, mesmo noutras igrejas evangélicas”, explica, acrescentando que na sede da Assembleia de Deus, em Vila Chã, “é muito possível que proíbam”.

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Celibato ou expulsão

Através de Miguel encontramos Filipe, meses depois de bater com a porta e virar as costas à Assembleia de Deus. Pede-nos que seja mantido em anonimato, pelo que utilizamos um nome fictício. Sabemos que tem 23 anos e deixou a sua igreja, no Porto, em meados de maio de 2023, depois de se assumir à família. Fê-lo porque sentia que a sua mente estava a mudar, mas não avançou sem falar com os seus responsáveis, cerca de um ano antes.

Ao contrário de “Saza”, garante que depois de revelar a verdade as consultas nunca estiveram em cima da mesa, mas também lhe foi apresentada uma escolha: abstinência ou abandonar a igreja. Também ele optou pela liberdade, e sofreu “as consequências de querer viver em pecado”: foi expulso. “Até podia ser homossexual, mas não podia apaixonar-me”, conta o jovem.

Os pais têm uma forte ligação com a comunidade evangélica, como é habitual neste meio. A mãe foi a primeira a saber, tendo partilhado rapidamente com os restantes familiares. Já o pai, “disse que não conseguia lidar, depois de perceber que metade da congregação também já sabia”. Pela primeira vez, após mais de 50 anos, ponderam mudar de igreja. “Está tudo um caos”, partilha visivelmente preocupado.

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Porta de entrada para a "cura divina"?

Confidencia-nos ainda uma conversa com o pastor presidente da sede do Porto, que terá garantido ser a primeira vez que se deparava com semelhante situação. Mostrou-se, em contrapartida, aberto a estratégias futuras (e controversas): “Basicamente disse que queria ir para a rua chamar pessoas LGBT para se juntarem à igreja. Mas assim que entrassem, teriam de acabar por mudar”. E como seria incutida essa mudança? “Da forma que já acontece”, esclarece. “Pressão de grupo, olhar de lado, bocas, ameaças com saída, etc.”.

A CNN Portugal contactou a Assembleia de Deus do Porto e o pastor em causa, mas ainda não obteve resposta. Depois desta breve troca de palavras, Filipe não voltou a retornar contacto, e o desfecho da sua história é desconhecido até ao momento.

De acordo com o site oficial da Convenção das Assembleias de Deus, no separador "Declaração de Fé", a igreja defende "a diferença clara e bíblica entre os sexos" e a "cura divina", que crê que "nem todas as doenças são procedência de espíritos malignos ou consequência de pecados específicos, embora uma coisa e outra possam também acontecer". "Cremos que podemos receber a Cura Divina, em nome de Jesus, como resultado da oração da fé e também através da operação dos dons espirituais, conforme ensina a Bíblia", lê-se.

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Mário casou com uma mulher antes de se assumir

Filial das Testemunhas de Jeová, em Alcabideche (Imagem: Google Street View)

“Fui totalmente reprimido a vida toda”. Mário Pereira, 42 anos, cresceu no seio daquela que antes considerava “a religião verdadeira”: as Testemunhas de Jeová. Divorciou-se da mulher com quem esteve casado 10 anos e deixou a congregação em 2018, depois de se assumir homossexual (ainda referido como “homossexualismo” naquele meio). “Foi preciso fazer muita terapia para estar aqui a falar de tudo”, admite. À nossa frente, livre das amarras da congregação e da doutrina que lhe foi imposta à nascença, lembra o jovem “exemplar, alegre e brincalhão” que sempre foi. “Portanto, sempre fui muito gay”, risos. “Só tive sucesso lá dentro porque era filho de quem era” - o pai era um dos principais anciãos da congregação. Além disso, Mário também gostava muito de pregar, “pregava muito às portas”, e até frequentou a universidade sem nunca ter dado “muita margem ao diabo”. Ou pelo menos, era o que lhe diziam na igreja. “Nas seitas” - termo que atualmente utiliza - “o conhecimento é visto como um grande risco, mas em quatro anos eu só faltei uma vez a uma reunião”, explica. Só que apesar de ter sido um bom aluno, nunca se permitiu “voar” por ser uma pessoa “muito emotiva” e facilmente manipulada: “Seita é sentimento, não é razão. Uma pessoa que não consegue pensar de uma forma normalmente científica e se deixa envolver por sentimentos é excelente numa seita”. Agora que olha para trás questiona-se: “Como é que era possível?”. “É uma relação abusiva, porque eles abusam dos membros”, responde de imediato.

Até ao 5.º ano de escolaridade era “uma criança efeminada”, a partir do 6.º passou “do menino mariquinhas para o rapaz que as meninas queriam todas namorar”. “Por um lado, era por causa do bullying, por outro eu sabia que as Testemunhas de Jeová não gostavam disso”, esclarece. “Imaginem, eu sendo gay, o esforço que implicou. Controlava a forma de falar, a forma de andar, a forma de esbracejar, tudo”. Chegou até a namorar com raparigas, mas todas da mesma igreja e sempre “na maior castidade”: “Dar as mãos e um beijinho de vez em quando”. “Só tive relações depois de casar, e aí é que começou a tortura”, desabafa.

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Chegou a pensar que tinha "ultrapassado"

“Como se pode agradar a Deus quando se tem desejos homossexuais?”, é uma de muitas questões lançadas no site oficial das Testemunhas de Jeová num separador de perguntas e respostas, onde a Bíblia é utilizada como principal referência para esclarecimento de dúvidas. Segundo esta congregação, as escrituras são claras: “Não seja controlado pelo seu corpo. Mate qualquer desejo pelo tipo errado de sexo”. “Para eliminar desejos errados, que levam a ações erradas, você precisa de controlar os seus pensamentos. Se encher a mente com pensamentos sadios, conseguirá rejeitar mais rapidamente os desejos errados”. Mas há mais: “Embora talvez tenha de se esforçar muito no princípio, isso poderá tornar-se mais fácil com o tempo. Deus prometeu ajudá-lo a ‘renovar a sua maneira de pensar’”.

Em 2016, um polémico vídeo educativo dirigido aos mais novos mostrava uma mãe a explicar à filha que Jeová “fez o casamento entre um homem e uma mulher e que são estes os seus padrões para entrar no paraíso e que eles não mudaram”. Compara ainda a homossexualidade a uma viagem de avião: “O que aconteceria se alguém quisesse levar algo no avião que não era permitido? É o mesmo com Jeová. Ele quer ser nosso amigo e que vivamos no paraíso para sempre”.

O vídeo intitulou-se "Um homem e uma mulher (Caleb e Sofia)" e foi partilhado no site oficial das Testemunhas de Jeová

Regendo-se com base nestes dogmas, em 2004 Mário conheceu a ex-mulher dentro da congregação e um ano depois começaram a namorar. Apaixonou-se pela pessoa que ela era e confessa que na fase dos 20 e poucos anos chegou quase a pensar que tinha “ultrapassado a homossexualidade por obra e graça do Espírito Santo”, no sentido literal da expressão. “Eles ensinam que ele atua sobre nós e ajuda-nos a mudar”, diz. Ele próprio, que também foi ancião durante nove anos, assume que incutia nos restantes um discurso falacioso baseado em publicações daquela igreja: “Contava uma história de um espanhol que tinha sido gay e que inclusivamente tinha estado com não sei quantos homens numa só noite, mas que o Espírito Santo tinha atuado”. Mas esse espanhol existiu? Perguntamos-lhe. Responde sem hesitação: “Sei lá, provavelmente era mentira, eu agora vejo isso”.

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"Foi o princípio do fim"

Descreve os primeiros cinco anos de casamento como “um martírio”, mas não por culpa da ex-parceira, garante. Aliás, era a sua melhor amiga e admira-a até aos dias de hoje. Mas apenas conseguia ter “relações esporádicas” até chegar à altura em que dormiam lado a lado sem se traduzir em qualquer ato de intimidade, não lhe tocava. “Cheguei a mandar vir pela net uma espécie de viagra, nunca tive coragem de tomar aquilo”, admite. “Isto começou a consumir-me muito, eu era um poço de virtudes e caí, já não estava bem”. Conta-nos que “foi o princípio do fim”: começou a ser invadido por um enorme sentimento de culpa, deixou de comer, sofria de ansiedade diariamente antes de se deitar. Não tinha com quem falar, “nas Testemunhas de Jeová as pessoas são incentivadas a não ter amizades por fora porque a qualquer momento o diabo pode desencaminhar”. Ainda assim afirma que nunca viveu uma vida dupla na sua relação, apenas “aqui dentro” - quando diz isto aponta a mão para o coração. E eis que, finalmente, assistiu “à primeira crise de ciúmes que esperava há tanto tempo” por parte da mulher, a quem contou um lado da verdade: já não gostava dela da mesma forma. O resto assumiu já no processo de separação, quando teve a certeza daquilo que sentia por outros homens. É que nunca conhecera outra realidade que não aquela.

Mário foi levado a pensar que podia "mudar" com a ajuda do "Espírito Santo". (Imagem: Yui Mok via Getty)

Semanas antes de esse dia chegar, Mário experimentou sites de encontros nos quais foi surpreendido com “todo o tipo de porcaria que possam imaginar”. “Queria saber como conhecer gays, mas estava totalmente formatado e tinha a mentalidade muito fechada”. Depois de uma ou duas tentativas falhadas conheceu o primeiro namorado e o primeiro homem com quem se envolveu fisicamente: “Era aquilo que me ia fazer feliz”. Virou costas ao casamento e a 38 anos de vida como testemunha de Jeová, mas faltou à comissão judicativa – o tribunal da congregação - uma vez que não queria sujeitar-se à “humilhação”. Mário explica que ali são julgados “pecados graves” com recurso a questões “íntimas e desnecessárias”. “Eu já sabia que iam perguntar ‘onde é que tocaste? Onde é que lambeste? Onde é que meteste? Onde é que agarraste?’ para perceberem a extensão do meu pecado, e ninguém tinha nada a ver com isso”, lembra. Tendo ele próprio conduzido várias comissões, sabia que os dois anciãos a quem tinha admitido e a sua ex-esposa serviriam de testemunhas, e como não mostrava arrependimento só havia um resultado possível: ser expulso. O seu caso muito dificilmente acabaria de outra maneira, mas Mário revela que há quem se tente redimir submetendo-se a um “acompanhamento.” Isto é, “selecionam-se dois anciãos para prestarem apoio à pessoa”, e esse apoio “consiste em mostrar que as Testemunhas de Jeová não gostam e condenam homossexuais”. “Têm umas conversas, vão fazendo um estudo com certos artigos e vão perguntando ‘Estás a conseguir controlar os teus impulsos?’, se a pessoa tiver uma recaída repetem o processo”.

Contactámos a sede portuguesa das Testemunhas de Jeová, que diz limitar-se a "apresentar, divulgar e esclarecer os princípios morais contidos na Bíblia Sagrada". "A Bíblia não apoia a homofobia ou o ódio aos homossexuais. No entanto, mostra que Deus desaprova a atividade sexual que não seja entre marido e mulher, quer se trate de uma conduta homossexual ou heterossexual. (Levítico 18:22; Romanos 1:24, 26; 1 Coríntios 6:9, 10, 18). Esta crença é comum a muitas religiões cristãs", lê-se num parecer enviado à CNN Portugal. Por outro lado, garantem que "não impõem as suas crenças baseadas na Bíblia a filhos, cônjuges ou outras pessoas" e que "respeitam plenamente as decisões individuais de cada pessoa". Em relação aos casos que aqui relatamos, descrevem-nos como "alegações infundadas". 

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Larissa foi submetida a rituais religiosos

“A vivência comigo, com a minha sexualidade, era uma coisa completamente dantesca. Realmente eu não podia aceitar-me como era”, Larissa Bello, mulher trans, lembra-se de orar a Deus todas as noites antes de se deitar, e pedir perdão por aquilo que não era capaz de conter diariamente: sentir desejos por um homem e vestir-se de menina. Sabia o que se passava consigo desde muito nova, quando começou a “ganhar consciência das coisas”, mas descreve a sua vida até aos 18 anos como uma experiência de “completa anulação” no seio das Testemunhas de Jeová. “Aquilo a nível psicológico destruiu-me e acabei por ficar muito doente, era completamente alienada”, admite a vice-presidente da Opus Diversidades, e colega de Hélder Bértolo, à CNN Portugal. Foi, contudo, na Igreja Evangélica que sentiu na pele as “terapias de conversão” dois anos depois, já a Organização Mundial de Saúde tinha retirado a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID).

Agora com 48 anos Larissa permite-nos conhecer o seu testemunho. Apresenta-se como a mulher que sempre soube que era, e com uns longos cabelos encaracolados que escondem uma postura reservada. Quando atingiu a maioridade já acreditava que não ia ser capaz de viver muito mais, acabando por virar costas a uma organização que a obrigava a “renunciar ao pecado e a tudo o que o representa”. “Não era propriamente uma conversão porque nunca falei das coisas que sentia, ninguém soube nas Testemunhas de Jeová, mas era uma autoconversão”. Restavam-lhe uns poucos familiares que descobriram eventualmente a sua atração por homens, não aceitavam que na realidade Larissa se sentia mulher. “Naquela altura tudo era preconceito, a minha mãe dizia ‘eu amo-te, mas como filho’ e acreditava que me podia curar, dizia ‘tu vais conseguir vencer isto”, relata. Chegou à igreja Evangélica aos 20 anos por sugestão de uma prima, quando achava que ia finalmente resolver os seus problemas de saúde mental. Por ali ficou até aos 23.

Larissa Bello deixou as Testemunhas de Jeová aos 18 anos e foi parar à igreja evangélica. (Imagem: Leo Correa/AP)

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"Dizia que eram coisas do demónio"

Instalações da Nova Aliança, em Lisboa (Imagem: Google Street View)

Era acompanhada, uma vez por semana, por um psicólogo em Lisboa com ligações à Nova Aliança. Conta-nos que durante as consultas “desconstruía tudo” o que sentia, “negava aquilo que estava errado” em si, e era-lhe dito que sofria de uma “disfunção” que “tinha de ser corrigida”. Mas ainda foi encaminhada para Benfica, onde todos os sábados era submetida a rituais naquela igreja. “Ele dizia que podia fazer a parte dele a nível psicológico, mas que a parte mais importante era a nível espiritual”. Foi dessa forma que conheceu a “pastora Chiquinha” e o “pastor Natálio”, nomes que ainda hoje a fazem estremecer.

Começava com um culto habitualmente muito moroso ministrado pelo casal, numa espécie de altar modernizado, e fazia-se sentir um ambiente “muito acolhedor”. Mas depois o cenário mudava rapidamente de figura: “Ia para uma sala à parte com a pastora Chiquinha e às vezes tinha de ir o marido ajudar”. Larissa sentava-se numa cadeira e “Chiquinha” orava fervorosamente como que numa tentativa de “transfigurar” a pessoa que ali tinha à sua frente. Dizia-lhe que uma “entidade” falava por si, que “eram coisas do demónio”, e à medida que ia ouvindo os gritos constantes Larissa dissociava. “Eu rebolava pelo chão, todo o meu corpo tremia”, relata. “Quando exacerbava chegavam a prender-me as mãos”. Mal se lembra do que acontecia depois, apenas que “saía de lá muito exausta”. Responsabiliza o psicólogo, que a conduziu para “uma pastora que fazia coisas horríveis”, mas por outro lado assume que as consultas também tiveram “um efeito benéfico”: “Conseguiu pelo menos impedir que eu me suicidasse naquela altura”.

Sabemos que os pastores em causa fundaram uma igreja evangélica em Lisboa e continuam a ministrar, mas nem os próprios, nem a Nova Aliança responderam às tentativas de contacto.

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E agora, para onde?

"Temos de ter a consciência de que muitas pessoas nos meios religiosos desconhecem as questões LGBT, nunca viram uma pessoa LGBT e elas próprias pensam que são um problema” sublinha Dani Bento, presidente da Associação Ilga. Contactada pela CNN Portugal, explica que as vítimas começam desde muito cedo a ser conduzidas pela sociedade e quando “veem algo que pode ser uma solução batem numa parede, no sentido em que aquela solução afinal nunca foi uma solução". "Podemos dizer que isto acaba por ser uma fraude e é extremamente destrutivo", conclui. E qual é a solução? Dani Bento defende a necessidade de haver "uma rede de pessoas que entendam aquela pessoa como LGBT e que respeitem isso". "É muito importante a visibilidade para que as pessoas não sintam que são as únicas assim, porque de facto não é problema nenhum", continua.

No livro "O Universo das seitas destrutivas", lançado este mês, António Madaleno, ex-testemunha de jeová, explica o quão comum é uma pessoa sair de um grupo de autocontrolo e ter a sua mente formatada para continuar "dependente de alguém que lhe diga o que é certo, o que é errado, o que fazer, o que não fazer, etc.". Por esta razão considera muito fácil alguém deixar aquela igreja e acabar, ainda que sem querer, num outro grupo como aconteceu no caso de Larissa: "A pessoa acaba muitas vezes por cair na armadilha e entrega totalmente a sua vida a um líder religioso ou a uma comunidade religiosa fundamentalista, que normalmente tem regras muito rígidas. Mesmo não tendo as mesmas crenças, vai partilhar do mesmo procedimento de formatação e do mesmo procedimento de liderança".

Para além dos coletivos, movimentos e organizações que visam acolher e acompanhar pessoas LGBTQIA+ vítimas de qualquer forma de violência, António e outros ex-membros da igreja que outrora abandonou, encontram-se a desenvolver uma associação destinada a "todas as pessoas" que tenham virado costas a quaisquer grupos "abusivos", sejam eles de cariz religioso ou não, e que se vejam "completamente sozinhas". Até a iniciativa ser concretizada, disponibiliza um grupo de apoio a quem tenha passado por situações semelhantes.

"Acaba por ser uma fraude e é extremamente destrutivo", diz Dani Bento. (Imagem: Apu Gomes via Getty)

 

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