Alice Vieira, Gentil Martins, José Cid e Torgal Ferreira têm mais de 80 anos e conselhos sobre como aproveitar a vida, sem arrependimentos
Tristeza (Pexels)

Alice Vieira, Gentil Martins, José Cid e Torgal Ferreira têm mais de 80 anos e conselhos sobre como aproveitar a vida, sem arrependimentos

Todos nos arrependemos de alguma coisa que fizemos ou não fizemos ao longo da vida, cruzando-nos com aquela sensação do que podia ter sido e não foi. Para evitar este sentimento, falámos com Januário Torgal Ferreira, António Gentil Martins, José Cid e Alice Vieira, que, com base na sua experiência, deixam dicas para aproveitar a vida e afastar os arrependimentos

É um dos sentimentos mais “avassaladores” e que “vai corroendo” o ser humano. Voltar atrás é impossível e muitas vezes fica-se “preso” numa espiral de “e se?”, a pensar no que poderia ter sido e não foi, descreve a psicóloga Catarina Lucas. Da frustração aos sintomas depressivos ou de ansiedade, o arrependimento pode ter um impacto “sério” ao nível da saúde mental.

“O arrependimento é um estado mental que pode envolver um sentimento de culpa por algo que se fez ou que se deixou por fazer ou até de tristeza pelo rumo diferente que as situações poderiam ter tomado e que se perdeu”, concorda David Guedes. O psicólogo acrescenta que este sentimento leva “frequentemente a uma perceção de que as circunstâncias presentes poderiam ser melhores caso se tivesse decidido de forma diferente no passado”.

Ativando áreas do cérebro relacionadas com “a dor e o sofrimento”, este sentimento torna-se numa “ruminação excessiva” e num “foco desproporcionado no que se perdeu”, que origina “tristeza, ansiedade e inquietação”. David Guedes explica que o arrependimento pode levar a estes estados “transitórios” ou agravar-se, “tornando-se parte de dificuldades mais severas de depressão ou ansiedade”.

Mas o arrependimento pode ter um lado positivo, podendo “levar as pessoas a retratar-se ou a tentar reparar o dano das suas ações” ou, pela antecipação, fazer com que “se tenha comportamentos mais ajustados”. “Em termos de saúde, se antecipar que me vou arrepender de ter escolhido uma sobremesa altamente calórica, talvez opte por saltar essa parte da refeição ou por escolher uma alternativa mais saudável”, exemplifica.

Quais são então os arrependimentos mais comuns? Tudo depende “de fatores como a fase da vida em que se está ou a cultura e a época em que se vive”, refere David Guedes. Mas parecem existir aspetos mais frequentes do que outros. Para Catarina Lucas, os arrependimentos mais comuns estão “quase sempre relacionados com a relação com outras pessoas, sobretudo com a família”. “Alguns estudos referem a tensão na forma como se negocia o equilíbrio entre a carreira e a vida pessoal e familiar”, acrescenta David Guedes.

E é na vida profissional que surge precisamente outro dos arrependimentos mais comuns. As “oportunidades perdidas no plano profissional” ou a sensação de “que deveríamos ter dado menor importância ao trabalho”, falhando “em viver mais o momento ou em cultivar relações pessoais”, também conduzem muitas vezes a este sentimento “avassalador”.

A vida é “um exercício constante de tomada de decisões” e está, por isso, “repleta de oportunidades de errar, dar um passo em falso ou fazer uma escolha menos prudente”. Desta forma, David Guedes, também vogal da direção da delegação regional do sul da Ordem dos Psicólogos, assegura que “é possível sentir arrependimento em qualquer fase da vida”.

Ainda assim, o arrependimento “não é igual em todas as pessoas” ou em todas as fases. A psicóloga Catarina Lucas destaca “a entrada na vida adulta em que muitas pessoas se arrependem das escolhas profissionais feitas”. Também na “meia-idade”, momento em que “as pessoas sentem arrependimentos face às escolhas profissionais e familiares” e até no final de vida onde “se olha para trás e se confronta com as suas escolhas e oportunidades que não foram aproveitadas”.

Se numa fase mais jovem há tendência para olhar para trás “com uma maior flexibilidade” por ainda se ter tempo para mudar, como aponta David Guedes, numa altura mais tardia as coisas funcionam de forma distinta. “Os adultos mais velhos podem tender a considerar que as situações de que se arrependem são algo que já não podem mudar”, explica.

E precisamente por se pensar que já não se pode mudar quando se é mais velho surge esta sensação que corrói. “Quando se é mais velho podem ocorrer mais arrependimentos, pois há um acumular de decisões de uma vida inteira e acima de tudo a sensação de finitude que pode trazer arrependimentos em relação a assuntos inacabados e a decisões tomadas”, afirma Catarina Lucas.

Ao longo da vida vamos fazendo coisas de que nos arrependemos e vamos olhando para trás, para o passado, a pensar no que poderíamos ter feito “de forma diferente”. À CNN Portugal, quatro personalidades conhecidas, com mais de 80 anos, explicam como aproveitar a vida e evitar a sensação amarga do arrependimento.

03
"É preciso arriscar mas medir sempre o risco"

Januário Torgal Ferreira, 85 anos, bispo emérito das Forças Armadas e de Segurança

O avião descolou e menos de três horas depois Januário Torgal Ferreira aterrou em Paris para uma experiência que marcou a sua vida: estudar no estrangeiro. Aos 85 anos, é um dos momentos que melhor recorda.

“É preciso arriscar”, garante o bispo emérito das Forças Armadas e Segurança, que, entre 1977 e 1979, voou até Paris para fazer uma pós-graduação em Filosofia. Esta experiência de dois anos leva-o a recomendá-lo a todos: “Quando se discute o futuro, não se deve ter medo de ir para o estrangeiro.”

Mas há algo a ter em atenção: “É preciso arriscar mas medir sempre o risco”, alerta. Januário Torgal Ferreira voou antes da mudança oficial para se “preparar”, ter uma primeira impressão da cidade a que ia chamar casa por uns tempos, conhecer a faculdade e procurar um sítio para viver. “Eu tentei assegurar o mínimo e quando cheguei lá já conhecia o ambiente e até um professor”, recorda. Para o bispo, “não se deve ter medo de ir para o estrangeiro”, mas também “não se deve partir descalço” - é preciso “levar certezas e arriscar com toda a segurança”.

Janúario Torgal Ferreira, antigo bispo emérito das Forças Armadas e Segurança (Ordinariato Castrense)

Não deixar tudo para a última

A mudança para Paris ensinou Januário Torgal Ferreira a não seguir a “terrível” tendência de “fazer tudo à última hora” e procurar, pelo contrário, fazer as coisas com antecedência. “É importante ter o mínimo de suporte”, explica, garantindo que suporte implica tempo e que tal permite evitar “muito sofrimento”.

Ganhar o hábito de pensar à distância

O bispo diz que tentar resolver problemas de cabeça quente “dá cabo de uma pessoa”. A técnica de Januário Torgal Ferreira para tratar das adversidades é, assim respirar, acalmar, esquecer o assunto por momentos e só depois voltar a ele - a que chama de “pensar à distância”. Parece-lhe difícil? Aos 85 anos garante que é “uma questão de hábito” e que se evita muito sofrimento desta forma.

Imaginar-se no lugar dos pais

“Mais diálogo” e “uma abertura total”. Esta é, para Januário Torgal Ferreira, a fórmula que deve reger a relação entre pais e filhos, já que permite resolver facilmente as pequenas lutas, que resultam da “intolerância e incompreensão”. O bispo alerta aos filhos para se colocarem no lugar dos pais, porque “não sabem o tormento que estão a sofrer”. “Deve haver uma espécie de negociação entre as duas partes e os filhos não devem quebrar a sua confiança”, diz.

05
"A insatisfação é promotora do progresso"

António Gentil Martins, 93 anos, médico cirurgião

Vivia-se o ano de 1978 e António Gentil Martins preparava-se para a inovadora cirurgia de separação de gémeos siameses. Eram duas meninas de quatro meses e meio unidas pelo abdómen. Desde esse dia marcante até à data da reforma, o cirurgião separou outros seis pares de gémeos. “É importante escolher uma profissão de que se goste pois só assim se será eficaz e feliz”, assegura.

Com 93 anos, o médico avisa ainda que tal não basta. “A maneira mais fácil para não progredir é estar contente e aceitar como bom aquilo que se faz. A insatisfação é promotora do progresso”, motiva.

António Gentil Martins admite, no entanto, que nem sempre vai ser fácil. “Não se vence todas as vezes que se luta”, diz, garantindo que “ser derrotado é uma condição transitória” e que “desistir é que a torna definitiva”.

António Gentil Martins no lançamento do livro "Ser bom aluno não chega" (Ricardo Santos/Lux)

Evitar excessos

O cirurgião de 93 anos avisa que “a velhice se constrói na infância e na adolescência pelo desenvolvimento do espírito e do corpo”. Para tal há cuidados a ter, como “evitar os excessos” e “procurar a sobriedade”. Ora, para António Gentil Martins, a construção da velhice deve passar pela “prevenção”, adotando este tipo de comportamentos, e não depois dos mesmo pelo “tratamento”.

Preservar os valores

O que somos resulta “fundamentalmente de três grandes pilares”. São eles, diz, a “hereditariedade” (aquilo com que nascemos), a “educação” (transmitida pelos nossos pais e o meio em que passámos a viver), e, finalmente, “a nossa própria vontade”. Os “princípios olímpicos” que daí surgem devem ser preservados, como a excelência, a amizade, o respeito, a honra, a verdade e o rigor, não esquecendo o repúdio à discriminação, à fraude e à corrupção.

Ouvir os outros

António Gentil Martins assegura que “é sempre útil ouvir os outros”, já que estes podem ajudar nos “problemas mais complexos”. “A decisão final e a responsabilidade devem ser sempre do próprio”, alerta, contudo. O médico afirma ainda que se deve dizer sempre o que se pensa e não “o que os outros querem ouvir”, mas que não se deve falar do que não se sabe, porque “a liberdade não é um valor absoluto e termina quando interfere com a liberdade dos outros”.

06
"Não desista dos seus sonhos"

José Cid, 81 anos, cantor

José Cid encontrou cedo a sua vocação na música. Hoje, aos 81 anos, é autor de letras conhecidas e que qualquer um reconhece.

O cantor e compositor fez parte do Quarteto 1111, uma banda criada em 1967, e sentiu na pele a censura do período que antecedeu o 25 de Abril. Os discos foram retirados do mercado e as dificuldades foram muitas. Uma das mensagens que considera importante passar, especialmente aos jovens, é que toda a gente passa por períodos mais complicados ao longo da vida.

“Tive muitas dificuldades e ainda hoje tenho, mas a dor diverte-me.” Por saber que é importante dar “oportunidades aos jovens”, explica que nos seus concertos convida um ou dois para subirem ao palco e cantarem.

José Cid na TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal)

Não desistir dos sonhos

O artista afirma que nunca se deve “desistir dos sonhos”, alertando, no entanto, para a importância de manter os pés assentes na terra. A quem sonha seguir a carreira na área da música, José Cid aconselha a não desprezar a vocação. “Têm de perceber se nasceram para a música ou não”, diz, considerando que esse “rastreio da qualidade” é importante para o sucesso.

Procurar ser culto

Para José Cid, não se nasce a saber fazer coisas e “é preciso procurar e criar dentro de si essa bagagem”. “Os jovens devem ler, ser cultos e não seguir o que lhes é imposto pelas multinacionais”, garante. O cantor diz que ser culto ajuda também nas pequenas chatices do dia a dia, afirmando que “é uma questão de cultura e de decisão”.

Aprender com os mais velhos

Idade e experiência surgem normalmente de mãos dadas. Quanto mais velha é uma pessoa, maior a experiência que tem, já que ao longo da vida se vão colecionando momentos bons, momentos maus, memórias e, sobretudo, aprendizagens. José Cid diz que, com toda a sua experiência, os mais velhos estão “carregados de razão” e “têm de ser respeitados” pelos mais novos, que “devem  aprender” com eles.

07
"Ler coisas, saber coisas, ouvir coisas"

Alice Vieira, 80 anos, escritora

Alice Vieira, 80 anos, é um dos nomes mais conhecidos da literatura infantojuvenil portuguesa. A autora considera que cabe aos adultos acompanhar os jovens, mostrar-lhes coisas e instruí-los a estar atentos às outras pessoas e ao que se passa à sua volta, o que inclui uma rotina saudável no que toca às tecnologias.

“Não podemos ter uma vida sem telemóvel - o que seríamos sem eles? Mas é preciso dosear”, frisa Alice Vieira, garantindo que “há outras coisas” e que “é preciso interessar-se por elas”. Ler é uma dessas coisas.
 
Alice Vieira apela aos pais para “dar e mostrar livros” aos filhos mesmo antes de saberem ler e que o façam por eles. “Eles vão ouvindo as sonoridades”, diz, explicando que se vai criando o hábito da leitura e que, mesmo que se vão esquecendo dele em alguns momentos da vida, acaba sempre “por regressar”.

Alice Vieira no evento "Escritores no Palácio de Belém", em 2017 (Lusa/Nuno Fox)

Ser interessado

“Ler coisas, saber coisas, ouvir coisas”. O interesse é um motor, que, para Alice Vieira, deve mover as pessoas, porque “o resto vem a seguir”. A autora, que tenta incuti-lo aos netos, reconhece que o desinteresse a preocupa. “Os jovens hoje não querem saber de nada, não conversam e não dominam a palavra”, considera.

Divertir-se com o que se faz

Toda a gente deve divertir-se com aquilo que faz, com a profissão que tem. “Se se sente bem, trabalha-se com mais gosto”, diz, por experiência. E, se à primeira vista não se gostar do trabalho, a escritora incentiva a tentar encontrar “algo bom” nele. “É importante tentar gostar mesmo que não se goste porque deve ter alguma coisa boa.”

Tentar não se preocupar muito

Alice Vieira garante que as preocupações não devem consumir as pessoas, remetendo-as apenas para “o essencial”. “Há coisas com as quais temos de nos preocupar, mas com as coisas pequenas do dia a dia as pessoas não se devem preocupar muito”, considera. “Eu tento não me preocupar muito ou, pelo menos, tentar mostrar que não estou preocupada”, brinca.

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