Ainda estamos a viver a História. Como irão os livros contar a guerra na Ucrânia?
Livros queimados durante a guerra na Ucrânia (GettyImages)

Ainda estamos a viver a História. Como irão os livros contar a guerra na Ucrânia?

Se o presidente da Rússia tivesse visto um trailer de como iria ser esta guerra teria avançado na mesma? Não sabemos, podemos até nunca vir a saber, mas talvez o fizesse repensar. Passou um ano desde que as tropas de Moscovo invadiram a Ucrânia e Kiev continua de pé. Os russos recuaram e os ucranianos avançaram.

Já lá vão 53 semanas de invasão e o fim continua a ser uma incógnita. Quer na forma, quer no tempo. Vai haver uma mudança de regime na Rússia? Vai ser feito um tratado de paz? Ou, como nenhum dos lados consegue dar o golpe decisivo, o conflito vai ficar adormecido? Não se sabe. Entretanto, a História vai-se escrevendo.

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Capítulo 1 - "A guerra que mudou o mundo"

A 24 de fevereiro de 2030, oito anos depois da invasão russa, poderíamos abrir um qualquer livro de História e no título poderia estar: "A guerra que mudou o mundo". Nas palavras do historiador António José Telo existem pelo menos duas características que distinguem esta guerra das outras e, por isso mesmo, têm de constar em qualquer parágrafo dos futuros livros escolares: surpresa e mudança. 

"Esta é a guerra do rato que pariu uma montanha. Parecia mais uma das pequenas guerras de Putin, outra operação tipo 2014, em que os russos chegavam, ocupavam de surpresa e depois o Ocidente pressionava a Ucrânia para aceitar as cedências, porque não se pode desafiar um poder nuclear. Não foi assim. O mérito é todo de Kiev."

"Acabe como acabe", esta guerra às portas da Europa "mudou o mundo". "Mudou os nossos valores e mostrou que, como diria Fernando Pessoa, a chama antiga ainda arde por debaixo das cinzas. 'A mão do vento pode erguê-la ainda'". 

O objetivo de Vladimir Putin era o de enfraquecer o Ocidente, mas conseguiu com isso uma Europa mais unida do que nunca e disposta a "mudar as suas principais políticas". Conseguiu que a NATO renascesse "com uma coesão e um propósito que pareciam impossíveis". Para António José Telo, o mundo tem agora "dois caminhos possíveis e inesperados" na reconstrução do sistema internacional. Porém, "a escolha ainda está em aberto".

No entanto, não é fácil escrever-se História, porque é uma ciência que "estuda realidades do passado" e esta guerra é ainda um acontecimento do presente, explica Marília Gago, investigadora da Universidade do Minho e autora de vários manuais escolares de História da Texto Editora.

Construir a narrativa de um manual de História requer "distanciamento" temporal, "para se compreender de forma mais alargada, abrangente e profunda toda a realidade em estudo e a sua teia explicativa", mas também para se escrever com o rigor que a ciência exige.

Volodymyr Zelensky. Foto: Peter Nicholls/Pool/AFP via Getty Images
Volodymyr Zelensky. Foto: Peter Nicholls/Pool/AFP via Getty Images

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Capítulo 2 - Zelensky, "o homem certo para a hora certa"

Um herói ou um vilão?

A resposta até parece óbvia, dependendo em que parte do mundo lermos este capítulo. Porque a figura de Volodymyr Zelensky vai ser descrita de uma forma no Ocidente e de uma outra na Rússia e nos seus países aliados. Estamos a falar de um ator, produtor, comediante que por ser isso tudo foi eleito a 20 de maio de 2019 para presidente da Ucrânia. Na altura, não foi levado muito a sério. Como é que um humorista governa um país? Sim, porque em maio de 2019 ninguém antevia uma pandemia, muito menos uma guerra. Mas olhando hoje para Zelensky, há quem diga que "foi o homem certo na hora certa". A afirmação é de Victor Madeira, especialista em assuntos de segurança nacional. 

"A nível Ocidental, mesmo dentro da Ucrânia, muitas pessoas não acreditavam que Zelensky, com a carreira que tinha, pudesse ganhar as eleições. Mas o que temos visto tem sido a chegada do homem certo para a hora certa. Porque quando a guerra se alastrou, em 2022, vimos um homem que tinha um toque muito pessoal, um homem de grande carisma, que sabe qual a mensagem que deve passar no momento certo."

E foi justamente a inexistência de uma carreira política, que fez com que Zelensky estivesse "muito mais bem preparado para poder enfrentar o que estava prestes a acontecer: uma guerra muito pública, coberta por fontes mediáticas, por grupos voluntários, uma guerra que está no domínio público". 

Mas a ciência histórica não se escreve entre heróis e vilões, pelo menos "não deve cair nessa tentação". Os manuais escolares, na visão de Marília Gago, "tentam compreender de forma complexa, abrangente e ampla os seres humanos do passado" sem nunca tomar partidos: "compreender não é legitimar". 

"Volodymyr Zelensky será uma das pessoas deste passado, que agora é presente, a ser estudado, explicado e compreendido, mas em interconexão com outros agentes e intervenientes, quer individuais quer coletivos."

Independentemente do rumo da História, o percurso de Zelensky nunca poderá ser ignorado. Passou de comediante a combatente, e é agora um resistente. Aliás, por alguma razão foi considerado "Personalidade do Ano" 2022 pela revista Time. Foi, é e será "a grande surpresa desta guerra", defendeu António José Telo.

"Se Vladimir Putin foi o rato que pariu a montanha, Zelensky foi o génio político que concebeu a montanha."

Na perspetiva do historiador, Zelensky abriu "o caminho para os políticos do futuro, que não seguem os caminhos do passado e surgem a partir da base, numa ascensão baseada na diferença". Um homem com uma estratégia política a longo prazo para o país, ainda que tivesse apenas um mandato de cinco anos: uma democracia de tipo Ocidental; garantir a segurança com uma adesão à NATO; e um desenvolvimento numa adesão à União Europeia.

"A brutal invasão de 2022 foi a resposta ao sucesso desta estratégia, apesar de todas as hesitações e reservas da União Europeia, e bem patentes desde 2014, com a ocupação da Crimeia. (...) A Ucrânia de Zelensky provou algo incrível em 2/2022: provou que se podia resistir à agressão russa, apesar das condições muito desfavoráveis; provou que o espírito do Ocidente de Churchill e Kennedy, do Ocidente dos tempos áureos, estava vivo e o seu coração batia em Kiev."

Na História do Ocidente, e respondendo à questão que nos trouxe a este capítulo, Volodymyr Zelensky não vai ser apenas escrito como o herói da Ucrânia. Este homem passou a ser "o herói de todos os que acreditam no renascimento do Ocidente", de todos os que "acreditam que os valores de liberdade do Ocidente não estão mortos" e, principalmente, de todos os que "acreditam que a cedência perante a força não traz a paz, mas sim uma guerra muito maior".

António José Telo citou Fernando Pessoa para dizer que estas palavras poderiam ter sido verbalizadas por Zelensky:

"Aqui ao leme, sou mais do que eu
Sou um povo que quer o mar que é teu"

"Zelensky criou a 'montanha' que está a esmagar Putin e nos permite ter esperança no futuro. É isso que o torna num herói universal", mesmo que, aqui chegados, não saibamos como é que esta guerra terminará. 

Mas esta imagem de herói universal tem limites transfronteiriços. Na perspetiva russa, e enquanto o sistema de Vladimir Putin se mantiver, "Zelensky vai ser uma caricatura. Uma marioneta do Ocidente, uma marioneta das forças neonazis e judaicas", acredita Victor Madeira. 

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Capítulo 3 - O que é que a guerra mudou para sempre?

As dificuldades de se escrever a História do mundo, além do rigor, passam também pelas visões diferentes. Há quem defenda que esta guerra deixou uma Europa mais unida, uma NATO mais coesa, chamou a atenção para um maior reforço e investimento na Defesa e alterou a economia internacional a vários níveis. Por outro lado, há quem defenda que tudo isto é verdade, mas que rapidamente é esquecido.

"Na Primeira Guerra Mundial morreram oito milhões de soldados. Não estou a falar das baixas civis, estou a falar de soldados. Foi traumático. As nações, todas elas, prometeram que isto não voltaria a acontecer. Pois aconteceu e não foi tanto tempo depois disso, não é? Em 1939 estávamos, outra vez, envolvidos numa guerra com características ainda piores do que a primeira", defende Arnaut Moreira, professor de Geopolítica e Geoestratégia na Universidade Nova.

Para o major-general, o que aprendermos com a guerra na Ucrânia será esquecido "uns 10 ou 20 anos depois" desta terminar. "Aquilo que foi a anexação da Crimeia em 2014 já tinha sido esquecido por nós em 2022. Estávamos preparados para inaugurar o [gasoduto] Nord Stream 2. Ou seja, nós esquecemos muito depressa aquilo que são as consequências. Portanto, aquilo que é a marca de uma guerra, pode parecer-nos na altura que é indelével, que nunca mais nos vamos esquecer, que vamos aprender as lições, simplesmente não é a realidade".

A curto e médio prazo, no entanto, diz que haverá mudanças. A maior de todas é o grande desenvolvimento da "capacidade industrial militar no Ocidente". Mas também a curto e médio prazo "será muito difícil que haja nações neutrais neste conflito. Se a guerra se prolongar, não vai implicar apenas questões do ponto de vista industrial, mas vai também recair sobre matérias-primas, não deixando nenhum país fora das definições dos alinhamentos e, portanto, haverá uma enorme pressão sobre os países que procuram não definir quem apoiam nesta guerra". 

Mas há coisas que já mudaram, não vão voltar atrás e a História escreve-se para que não caia em esquecimento. A economia internacional é uma delas.

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Capítulo 4 - Antes e depois das bombas. A economia é uma arma de guerra

Ainda a Rússia não tinha lançado o primeiro míssil em direção à Ucrânia e já a Comissão Europeia tinha divulgado as primeiras sanções económicas contra o Kremlin, numa tentativa de impedir Putin de prosseguir com uma agressão militar.

O conflito escalou na mesma e, em apenas um ano, seguiram-se nove pacotes de sanções do Ocidente em resposta ao ataque militar e à anexação ilegal das regiões ucranianas de Donetsk, Lugansk, Zaporizhzhia e Kherson.

As medidas visaram especificamente a elite política, militar e económica responsável pela invasão com o objetivo de enfraquecer a base económica da Rússia, privando-a do acesso a tecnologias e mercados críticos. Domínios como a alimentação, a agricultura, a saúde e a farmacêutica foram excluídos, uma vez que as medidas restritivas não visam afetar a sociedade russa. 

No total, foram sancionados 1.386 cidadãos russos - entre eles o presidente Vladimir Putin e o ministro dos Negócios Estrangeiros Sergey Lavrov - e 171 entidades responsáveis por ações que comprometeram a integridade territorial, soberania e a independência da Ucrânia.

"Ao contrário da ideia que o Kremlin quis passar, a economia da Rússia saiu bastante penalizada desta guerra", afirma o economista Ricardo Ferraz.

De acordo com uma análise independente do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE), 2022 foi um ano mau para a economia russa. Aliás, se olharmos para as projeções do FMI antes da guerra, previa-se um crescimento económico em 2022 para a Rússia de perto de 3%. Contudo, de acordo com as previsões do do FMI de janeiro de 2023, a economia russa acabou por contrair 2,2%.

"Isso significará uma queda do PIB real em cerca dos 30 mil milhões de dólares. E estamos a falar apenas no primeiro ano de guerra”, afirma o economista Ricardo Ferraz.

Além disso, a Rússia também registou uma elevada taxa de inflação no final do ano, atingindo quase os 14% - o que significa que também foi fortemente penalizada em termos de aumentos de preços. As transações comerciais também caíram, apesar do Kremlin as ter tentado mitigar, virando-se para outros parceiros.

Muitas multinacionais fecharam os seus negócios na Rússia como consequência da invasão da Ucrânia. Na imagem, uma loja da Dior encerrada no centro de Moscovo. Foto: Natalia Kolesnikova/AFP via Getty Images

O preço da guerra a Ocidente

Mesmo longe do campo de batalha, em apenas um ano a invasão russa da Ucrânia mudou as vidas de uma geração. A inflação e os juros subiram, o poder de compra caiu - seguindo-se um período de incerteza económica.

"A guerra mudou a economia e os mercados, que passaram a ser orientados pela estratégia", afirma o historiador António José Telo.

Se compararmos o impacto económico, este penalizou muito mais a Rússia do que o resto da Europa - mas a União Europeia (UE), naturalmente, também sofreu. A braços com uma crise energética - espoletada pelas sanções e cortes nos gasodutos - a UE procurou novas formas de obtenção de energia, além de acumular reservas suficientes de gás para não ter tanta necessidade de importar energia russa.

E o preço da guerra no Ocidente foi a subida dos preços dos bens e, consequentemente, a perda do poder de compra, logo, de bem-estar. A inflação na Zona Euro e na União Europeia chegou a ultrapassar os 10% - e o mesmo refletiu-se em Portugal.

No primeiro ano de guerra, o cabaz de alimentos essenciais monitorizado pela DECO, a associação de defesa do consumidor, registou uma subida de pelo menos 35,28 euros (19,2%). A contribuir para este aumento esteve, por exemplo, o arroz carolino, cujo preço atingiu um novo máximo a 25 de janeiro. 

Altamente dependente dos mercados externos para garantir o abastecimento dos cereais necessários ao consumo interno, Portugal viu-se pressionado pela guerra na Ucrânia - de onde eram provenientes grande parte dos cereais consumidos na União Europeia.

A limitação da oferta de matérias-primas e o aumento dos custos de produção, nomeadamente da energia - necessária à produção agroalimentar - refletiu-se num aumento dos preços nos mercados internacionais e, consequentemente, nos preços ao consumidor de produtos como a carne, os hortofrutícolas, os cereais de pequeno-almoço ou o óleo vegetal. No peixe, por sua vez, a subida dos preços refletiu o aumento dos preços dos combustíveis, que tem um elevado impacto na indústria da pesca.

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Capítulo 5 - A maior crise de refugiados desde a II Guerra Mundial

A guerra na Ucrânia provocou a maior crise de refugiados na Europa desde a II Guerra Mundial. Os números apontam para 8,051,805 de ucranianos que fugiram do país. Só a Polónia, acolheu mais de 1,5 milhões.

Já em território português, Lisboa, Cascais, Porto, Sintra e Albufeira foram os municípios com o maior número de proteções temporárias concedidas. Mas parte dos ucranianos que procuraram refúgio em Portugal após a invasão russa acabou por regressar à Ucrânia, depois de o país ter conseguido libertar algumas cidades e travar o avanço das tropas russas no verão de 2022.

Porém, com a mobilização da Rússia nos meses que se seguiram, este regresso parou e, apesar de não se verificarem novos fluxos de refugiados para Portugal ao fim de um ano, nada pode atestar que não voltarão a acontecer.

Em agosto de 2022, já a guerra decorria há seis meses, havia 6.657.918 de refugiados ucranianos espalhados por toda a Europa. Meio ano depois, são agora 8.051.805. Mais 1,4 milhões.

Rússia, Polónia e Alemanha formam o top três de países que receberam o maior número de pessoas que fugiram da guerra. 

No início de março, centenas de refugiados ucranianos dormiram na estação de comboios de Przemysl, na Polónia Foto: Lusa/EPA

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Capítulo 6 - Um acordo de paz, mais armamento, cedências: o que é preciso para a guerra terminar?

Há um provérbio que diz 'bem decide sobre a guerra, quem está longe dela'. E quem pode definir, ou pelo menos ajudar a definir o final desta guerra não está em Kiev nem em Moscovo. 

"Para a guerra acabar, a Ucrânia tem de vencer e tem de vencer decisivamente, recuperando todo o seu território nacional. A Crimeia será o ponto fundamental do conflito, ou seja, se a Ucrânia decide ou não recuperar todo o território desde 2014. Será uma decisão política. Para tudo isto poder acontecer, a aliança democrática internacional tem de investir fortemente nos meios, mas também nas nossas próprias indústrias de defesa já muito debilitadas", explica Victor Madeira. 

Agora, a 24 de fevereiro de 2023, na perspetiva do especialista, para vencer este conflito a Ucrânia precisaria nos próximos dois/três meses de: um mínimo de 50/60 caças de combate; 200/250 tanques pesados; 300/350 carros de combate ligeiros; 50/60 sistemas de artilharia de longo alcance; e milhões de ogivas de artilharia profissional.

'Bem decide sobre a guerra, quem está longe dela'. Se o Ocidente continuar a apoiar a Ucrânia, a nível militar, e acelerar o volume de tudo o que tem sido enviado, "a Ucrânia sem dúvida ganhará". Se porventura o Ocidente hesitar, como já o tem feito, "a Ucrânia vai enfrentar muitas dificuldades". 

Victor Madeira não acredita que a solução para o fim deste conflito possa passar por uma "guerra adormecida" como se vê nas coreias. A razão é simples: "Nem a NATO, nem a União Europeia se poder dar ao luxo de ter um conflito com esta brutalidade dentro da Europa sem resolução indefinidamente". Por isso, crê, "o Kremlin tentará de tudo para ganhar, mas mesmo que perca, vai continuar a manter o conflito quer por via militar, quer por vias híbridas, como ataques ciber muito sérios". 

Mais um ano de guerra?

A solução não é simples e acarreta riscos. Tem-se falado numa "contraofensiva de primavera", mais do lado russo do que do lado ucraniano, mas qualquer um pode avançar. A primavera começa a 20 de março, mas os olhos estão postos a 24 de fevereiro.

"Esta contraofensiva quando vier, seja de que parte for, vai ser decisiva e vai levar vários meses. Porque, quando começar, ambas as partes vão tentar conquistar a maior quantidade de terreno possível até o outono/inverno chegar. Vai durar um mínimo de quatro ou cinco meses. E manter-se-á até um lado ou outro decidir que não consegue combater mais. Isto não se vai resolver minimamente antes da primavera/verão de 2024", estima Victor Madeira. 

Seria mais um ano de conflito. O especialista em assuntos de segurança nacional olha para o primeiro ano de guerra como "um ensaio geral de ambas as partes". "A verdadeira guerra começa agora", afirma, porque Moscovo sabe que quanto mais tempo este conflito perdurar, "mais as populações ocidentais e os governos vão hesitar em continuar a suportar a Ucrânia como têm feito até agora".

"Esta guerra esta perdida para a Rússia, por isso o desgaste psicológico é muito mais importante. É quase como ganhar uma guerra sem ter de disparar uma bala."

As três (ou quatro) possibilidades

Para o major-general Arnaut Moreira, há três formas principais de acabar com a guerra.

“A primeira são as mudanças no sistema político. Se um sistema político cair, a guerra acaba. Isto é, se Putin sair do poder, a guerra acaba. Se Zelensky sair do poder e for substituído por um poder favorável a Moscovo, a guerra acaba.  Se o Ocidente mudar o seu sentido político e deixar de apoiar a Ucrânia, a guerra também acaba. O sistema político condiciona o desenvolvimento da guerra e, portanto, se houver uma alteração profunda no sistema político, de um lado ou do outro, a guerra pode terminar”.

A segunda é o colapso militar, que Arnaut Moreira não vê acontecer neste momento, uma vez que “ambos os lados parecem ter condições de poder continuar a sustentar a guerra”.

“A terceira questão é a da guerra congelada, do conflito congelado. Ele ocorre normalmente quando nenhum dos lados está em condições de alimentar a guerra de uma forma suficientemente forte que possa provocar desequilíbrios. Isto acontece em muitos conflitos à volta do mundo, como no conflito civil da Síria. Muitos deles estão congelados, isto é, já nenhuma das partes consegue reunir o conjunto de recursos suficiente para produzir novas ofensivas e novos desequilíbrios. Não significa que não haja troca de granadas de artilharia entre os dois lados. Simplesmente já não há o potencial suficiente para encontrar dinâmicas de progressão que permitam o final da guerra”.

O professor universitário elenca ainda uma quarta opção, que afirma ser menos provável: a existência de um poder mediador. “Nesta fase tão extremada, em que se olha ainda muito para o conflito e para os ganhos territoriais, não parece existir ninguém com capacidade de mediar este conflito”, explica o major-general.

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Capítulo 7 - Um novo Plano Marshall. Como vai ser o mundo daqui para a frente?

A resposta não será igual se triunfar a Rússia ou a Ucrânia. No final desta guerra vamos ter, sem dúvida, um mundo mais dividido. Blocos democráticos de um lado e blocos autoritários do outro.

Se o regime de Vladimir Putin sair vitorioso "seria a terceira guerra mundial para todos nós", antecipa Victor Madeira, porque "depois de escravizar e brutalizar" o que restasse da Ucrânia, "o Kremlin sentir-se-ia muito encorajado a continuar ataques a países da NATO, direta ou indiretamente". Iria criar-se uma guerra híbrida, com ataques cibernéticos, por exemplo. No entanto, se Putin fracassar, "o seu regime deixa de existir". 

"Há muita pressão interna, por parte da população e das elites russas. Fissuras nas forças militares e de segurança. Como a sobrevivência do regime depende da continuação do conflito e ainda mais da criação de uma ameaça externa constante, o regime russo torna-se numa espécie de tubarão: parar é morrer. E eles sabem disso."

No caso de uma vitória da Ucrânia, a resposta à pergunta - como vai ser o mundo daqui para a frente? - pode ter várias nuances, porque depende da forma como essa vitória acontecer. Ainda assim, o especialista não tem dúvidas de que uma vitória de Kiev "trará com ela mais riscos, mas não tantos como uma derrota". 

"Uma vitória da Ucrânia, pelo menos, colocaria fim ao regime putinista de guerras imperiais. Veríamos uma revitalização da lei internacional, uma revitalização de parceiras de segurança a nível mundial, como vimos com a NATO, como vimos com a União Europeia, a assumir um papel muito importante no financiamento de finanças e outros meios, e veremos também um novo Plano Marshall para a reconstrução da Ucrânia."

Visão semelhante tem Arnaut Moreira. “Claro que não significa que Putin não seja substituído por alguém que pense exatamente da mesma maneira. Simplesmente não terá as mesmas condições para fazer a mesma política. Se a Ucrânia ganhar, Putin não vai ficar sentado no Kremlin”.

Ganhe o invasor ou o país invadido, defende Victor Madeira, "veremos também um mundo mais dividido, porque, infelizmente, a subversão e corrupção russa continuam a ser atrativas em muitas partes do mundo". 

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Capítulo 8 - Os capítulos por escrever. E uma certeza deixada por Churchill

Ainda estamos a viver a História e, por isso, é certo que ainda haverá mais capítulos por escrever. Todavia, independentemente de quando e como acabe, 'mudança' é a palavra que fica desta guerra.

No início deste dossier, António José Telo disse que o mundo ainda não tinha escolhido o caminho que quer percorrer para a reconstrução do sistema internacional. Mas uma coisa é certa: "Se esta guerra terminar com uma vitória clara da Rússia, não é só a Ucrânia que desaparece". 

"São os valores e a credibilidade da Europa e do Ocidente que caem em descrédito. Ninguém mais acreditará nas suas promessas de segurança ou na firmeza das suas convicções. Ninguém mais quererá o Ocidente como parceiro e a sua economia cai na vertical, trazendo consigo a instabilidade e o crescimento dos conflitos internos, em especial na frágil Europa."

Para o historiador, o fim da guerra não precisa necessariamente de passar por uma escalada nuclear, até porque esta guerra “já matou a galinha dos ovos de ouro da Rússia, que era crença de muitos ocidentais, a começar na Alemanha, que se o tigre fosse regularmente alimentado, nunca comeria fora das refeições oferecidas". Enganou-se. A dependência da Europa em relação ao gás e ao petróleo russo foi cortada e não vai voltar aos valores de origem. 

Livros queimados num ataque em Bakhmut, na Ucrânia - 24 de julho de 2022  (Foto: Diego Herrera Carcedo/Anadolu Agency via Getty Images)

A força de Moscovo passa por "explorar os medos e a divisão dos outros", com o objetivo "de refazer a antiga URSS". Se vencer, "dentro em breve não conseguirá ceder à tentação de dar o passo seguinte. Foi o que fez nos últimos trinta anos". Se, pelo contrário, "a guerra terminar com uma solução aceite pela Ucrânia, ficando claro que a Rússia não conseguiu os seus objetivos e não vergou o Ocidente com a chantagem da escalada, então a janela de oportunidade pode ser aproveitada, o que passa pelo renascimento da Europa numa nova base. Há perigos? Sim, mas só os mortos não correm riscos". 

O historiador acredita que vai ser preciso "equilíbrio, ponderação, prudência e visão de longo prazo" na tomada de decisões, mas que tal não significa "comprar a ilusão de paz com a cedência vergonhosa".

"Até porque a famosa frase com que Churchill classificou o acordo de Munique, onde a Checoslováquia foi sacrificada, é mais atual do que nunca. "Tiveram de escolher entre a ignomínia e a guerra. Escolheram a ignomínia. Vão ter a guerra!". Um ano depois começava a maior guerra da humanidade. Se o Ocidente abandonar a Ucrânia e a deixar ser esmagada, não está a comprar a paz. Está a comprar uma guerra maior e pior do que a atual, bem como uma prematura decadência."

A solução ideal para o fim da guerra "seria a mudança do regime na Rússia", mas, sendo realistas, a mais provável "é algo semelhante à guerra da Coreia: não há tratado de paz, mas o conflito quente terminou há 70 anos".

“O objeto da História são as realidades do passado. Este conflito ainda está a decorrer e para o explicar e compreender cientificamente temos de aguardar, dar tempo ao tempo. 

Como referiu Marília Gago, no Capítulo 1, a distância entre a realidade e a História dessa mesma realidade pode mesmo demorar anos a ser escrita. "Gostaria de não ter de abordar qualquer realidade de guerra nos manuais escolares, nem do seu início nem do seu fim, pois não há vencedores numa guerra. Existindo conflito, o que gostaria é que este conflito terminasse rapidamente e que todos os seres humanos envolvidos - todos estamos envolvidos - se pautassem pelo respeito da dignidade humana”.

A realidade está a ainda a acontecer e por isso é que ainda existem capítulos deste livro com páginas em branco.

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