A Última Fronteira

A Última Fronteira

Os países europeus chegaram a acordo para determinar as novas regras que vão alterar a vida aos migrantes e refugiados que procuram asilo na União Europeia. Foram precisos três anos de negociações para o Conselho e o Parlamento Europeu chegarem a um entendimento sobre o Novo Pacto para a Migração e Asilo. Os documentos ainda vão ser trabalhados em detalhe, mas a nova legislação prevê um maior escrutínio e controlo sobre quem entra na UE e a solidariedade obrigatória entre Estados-membro na recolocação destas pessoas. Apesar de histórico, este acordo mereceu a crítica de várias organizações não-governamentais por acreditarem que é ineficaz na resolução da tragédia humanitária às portas da Europa. Será difícil antever os resultados, mas há conclusões que se podem retirar da estratégia seguida até agora: a UE não foi capaz de fechar a principal rota de entrada, o Mediterrâneo Central, nem de explicar as diferentes políticas aplicadas entre os ucranianos e os outros do Médio Oriente e Norte de África. O número de entradas irregulares é o mais alto desde 2016, o pico da crise.

Autoria e texto
André Carvalho Ramos

Imagem
André Lico, David Luz, Nuno Assunção.

Imagens de drone
André Lico, Fábio Mestre

Imagens na Grécia, Roménia e Ucrânia
Ricardo SilvaJúlio Barulho 

Edição de imagem
Até ao Fim do Mundo, Sérgio Ribeiro

Pós-produção áudio
Billyboom Sound Design, Márix  

Grafismo
Matilde Candeias 

Agradecimentos
Sea-Watch, Aegean Boat Reports, CNN Internacional

A chuva paira sem rumo antes de assentar. Pouco convicta, parece evitar molhar as cabeças inevitavelmente encharcadas e frias. A previsão era de neve, mas não se concretizou. Por cima de uma das pontes do canal de Bruxelas o vento sente-se mais incisivo. Um grupo de homens pernoita numa fileira de tendas montadas numa das pontes. São 55, todos jovens e todos afegãos. Alguns já pediram asilo, outros ainda não. Todos estão sem-abrigo. Alguns trabalhavam no exército afegão, em colaboração com países da NATO. Não têm mulher nem filhos, estão sozinhos e por contra própria. Têm pouco mais de 30 anos, alguns até menos. Só se ouve o barulho da lona verde agitada pelo vento. Em cada tenda há três homens a dormir. Alguns trazem a roupa que tinham no corpo: trajes afegãos e chinelos de prender no dedo. Estão assim no meio da rua com um grau abaixo de zero. É meia-noite. Esfregam as mãos, mas em vão. Sopram vapor quente para aliviar a dor nos ossos provocada por este frio.

“O tempo é muito difícil. É muito difícil, não aguentamos isto. Precisamos de um centro para ficar”, conta-me Tasal Sarwari, embrulhado numa manta azul claro e demasiado fina. Trabalhou para a polícia civil, em Cabul, em parceria com o exército belga. Foi treinado por europeus e, apesar de cumprir os requisitos para ser retirado do país, ficou para trás. A tomada de poder pelos Taliban pode ter várias leituras internacionais, mas para ele terá apenas uma: passou a ter a cabeça a prémio. Planeou cuidadosamente a fuga clandestina e demorada. Conta as fronteiras que cruzou de pingo no nariz.

A fuga de Tasal Sarwari: Paquistão, Irão, Turquia, Bulgária, Sérvia, Bósnia, Croácia, Eslovénia, Itália, França, Bélgica
A fuga de Tasal Sarwari: Paquistão, Irão, Turquia, Bulgária, Sérvia, Bósnia, Croácia, Eslovénia, Itália, França, Bélgica

  

Tasal Sarwari
Tasal Sarwari

Pergunta: Quando tempo demorou?

Tasal Sarwari: Perto de um ano e dois meses.

Pergunta: Está cansado?

Tasal Sarwari: Tão… tão cansado. Não só porque a minha viagem foi tão longa ou porque não tinha comida. Mas porque agora estou aqui à espera que o próximo passo seja melhor. Espero isso…

Tasal acredita nas instituições europeias, mesmo que os serviços públicos aqui não estejam a responder a todos os pedidos. Alegam que não há lugares onde eles possam pernoitar. Aqui não há ucranianos. Só afegãos. Mesmo aqueles que já têm um processo de asilo a decorrer são enviados de novo para a rua numa violação das obrigações legais a que os Estados estão obrigados. Quando um requerente de asilo consegue chegar a um país e pedir proteção, esse Estado é responsável por garantir um lugar para ficar enquanto o processo é analisado. O Estado belga, por sua vez, já foi condenado em tribunal por não fornecer qualquer tipo de alojamento a estas pessoas, porém, a calamidade não só persiste como se agravou nos últimos dias.

Os outros queixam-se do mesmo. Um deles, de 24 anos e bigode preto, contesta em inglês com uma das voluntárias que lhe entrega comida. “Os ucranianos têm os problemas resolvidos num mês! Têm casa, têm tudo. Nós estamos aqui há cinco meses. Somos pessoas, somos feitos do mesmo… Ucranianos e afegãos são iguais”. Legalmente, na União Europeia, não são. Os 27 ativaram uma diretiva de proteção temporária para os ucranianos que lhes dá uma resposta imediata. Todos os outros ficam de fora, mesmo que fujam igualmente de guerras ou ameaças à própria vida. Ele continua a apontar para as tendas com as mãos abertas, viradas para o céu. “Eu e estas pessoas trabalhámos durante cinco anos para o exército belga e estamos a dormir aqui. Não é bom, ou é?”, insiste. A voluntária, Magali Pratte, anui. “Eu sei, eu sei”. Já não sabe, na verdade, o que dizer-lhes mais.

Magali Pratte conversa com um refugiado afegão

“A Europa é um jardim”

Percorrer Bruxelas em dezembro é um passeio pelos símbolos da Europa iluminados com luzes amarelas. A Grand-Place está decorada com um pinheiro gigante e a talha dourada dos edifícios confere às ruas a opulência que se espera do coração da Europa, onde ficam a sede da Comissão Europeia e o Parlamento Europeu. Milhares de pessoas fazem as compras de Natal e o barulho nas ruas divide-se entre os guias turísticos com indicações em várias línguas e os músicos de rua.

“A Europa é um jardim”, descreveu-a assim Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia. “Nós construímos um jardim. Tudo funciona, é a melhor combinação de liberdade política, prosperidade económica e coesão social que alguma vez a espécie humana construiu”. O discurso do Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança aconteceu num evento em Bruges, perante uma plateia onde estão vários representantes e ex-representantes da Comissão e aspirantes a diplomatas. As migrações foram o alvo da sessão. “O resto do mundo não é propriamente assim. O resto do mundo, ou grande parte dele, é uma selva. A selva pode invadir o jardim e jardineiros devem tomar conta dele”, remata Borrell a sorrir.

As políticas da União Europeia para os fluxos migratórios do Norte de África e Médio Oriente orientam-se pela narrativa da securitização, ou seja, a interpretação das migrações como uma ameaça existencial que permite a adoção de medidas excecionais. Em 2017, Donald Tusk, enquanto presidente do Conselho Europeu, estabeleceu um objetivo: fechar a rota do Mediterrâneo Central. Desde o pico de chegadas nos anos de 2015 e 2016, a União Europeia estabeleceu vários acordos com países terceiros, sobretudo países de trânsito para os migrantes e refugiados, transferindo milhares de milhões de euros, por exemplo, para a Turquia e para a Líbia. Esta foi a sugestão de Borrell: para proteger o “jardim” é preciso ir à “selva”. Estes acordos mereceram a crítica internacional de várias organizações não-governamentais e o tempo demonstrou-os ineficazes para reduzir o número de entradas irregulares ou o sofrimento de quem procura refúgio na Europa.

Tendas nas ruas de Bruxelas

O número de travessias irregulares nas fronteiras da União Europeia é o mais elevado desde 2016. Houve um aumento significativo de 17%, este ano, correspondendo a mais de 350 mil pessoas. “Estamos na verdade a criar uma selva. Nós mesmos”, desabafa Magali, a voluntária da Samusocial que faz a ronda pelos novos sem-abrigo de Bruxelas. “Aqui, isto? Não é um jardim. Se eu vivesse no Afeganistão também iria procurar outro lugar para viver, mas, enfim… Veja: este jardim transformou-se numa selva”. A Comissária Europeia para os Assuntos Internos, que tutela as migrações na União, não concorda, mas também não condena o discurso de Borrell.

Ylva Johansson
Ylva Johansson

Pergunta: A Europa é um jardim?

Ylva Johansson: Não. A Europa é o melhor lugar no mundo, devo dizer, é por essa razão que muitas pessoas de várias partes do mundo querem vir para aqui. Porque temos liberdade, democracia, prosperidade e bem-estar… e temos orgulho nisso.

Pergunta: Mas subscreve ou condena?

Ylva Johansson: Eu não concordo com essa expressão, claro, não se trata de sermos um jardim ou uma selva.

Às quatro da manhã já há mais de 30 pessoas na fila do Serviço de Estrangeiros. São brancos, negros, árabes, mulheres, menores e bebés de colo. Às cinco da manhã chegam ainda mais pessoas. Ainda não têm como saber, mas grande parte não vai conseguir entrar nos escritórios para pedir asilo. A esta hora tão prematura ainda acreditam que chegaram a tempo.

Serviço de Estrangeiros
Serviço de Estrangeiros

As portas abrem às oito e meia. Na Avenida Pacheco, número 44, é onde todos os requerentes de asilo pedem o início do processo. Todos, exceto uma nacionalidade. “Isto funciona de uma forma engraçada”, explica-me Lucinda Pearson, outra voluntária da ONG Serve The City. As 300 refeições que tem para distribuir não chegarão para todos. É assim todas as manhãs. “Há dois sistemas em paralelo. As pessoas que vêm da Ucrânia não vêm para este centro. Vão para outro, no norte da cidade, que é mais organizado. Não têm de esperar dias após dias numa fila sem ideia se vão entrar ou não”, conclui.

Toda a papelada para pedir proteção internacional está em francês ou alemão. Será indecifrável para tantos que nem inglês falam. No outro centro, noutra zona de Bruxelas, onde estão ucranianos, está tudo na língua materna dos requerentes de asilo. É lá que o Estado concentrou todos os esforços. Aqui há pessoas do Burundi, Serra Leoa, Afeganistão e até outros sem pátria, mas com igual urgência em conseguir ou renovar proteção internacional.

Gunay
Gunay

“Veja, aqui! Vê aqui algum ucraniano?”, um dos homens abre os braços e aponta em simultâneo para o fim e princípio da fila. Gunay é curdo, fugiu da Turquia. “Vê algum ucraniano? Aqui não há nenhum ucraniano. Isto é a capital da Europa! A Europa diz: nós temos democracia, justiça… Mas quando vivemos a realidade, vemos que é apenas uma formalidade”. Calvo, de cabelos negros a vincar-lhe o rosto de cada lado da cabeça, voz rouca e visivelmente irritado, gesticula fervorosamente no meio da fila. Os outros, encolhidos nos agasalhos, rapidamente esticam os pescoços para beber desta raiva. Estão todos no mesmo barco. O rastilho pega fogo quando se fala “nos outros”, os ucranianos. Ironicamente, a sede da Comissão Europeia fica a alguns quarteirões e é lá fica fica o gabinete de Ylva Johansson.

Pergunta: A guerra na Ucrânia demonstrou a falta de interesse dos Estados-membro e da União Europeia em receber refugiados do Norte de África e do Médio Oriente?

Ylva Johansson: Não. Acho que os relatos dos media são muito sobre as chegadas irregulares. Mas também temos muitas pessoas a chegar de forma regular. Por exemplo, quando tivemos a tomada de poder do Afeganistão pelos Taliban, todos os Estados-membro decidiram, com uma missão humanitária, receber refugiados afegãos.

Pergunta: E muitos estão agora sem-abrigo, aqui, em Bruxelas.

Ylva Johansson: Há novos pedidos de afegãos que estão a chegar e agora temos a guerra na Ucrânia! Claro que isto é um caso especial… porque a Ucrânia quase só tem fronteiras com a União Europeia. Temos a Moldova… que também estamos a apoiar, aceitando refugiados de lá. Acho que a resposta dos Estados-membro foi de uma solidariedade sem precedentes. Não só para com os ucranianos, também com centenas de milhares de nacionalidades que viviam na Ucrânia.

Pergunta: porque razão não é dada proteção temporária automática a outras nacionalidades, como os afegãos ou os sírios?

Ylva Johansson: Aprendemos lições em 2015, quando tivemos um grande fluxo de refugiados. Na minha opinião, nessa altura, deveríamos ter ativado a diretiva de proteção internacional.

Pergunta: É racismo?

Ylva Johansson: Temos problemas com racismo e xenofobia na Europa. Isto é claro. É algo que me preocupa muito. É um veneno na nossa sociedade e é algo contra o qual temos de lutar. Mas não vejo aqui uma ligação.

O que aconteceu com a guerra na Ucrânia foi inédito. Em poucas semanas, entraram mais pessoas na União Europeia, vindas da Ucrânia, do que em todos os anos somados de outros fluxos desde 2015. Em Siret, na fronteira entre a Roménia e a Ucrânia, O barulho de fundo é um irritante grasnar de rodas de malas de viagem a raspar no alcatrão. Umas mais perto, outras já mais longe. Umas para a frente, outras para trás. Esta é a maior crise de refugiados da história recente na Europa. Nas primeiras duas semanas de guerra, entraram na União Europeia tantos refugiados ucranianos como em oito anos de crise migratória na Grécia ou em Itália. Assim se percebe a dimensão da tragédia humanitária bem como a resposta no acolhimento. Os números não ficarão por aqui e hão de triplicar no próximo mês. Apesar desta onda, ninguém fica para trás. Países como a Hungria ou a Polónia recusaram-se sempre a aceitar acolher pessoas que estavam presas em campos como os de Lesbos ou de Lampedusa. Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro, em 2018, classificou os fluxos migratórios como uma “invasão de muçulmanos” e os refugiados como um “veneno”. Esta está ausente quer na narrativa húngara, quer na polaca.

Dentro de um carro há uma mulher com três filhos pequenos. Pergunto-lhe para onde quer ir. “Albufeira”, responde-me. Terá caminho aberto para viajar até Portugal, de uma ponta à outra da Europa. A jornada será longa e sofrida, mas sem os entraves políticos e burocráticos impostos por regras europeias como o Regulamento de Dublin, que obriga os migrantes a requerer asilo no primeiro país da União Europeia a que chegam.

A resposta para acolher todas estas pessoas tornou-se exequível do dia para a noite e isso revelou a incapacidade europeia de oferecer soluções políticas a quem foge de outras guerras, como os sírios, onde Vladimir Putin autorizou a força aérea russa a bombardear cidades como Aleppo. Sírios e ucranianos representam o paradoxo das diferentes respostas para quem foge de males semelhantes. A diretiva de proteção temporária automática, concedida aos ucranianos, foi criada por António Vitorino, quando foi Comissário Europeu da Justiça e Assuntos internos entre 1999 e 2004. Ainda enquanto diretor-geral das Organização Internacional para as Migrações, foi o principal crítico da inação europeia.

Pergunta: A resposta política falhou?

António Vitorino: De facto, a diretiva da proteção temporária, criada no ano de 2000, podia ter sido utilizada em crises anteriores e não foi. Sempre me interroguei porque é que em 2015, quando chegaram os refugiados sírios às instâncias europeias, não tomaram essa decisão. E a conclusão é muito simples: erraram. Deviam-no ter feito!

Pergunta: Mas reconhece que há diferenças?

António Vitorino: Há diferenças entre ucranianos e sírios, sem dúvida. É uma evidência. Apesar de tudo, utilizando expressão tipicamente portuguesa, mais vale tarde do que nunca. O que estamos a ver neste momento é que a diretiva comprova que os ucranianos têm acesso a mercado de trabalho, acesso a proteção social. As crianças têm acesso ao sistema escolar. Isto é muito importante e não existiu durante a crise da Síria. Estas experiências, estes insucessos, são uma fonte de ensinamento. E acho que é positivo retirar daqui que a União Europeia e os Estados-membro, desta vez, aplicaram a diretiva, dando provas de que não se podem cometer os mesmos erros.

Pergunta: O novo novo pacto para migrações e asilo tem capacidade para responder às migrações de forma diferente?

António Vitorino: Os sistemas de asilo europeus estão sobre carregados. O Novo Pacto para a Migração e Asilo que a Comissão Europeia apresentou há três anos tinha como objetivo revisitar todo o sistema de asilo que ainda é aquele que eu deixei como Comissário há 20 anos. Está manifestamente desactualizado. Infelizmente, por divisões internas na própria União Europeia, não tem havido grande progresso nas reformas necessárias.

Pergunta: Por que razão não há?

António Vitorino: Não sei. Eu que estou à frente de uma organização internacional humanitária costumo dizer, a brincar, que não sei distinguir um refugiado de um migrante pela cor dos olhos.

Bruxelas consegue ser o espelho desta realidade, por ser o coração das decisões europeias e não só. Oitocentas pessoas pernoitam abrigadas nas paredes frias de um edifício no centro de Bruxelas. Não há brancos nem loiros. São da Guiné Conacri, Camarões, Eritreia, Somália, Burundi e Síria. O prédio pertencia a uma repartição de serviços da administração pública e começou a ser preparado para receber refugiados ucranianos. Porém, a solidariedade mobilizou-se de tal forma que acabou sobrante e o edifício não foi usado. Os outros, os não-ucranianos, ocuparam-no ilegalmente quando perceberam que iria ficar vazio.

 

 

Cá dentro, com engenho, conseguiram colocar eletricidade em algumas divisões. Serve para iluminar corredores, caves e alguns vãos de escada. Conseguem fazer chá em chaleiras elétricas, mas não é suficiente para garantir o mínimo de bem-estar. Não há aquecimento, nem água quente. Só existe uma casa de banho e é lá onde todos tomam banho, quando calha. Por agora têm água fria, amanhã não sabem. Há uma crise de saúde pública aqui dentro, com surtos de sarna, tuberculose e difteria.

Jean de Dieu
Jean de Dieu

“Estás a ver, amigo? Está muito, muito, muito frio”, explica Jean de Dieu, uma espécie de guardião deste abrigo improvisado. Tem quase dois metros de altura e vem do Burundi. “É muito difícil dormir aqui. São onze da manhã e não temos comida, ainda há muita gente a dormir por causa da fome. Ficam com sono e a dormir sentem menos a dor no estômago”, conta.

A sala é ampla e fria, as paredes brancas e o chão cinza claro. Há pessoas a dormir em todos os cantos, alguns com colchões, outros em cima de caixas de cartão. Jean de Dieu não é sírio nem afegão, mas espera conseguir estatuto de refugiado por perseguição política no país de origem. “Nós temos uma pergunta para o governo. Porque há esta diferença entre os ucranianos e nós? Também precisamos de proteção internacional.”

Na sala de refeições há três sandes numa caixa de plástico cheia de migalhas no fundo. Meia dúzia de garrafas de água e nada mais. Na sala que serve de quarto coletivo há famílias inteiras e homens sozinhos. Um deles está numa chamada por vídeo com a família ainda em Cabul. Khalid Nasrullah é um homem baixo e está sempre a sorrir com os olhos, apesar de desgraça sair-lhe em palavras pelos lábios. É afegão e trabalhou trabalhou no exército. Era um dos soldados que guardava os detidos na prisão de Bagram, considerada a Guantanamo do Afeganistão. Saiu do país dias depois da tomada de Cabul. Seguiu a pé, pelo Paquistão, e fez a rota de todos os outros. Acabou aqui, sem se surpreender com a vida que tem.

Khalid Nasrullah

Pergunta: No que é que pensou quando tomou a decisão de fugir?

Khalid Nasrullah: Haqqani, por exemplo, ele esteve detido na prisão onde trabalhei e agora é ministro do assuntos interiores no Afeganistão. E há mais, há pessoas que hoje são governadores. Há muitos riscos. Foi por isso que decidi vir. Há tantas pessoas que estavam presas e que agora estão livres… Desde que os Taliban tomaram poder que já nem sabemos quem é nosso inimigo ou nosso amigo.

Pergunta: Estava à espera de acabar aqui, sem-abrigo?

Khalid Nasrullah: Eu já sabia que na Europa não há lugar para um refugiado. Mas, como trabalhei com as tropas belgas em Bagram, com o governo belga e com a NATO, decidi vir. Ganhei um processo em tribunal com o juiz a dizer-me que eu tenho direito a um lugar para ficar. Mas não tenho…

Pergunta: Porquê?

Khalid Nasrullah: É a política. A vida aqui é um exame. Apenas um exame. Se passar talvez venha a ver um dia melhor. Agora tenho de aceitar isto.

Pergunta: alguma vez se arrependeu de ter vindo para a Europa?

Khalid Nasrullah: Se uma pessoa não quer correr riscos não venha. É o meu conselho, porque aqui não há nada para nós…

Já lhe tiraram as impressões digitais, agora é tentar manter-se vivo até à decisão do Estado para o processo de asilo. Muitos ainda estão a tentar esta etapa, mesmo que saibam que, na prática, nada mudará. Outros, como um dos homens da Serra Leoa, ainda estão a processar a jornada. “O Mediterrâneo? É muito perigoso, muito perigoso. Eu salvei a minha vida, mas é muito perigoso”. Pergunto como foi o tempo em que esteve na Líbia antes de se fazer ao mar, responde em suspiro. “Eles vivem dos estrangeiros como eu. Ficaram com todo o meu dinheiro e esse é o problema”. Em 2023, os dados da Frontex revelam como a rota do Mediterrâneo Central continua a ser a mais utilizada.

 

 

***

 

 

Pergunta: A guarda costeira líbia tem barcos, armas e até os uniformes pagos por Estados-membro e pela União Europeia. Sente-se confortável com isto?

Ylva Johansson: Há muitas situações terríveis na Líbia. É por isso que estamos estamos a trabalhar em conjunto com o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e com a Organização Internacional para as Migrações para ajudar os refugiados a terem uma caminho seguro para a Europa. É por isso que estamos a trabalhar para tirá-los da Líbia e não irem nesses barcos perigosos onde milhares de pessoas já perderam as suas vidas.

Pergunta: Mas a guarda costeira líbia está a prevenir que eles partam…

Ylva Johansson: A Líbia é um país específico… como saberá. É por isso que estamos a tirar as pessoas da Líbia para uma país seguro como o Níger.

Depois desta entrevista, em julho de 2023, o Níger passou a ser o quarto país do Sahel alvo de um golpe de estado. Nesta região, os grupos jihadistas têm espalhado insegurança e explorado as diferenças quase ancestrais e conflituosas entre agricultores e nómadas. Mas são apenas uma parte da equação. No país há uma epidemia de gangs perigosos, milícias étnicas e traficantes de armas, de drogas e de seres humanos. Apesar da instabilidade, a União Europeia tem apostado nestes países para criar uma buffer zone, ou seja, uma zona tampão para travar os migrantes de se lançarem ao mar nas travessias potencialmente mortais. Esta decisão remonta a 2003, na Política de Vizinhança, e a estratégia parece perdurar até hoje.

Pergunta: É uma cooperação adequada?

Ylva Johansson: É uma cooperação muito boa. Estamos a ajudar as pessoas a voltar para os países de origem, de onde podem vir de forma legal para Europa.

Pergunta: Podem?

Resposta: Ter pessoas a partir desta forma perigosa pelo mar não é uma solução, é na verdade uma forma muito má de lidar com a migração.

Pergunta: Não está esta política de “prevenção de partidas” a tornar estas travessias mais perigosas?

Resposta: Não.

Pergunta: Mas a guarda costeira líbia está a disparar contra refugiados. Isto é muito perigoso. E está a expulsá-las ilegalmente de águas internacionais e até de águas maltesas ou italianas…

Resposta: A Europa tem de proteger as suas fronteiras. Não está aberta a toda a gente que queira vir.

A construção de uma fortaleza

A Frontex, a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, foi criada em 2004 e desde então teve um aumento expressivo de orçamento, transferido pela União Europeia. Passou de seis milhões, em 2005, para 754 milhões, em 2022. É cem vezes mais dinheiro. Durante parte deste período, o diretor adjunto foi Gil Arias Fernández. Acredita que o crescimento da agência foi demasiado repentino, mas isso dá-lhe também maior competência e responsabilidade para a gestão dos fluxos migratórios. Por essa razão, lamenta a “hipocrisia do lado europeu” em colaborar com países como a Líbia. “Esperamos que todos cumpram os Direitos Humanos, mas não temos problemas em apoiar com dinheiro, meios e treino as autoridades de um país como a Líbia para prevenir que as pessoas cheguem às costas europeias. No fim, é a vida e a segurança destes migrantes que não está garantida, de todo”, refere.

A verdade é que a própria Frontex está sub escrutínio por ter fechado os olhos a violações de Direitos Humanos pelos próprios agentes. Uma das recomendações da Comissão Europeia foi a contratação de 40 comissários para direitos fundamentais. São pessoas essenciais para tratar denúncias de abusos. Estas contratações foram adiadas por Fabrice Leggeri, diretor executivo até abril de 2022. A formação dos próprios agentes em Diretos Humanos foi igualmente parca. Arias Fernández, que foi adjunto de Leggeri, revela que o treino nesta matéria era apenas entre uma semana a dez dias.

Gil Arias Fernández
Gil Arias Fernández

Pergunta: Este tempo de formação é suficiente?

Gil Arias Fernández: Provavelmente não. Mas eu não acredito que alguém que viole os direitos fundamentais de um refugiado seja porque não teve uma formação adequada sobre Direitos Humanos. Acho que isso está no ADN do agente violador.

Pergunta: Como é que a Frontex controla esses comportamentos?

Gil Arias Fernández: A agência não tem uma forma de controlar possíveis orientações políticas ou atitudes xenófobas das pessoas que estão a trabalhar nas operações. Para estas pessoas certamente que agredir um refugiado não é nada sério, como uma bofetada, mas é claro que é sério.

Pergunta: Como é que se pode evitar infiltrações de extrema-direita?

Gil Arias Fernández: Não é fácil. A agência, quando recruta agentes, não tem qualquer tipo de controlo sobre isto. Quando fui diretor, partilhei o meu desagrado com o Conselho de Administração e com diretores de outras divisões sobre não estarmos autorizados fazer nenhuma pergunta sobre a orientação política, religião, etc. Eu, no passado, encontrei uns rapazes que tinham essas orientações políticas e acabámos com os contratos que tínhamos com eles. Mas depois tivemos sérios problemas, acusaram-nos de não termos razões para despedi-los e num dos casos tivemos inclusivamente de pagar uma indemnização por despedimento indevido.

Para o ex-dirigente da Frontex, a agência não é mais do que a vontade dos Estados-membro e está a seguir “política duras”, ou seja, fazer tudo para prevenir que estas pessoas não cheguem à Europa. Sobre a diferença para as fronteiras de Leste, onde há luz verde para os cidadãos ucranianos, Arias Fernández não tem dúvidas: “as regras são as mesmas para ucranianos ou sírios. Há  uma política de braços abertos para com ucranianos e estou encantado com isso. Mas não foi assim em 2014 ou 2015 quando os refugiados tinham a pele um pouco mais morena e não eram cristãos”.

Gil Arias Fernández

 

A fortaleza estende-se ao Egeu. Em março de 2020, a presidente da Comissão Europeia viajou até Atenas onde anunciou um pacote de mais 700 milhões de euros de fundos comunitários doados à Grécia, sendo que metade seria utilizada de imediato para melhorar as infraestruturas de fronteira. Numa conferência de imprensa ao lado do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, do Presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, e de Kyriakos Mitsotakis, primeiro-ministro grego, Ursula von der Leyen deixou clara a ideia da Comissão Europeia. “Eu acho que a Grécia é o nosso aspída nestes momentos”, disse, usando uma palavra em grego. Aspída significa escudo. Um escudo é uma proteção ou uma arma defensiva usada para a proteção contra um golpe, ou uma ameaça.

Na Grécia, em apenas dois anos, de março de 2020 a março de 2022, 27 mil pessoas foram expulsas ilegalmente, segundo as conclusões da investigação independente da organização Forensic Architectures/Forensis, uma agência sediada em Londres, no Reino Unido, especializada em técnicas e tecnologias que permitem investigar casos de violência estatal e violações de Direitos Humanos.

Por várias vezes, enquanto diretor-executivo da Frontex, Fabrice Leggeri negou qualquer tipo de participação ou envolvimento direto em práticas como estas. Foi, porém, desmentido no relatório do OLAF, o Organismo Europeu de Luta Anti-Fraude, a que tivemos acesso. No documento lê-se que foram comprovadas as suspeitas de má conduta, comprometendo de forma cabal o dever da agência de proteger os direitos fundamentais dos migrantes e refugiados, consagrados nos capítulos dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Leggeri demitiu-se logo depois da divulgação das conclusões por um consórcio internacional de jornalistas.

A Comissão Europeia ainda não conseguiu encontrar uma solução que responda às ambições políticas de cada Estado e, ao mesmo tempo, à inevitabilidade que é a manutenção dos fluxos migratórios. Enquanto a solução europeia para os pedidos de asilo é debatida, as tragédias agudizam-se de forma inédita.

Em Junho de 2023 aconteceu a pior tragédia da história recente no Mediterrâneo: 700 pessoas a bordo de um barco naufragaram e 500 morreram. Mais uma vez existem dúvidas sobre a atuação das autoridades gregas. Politicamente, a retórica converge entre o sentido de ameaça e a desumanização.

David Cameron, enquanto primeiro-ministro em 2015, hoje ministro dos negócios estrangeiros do Reino Unido, referiu-se aos migrantes no mar como um “enxame”. Emmanuel Macron, presidente francês, avisou que os franceses tinham de “proteger-se” contra a nova vaga migratória provocada pelo regresso dos Taliban ao poder no Afeganistão. Os números mais recentes deixam evidente que estas políticas não foram capazes de resolver o flagelo do migrantes e refugiados que procuram asilo na Europa.

Às dez da manhã, no edifício abandonado, Jean, do Burundi, aquela água numa chaleira colocada no chão. Explica-me que não vieram para roubar. “Aqui há médicos, engenheiros, advogados… Nós só queremos uma coisa: paz. É a única coisa”. À mesma hora, Gunay, o curdo que está na fila do Serviço de Estrangeiros, confirma a deslocação em vão. Não conseguiu entrar para tratar do seu processo. O desespero alastra e as perguntas também. “Assim, como continuamos a nossa vida?”, pergunta. Amanhã tem de voltar. Talvez amanhã, talvez um dia.

 

 

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Adenda: análise na CNN Portugal no dia em que o documentário em vídeo foi originalmente emitido na CNN Portugal, a 5 de março de 2023.

"A guerra na Ucrânia mostrou que, afinal, era possível ter acolhido os milhares que morreram às portas da Europa"

 

 

 

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