A batalha mais sangrenta da guerra na Ucrânia é travada há meses na fortaleza de Bakhmut. E pode estar a chegar ao fim
Soldado ucraniano observa posições inimigas a partir do interior de um edifício, na cidade de Bakhmut (Getty Images)

A batalha mais sangrenta da guerra na Ucrânia é travada há meses na fortaleza de Bakhmut. E pode estar a chegar ao fim

Texto
João Rodrigues

Edição multimédia
Teresa Abecasis

Uma pequena cidade perdida na linha da frente está a ser o epicentro da guerra e onde a Ucrânia tenta travar a tentativa russa de domínio do Donbass. Esta é a sua história

Cada casa, uma fortaleza. Cada rua, um campo de batalha. Dois exércitos, armados com as mais recentes inovações militares, lançaram tudo o que tinham durante dez meses pelo controlo de uma pequena cidade, esquecida na linha da frente, no coração do Donbass. A Ucrânia chama-lhe Bakhmut, o bastião que se tornou o símbolo da sobrevivência do país nesta guerra; para a Rússia é Artemovsk, o “triturador de carne”.

Bakhmut é hoje uma ruína, um cemitério a céu aberto onde dezenas de milhares perderam a vida, numa das mais sangrentas batalhas de guerra urbana desde o final da Segunda Guerra Mundial.

“É a batalha mais mortífera da guerra da Ucrânia e onde diferentes maneiras de pensar a guerra se cruzaram. Com forças inferiores, a Ucrânia conseguiu resultados militares no terreno que não deviam acontecer, mas aconteceram. É uma grande vitória da Ucrânia continuar a resistir ao fim de nove meses. No entanto, ainda não sabemos se esta manobra se justifica”, afirma o historiador António José Telo.

As operações russas começaram com uma intensa campanha de bombardeamentos no final de maio de 2022, focada nas posições ucranianas instaladas nas vilas da periferia da cidade. Foi preciso esperar quase dois meses, até ao primeiro dia de agosto, para a Rússia fazer a sua primeira tentativa de assalto a Bakhmut. Mas esta tentativa durou pouco tempo. As tropas ucranianas estavam bem entrincheiradas, em posições preparadas ao longo de oito anos, depois de a cidade ter sido atacada por grupos armados apoiados por Moscovo, em 2014.

Em setembro, as forças regulares do exército russo, dispersas por uma frente de combate com mais de mil quilómetros, estavam a perder a capacidade de conduzir operações ofensivas. Este desgaste obrigou o Kremlin a decretar uma “mobilização parcial” de cerca de 300 mil reservistas, utilizando-os para colmatar a falta de soldados em vários pontos da frente.

A Ucrânia aproveitou a ocasião para reconquistar a região de Kharkiv, ocupada desde os primeiros dias da invasão, e, mais tarde, recapturar a cidade de Kherson, o que conseguiu em novembro. Bakhmut parecia esquecida entre as conquistas do exército ucraniano, mas, para as chefias russas, começou a ser verbalizada a ideia de que a cidade seria um ponto-chave na conquista da região do Donbass pela sua localização estratégica, atravessada por três estradas principais. O ministro da defesa russo, Serguei Shoigu, insistiu que a cidade é crítica para a Rússia poder “furar” a linha defensiva ucraniana e poder conduzir operações no interior do território ucraniano.

"A cidade [Bakhmut] é um centro importante para a defesa das tropas ucranianas no Donbass. Tomar a cidade vai permitir lançar novas ações ofensivas dentro das linhas defensivas da Ucrânia", argumentou Shoigu, numa declaração televisiva em março.

Mapa: O avanço dos combates à volta de Bakhmut

 
Durante os meses do verão, de 2022, a Rússia focou os seus esforços na conquista da região do Donbass. Em junho, com a conquista das cidades de Sevierodonetsk e Lysyshansk, a norte, Bakhmut passa a ser o centro das atenções russas. No início de 2023, a Rússia começa a avançar a norte e a sul de Bakhmut, ameaçando cercar completamente a cidade, com milhares de soldados ucranianos no seu interior. Mapa mostra evolução no terreno entre 22 de fevereiro de 2022 e 30 de abril de 2023.
Fonte: Institute for the Study of War

A solução encontrada pelas chefias militares russas foi idêntica à encontrada noutros locais: bombardear posições inimigas até à exaustão, lançando em seguida investidas de infantaria apoiada por veículos blindados. Um potente cocktail de munições de 152 mm, explosivos de fósforo branco e bombas termobáricas choviam sobre os edifícios da cidade ininterruptamente, sete dias por semana, 24 horas por dia. Mas qualquer investida russa contra as posições ucranianas encontravam uma feroz resistência.

O número de baixas foi descrito como “bastante significativo” e as imagens que chegaram fizeram lembrar o desastre de Mariupol. Em dezembro, Zelensky acusou a Rússia de transformar “outra cidade do Donbass em ruínas”.

“Esta batalha faz-nos lembrar o cerco de Mariupol, com um nível de destruição da cidade quase total. A única diferença é que aqui os soldados não estão completamente cercados”, argumenta o major-general Isidro de Morais Pereira.

Apesar dos milhares de mortos, das explosões recorrentes, da falta de luz e água canalizada, centenas de pessoas resistiram e mantiveram-se na cidade. Quase todas sobrevivem no interior de caves, o único sítio capaz de aguentar o impacto dos rebentamentos constantes que destroem as mais imponentes estruturas e fazem tremer tudo em redor. Em março, dez mil habitantes resistiam no interior da cidade, mas, entretanto, grande parte foi transportada para cidades maiores na retaguarda, como Kramatorsk ou Sloviansk. Quantos ainda restam na cidade, é impossível saber.

Soldados ucranianos à porta de um abrigo improvisado, na cave de um edifício, no interior da cidade de Bakhmut, no final de março. Foto: Aris Messinis/AFP via Getty Images

A batalha mais sangrenta

Os números não são precisos, mas as estimativas são elevadas. De acordo com o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional norte-americano, John Kirby, o número de baixas russas é “assombroso”, com a ofensiva russa na pequena cidade ucraniana a culminar em mais de 20 mil mortos e 80 mil feridos, um número semelhante ao avançado pelos ucranianos. A vasta maioria destas baixas pertence aos mercenários de Yevgeny Prigozhin, do Grupo Wagner, um misto de veteranos das Forças Armadas russas e de condenados do sistema prisional russo que se voluntariaram em troca do alívio ou perdão das suas sentenças.

O número de baixas do lado ucraniano também é elevado. Não existem dados oficiais, mas, segundo a imprensa ucraniana, as unidades que defendiam o que resta desta cidade chegaram a registar entre 100 e 200 baixas por dia, nos momentos mais sangrentos dos combates. Números tão elevados levaram muitos analistas, particularmente ocidentais, a questionar o propósito de defender de forma tão intransigente uma localidade em que poucos viam qualquer importância estratégica. Segundo o Ministério da Defesa russo, cerca de 20 mil soldados ucranianos perderam a vida.

Estas estimativas fazem da batalha de Bakhmut a mais sangrenta batalha urbana desde o final da Segunda Guerra Mundial, a uma larga distância das restantes. Em 1994, a Rússia desencadeou uma batalha na Chechénia que chocou o mundo pela sua brutalidade. Perto de dois mil soldados russos perderam a vida e esta campanha foi vista, em larga medida, como um falhanço. Nem mesmo a batalha de Aleppo, na Síria, que se estendeu durante quatro anos, teve um preço tão caro em vidas humanas: estima-se que 33 mil pessoas tenham morrido neste conflito.

“É uma clássica batalha de assalto urbano, com a Rússia a fazer grandes assaltos frontais de infantaria contra posições pré-preparadas que resultam em baixas imensas e avanços mínimos, quando sequer os conseguem. A Rússia deve ter tido entre três a quatro vezes mais baixas do que a Ucrânia, mas isso pode não ser decisivo”, refere o historiador António José Telo.

Lançador de foguetes múltiplos ucraniano dispara sobre as posições russas em Bakhmut. Foto: Sergey Shestak/AFP via Getty Images

Dois lados em colisão

Apesar do custo elevado, as razões que levaram à sangrenta defesa de Bakhmut foram simples e as chefias militares ucranianas não as esconderam: infligir o máximo de perdas ao inimigo durante o maior período possível. A lógica passa por desgastar a Rússia no combate urbano, que favorece bastante quem defende, e ganhar tempo para a constituição de novas unidades treinadas e equipadas com equipamentos modernos ocidentais para conduzir um contra-ataque para recuperar o território perdido. Neste tipo de combate, até mesmo as ruínas de um prédio podem tornar-se uma perigosa posição defensiva difícil de ultrapassar.

A geografia também está do lado dos defensores. Já no passado, durante o reinado de Ivan, o Terrível, foi ordenado que fosse construído um forte para proteger a região. Atravessada pelo rio Bakhmutka, que separa o lado Este e Oeste da cidade, Bakhmut encontra-se na parte mais baixa de um vale, o que permite também à artilharia ucraniana ocupar regiões mais altas nos seus arredores e poder acertar com maior precisão nas posições inimigas. Estas condições tornam esta cidade a “fortaleza perfeita” aos olhos das chefias militares e políticas ucranianas. 

“Tomámos as decisões necessárias para assegurar a defesa efetiva [de Bakhmut] e para infligir o maior número de perdas ao inimigo”, afirmou o coronel-general Oleksandr Syrksyi, líder das Forças Terrestres ucranianas e o cérebro por detrás da contraofensiva ucraniana que recuperou a totalidade da província de Kharkiv, durante o verão. Figuras como Oleksiy Danilov, Secretário do Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia, falam mesmo num rácio de sete baixas russas por cada baixa ucraniana, embora não seja possível confirmar de forma independente a veracidade desta alegação.

Prédios residenciais ucranianos em ruínas, na cidade de Bakhmut. Foto: Libkos/AP

Do lado russo, as intenções que levaram a uma campanha tão cara do ponto de vista humano e material não são claras. Inicialmente, os especialistas argumentavam que o ataque à cidade de Bakhmut, que aconteceu logo após a queda das cidades de Severodonetsk e Lisichansk, fazia parte de uma tentativa de cercar o grupo de combate ucraniano que defendia a região do Donbass, mas, à medida que a intensidade dos combates no resto da frente se foi perdendo, depressa se percebeu que as forças armadas russas não tinham capacidade para o fazer. Alguns especialistas acreditam que a conquista de Bakhmut é uma decisão política e não militar, com o objetivo de encontrar a todo o custo uma vitória para a vender internamente.

“A conquista de Bakhmut era mais um passo na conquista da região de Donetsk. Vladimir Putin estabeleceu vários prazos para tal que, devido às incapacidades militares, foram sendo empurrados para a frente. A insistência na decisão de conquistar Bakhmut a todo o custo foi pura e simplesmente política”, afirma o major-general Isidro de Morais Pereira.

O momento decisivo

As temperaturas negativas começaram a chegar em dezembro e com elas vieram as vagas de ataque mais poderosas por parte do grupo Wagner, que obteve algum sucesso ao conquistar algumas zonas nos limites da cidade. Começava o derradeiro esforço dos homens de Yevgeny Prigozhin, um dos maiores protagonistas da batalha, para reclamar para si a conquista de Bakhmut. Os seus mercenários obtiveram importantes conquistas territoriais no início de 2023, ao focar os seus ataques nos flancos da cidade, numa tentativa de a cercar, conquistando as estradas que a ligam ao território controlado pela Ucrânia.

Do lado ocidental, começaram a surgir muitas dúvidas acerca da relação custo-benefício para o exército ucraniano em defender a cidade, que corria o risco de ficar operacionalmente cercada. Essa era precisamente a crença dos serviços secretos norte-americanos no início de março, segundo os documentos classificados que vieram a público. Para os Estados Unidos, a situação podia tornar-se “catastrófica”, com as tropas ucranianas a ficaram cercadas no interior da cidade, e vários oficiais americanos sugeriram que a Ucrânia mudasse de tática e abandonasse Bakhmut.

Blindado BMP ucraniano atravessa o perigoso percurso da "estrada da vida" que abastece o que resta de Bakhmut. Foto: Anatolii Stepanov/AFP via Getty Images

Perto de ficarem completamente cercados pelo exército russo, o futuro dos homens que defendiam Bakhmut parecia cada vez mais precário, no mês de abril. O rápido avanço do grupo Wagner em Soledar, a norte, e na direção de Chasiv Yar, a sul, tornaram o abastecimento da cidade possível apenas por uma pequena estrada, que ganhou a alcunha de “estrada da vida”. Era necessário tomar uma decisão. Abandonar e lutar mais um dia ou ficar e defender Bakhmut até ao último homem? Volodymyr Zelensky encontrou-se com as duas principais figuras militares do país, Valerii Zaluzhny e Oleksandr Syrskyi, e a resposta foi unânime. A Ucrânia não só decidiu lutar, como foi dada a ordem para reforçar a defesa da cidade e dos seus flancos. Unidades recém-formadas foram enviadas para a linha da frente.

“Foi o momento mais decisivo desta batalha. A reunião entre Zelensky e as chefias militares, onde foi tomada a decisão de defender a cidade, mudou o rumo dos acontecimentos e tornou esta batalha muito mais cara para a Rússia”, recorda o major-general Isidro de Morais Pereira.

"O sangue ainda está fresco"

A irredutível defesa ucraniana frustrou todos os esforços feitos pelo grupo Wagner, que ficou cada vez mais desprovido de veteranos qualificados e viu-se obrigado a recorrer a cada vez mais a voluntários, aumentando significativamente o número de baixas. No entanto, pouco a pouco, rua a rua, prédio a prédio, o grupo foi avançando cidade dentro. A 12 de maio, Prigozhin alegava “controlar 95% da localidade”. Em simultâneo, a Ucrânia começava a verbalizar as suas intenções de levar a cabo um contra-ataque decisivo. Munições e unidades militares começaram a ser utilizadas de forma racionada e o Kremlin, para frustração de Prigozhin e dos seus homens, reduziu o apoio logístico que enviava aos mercenários em Bakhmut.

“O número de munições pedidas por Prigozhin era muito superior ao que a Rússia é capaz de produzir. A certa altura, pediu 10 mil toneladas de munições por mês, com um custo de mil milhões. Isto é muito acima das capacidades russas”, explica Isidro de Morais Pereira.

Canhão de 155 mm ucraniano dispara sobre posições russas nos arredores de Bakhmut, no Donbass. Foto: Bulent Kili/AFP via Getty Images

E o grupo pagou a falta de apoio com vidas. “Dezenas de milhares”, admitiu o seu líder. Segundo o porta-voz do Conselho de Segurança norte-americano, John Kirby, até ao dia 1 de maio, o exército russo sofreu mais de 100 mil baixas, entre os quais 20 mil mortos, apenas nos últimos meses de combates. Em público, Prigozhin não escondeu a frustração e não poupou críticas às mais altas chefias militares.

“O sangue ainda está fresco”, disse Prigozhin à frente de dezenas de cadáveres de militares do grupo Wagner, num vídeo publicado no seu canal de Telegram. “Eles vieram para aqui como voluntários e estão a morrer para que vocês se possam sentar como gatos gordos nos vossos escritórios luxuosos. Shoigu, Gerasimov, onde estão as munições?”, questionou o líder dos mercenários. Para António José Telo, estas baixas, maioritariamente compostas por mercenários e prisioneiros, “têm um peso muito pequeno” para sensibilizar a sociedade russa e o Estado Maior das Forças Armadas daquele país.

A situação entre a liderança russa tornou-se ainda mais tensa quando Prigozhin ameaçou abandonar as posições conquistadas na cidade no dia 10 de maio, um dia depois da celebração do Dia da Vitória, que marca o fim da Segunda Guerra Mundial na Rússia. O cenário captou a atenção dos meios de comunicação ocidentais, que estranharam que uma figura tão proeminente da máquina de guerra russa criticasse abertamente algumas das principais figuras políticas do executivo de Vladimir Putin.

"Ele [Prigozhin] não poderia repetir essas afirmações se não tivesse ordens claras para o fazer. Situações como a que Prigozhin protagonizou são impensáveis na Rússia atual, onde se prendem cidadãos por dizer que decorre uma guerra", lembra António José Telo.

Independentemente dos protestos e das lutas políticas internas, os avanços russos continuaram, ainda que se tenham limitado apenas a algumas centenas de metros por dia. A Ucrânia domina menos de 5% do que resta de Bakhmut, controlando o hospital pediátrico e alguns edifícios de grandes dimensões. Mesmo este sábado, o líder dos mercenários gravou um vídeo onde anuncia o "controlo total" da cidade. Versão que as chefias militares desmentiram pouco tempo depois. "As nossas unidades estão a lutar em Bakhmut. Os nossos defensores controlam algumas instalações industriais e de infra-estruturas", disse o porta-voz militar Serhiy Cherevatyi à Reuters.

Soldado ucraniano abrigado numa trincheira durante um bombardeamento russo, nos arredores de Bakhmut, em março. Foto: Aris Messinis/AFP via Getty Images

Mas a batalha por Bakhmut ainda não tem um vencedor e a conquista da cidade pode mesmo não representar o fim da batalha pelo seu território. Na última semana, a Ucrânia lançou vários contra-ataques contra os soldados do exército russo que defendem os flancos da cidade. As operações resultaram na retirada de várias unidades do exército regular, a norte e a sul, que começam a colocar em perigo o controlo russo da cidade. "Estamos a lutar com menos recursos do que o inimigo. Ao mesmo tempo, podemos arruinar os seus planos”, admitiu o coronel-general ucraniano Oleksandr Syrskyi, no Telegram.

“Podemos estar perante o início de uma manobra contraofensiva maior. Se a Ucrânia decidir atacar com tudo os flancos de Bakhmut e, de seguida, tentar perfurar as defesa para sul em direção de Donetsk, arrisca-se a surpreender as tropas russas, e podemos estar perante um novo ‘gesto de boa vontade’”, alerta o major-general Isidro de Morais Pereira.

Imagens do antes e depois da destruição em Bakhmut

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